MIAMI, FLÓRIDA - Em uma pequena sala de espera com uma janela interior fechada, no segundo andar de um edifício comercial de Miami, um homem na casa dos 20 anos aguarda sua namorada. Educado, diz não querer conversar. Logo, uma mulher também de cerca de 20 anos sai por uma porta de cabeça baixa, com a mão direita sobre o braço esquerdo, como se tivesse acabado de tomar uma vacina. No caso, porém, ela acabara de realizar um aborto em um dos 21 estados americanos em que a lei para interromper gravidez se tornou mais restrita nos últimos dois anos.
Na Flórida, abortar não é permitido após seis semanas de gestação desde maio deste ano. A proibição se tornou possível após a Suprema Corte dos Estados Unidos revogar, em 2022, o direito constitucional de 49 anos ao aborto, permitindo que cada estado estabeleça suas próprias regulamentações.
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Desde então, 13 estados baniram completamente o aborto, enquanto outros oito impuseram restrições ao procedimento, que variam de proibição após seis semanas de gravidez até 18 semanas. O problema é que muitas pessoas nem sabem que estão grávidas no início da gestação, diz Maria Fernandez, gerente da clínica ginecológica Blue Coral Women’s Care.
Desde que o limite foi imposto na Flórida, Fernandez tem informado, em média, 40 mulheres por mês que nenhum médico da clínica pode fazer o procedimento. Ela as aconselha, então, a viajar para o estado de Virgínia.
“É uma situação muito difícil porque 50% daquelas que procuram nossa ajuda são muito jovens e não têm dinheiro para criar uma criança. A maioria está entre oito e dez semanas de gravidez”, diz ela.
Atualmente, cerca de 35 pessoas se submetem ao procedimento mensalmente na clínica de Fernandez – cujo cartão de visita anuncia “serviços ginecológicos completos a preços inferiores”. A maioria faz por meio de pílulas, e o aborto custa US$ 450 (R$ 2,6 mil). Antes da mudança na lei, eram cerca de 120 mulheres por mês, segundo ela.
O aborto se tornou um tema central na eleição presidencial deste ano. Quando a Suprema Corte dos EUA derrubou a decisão que garantia o direito das mulheres interromperem a gravidez (conhecida como decisão Roe contra Wade), Donald Trump chamou o entendimento da corte como “a maior vitória pela vida em uma geração”. O ex-presidente também deu crédito a si mesmo pelo ocorrido, afirmando que só fora possível porque ele havia cumprido tudo o “que tinha prometido, incluindo nomear e garantir a confirmação de três constitucionalistas altamente respeitados para a Suprema Corte”.
A decisão, entretanto, acabou sendo mal vista no país. De acordo com pesquisas feitas pela Associated Press/NORC Center for Public Affairs, o número de americanos que acreditam que uma mulher deve ter o direito de fazer um aborto legal se não quiser continuar com a gravidez cresceu nos últimos anos, passando de 49% em 2021 para 61% em junho de 2024. Até entre os republicanos, a parcela aumentou – de 27% para 38% – e, entre os independentes (aqueles que podem decidir a eleição, passou de 46% para 57%.
O assunto ganhou ainda mais destaque na semana, quando, às vésperas da eleição, tornou-se pública a notícia de que mais uma mulher havia morrido porque médicos se recusaram a fazer um aborto em um caso emergencial. Josseli Barnica, de 28 anos, estava grávida de 17 semanas e sofria um aborto espontâneo no Texas.
De acordo com o site ProPublica, que teve acesso aos registros médicos de Barnica, a gravidez deveria ter sido interrompida de forma emergencial para que uma infecção fosse evitada. Os médicos que a atendiam, porém, afirmaram que só poderiam fazer isso após o feto não ter mais batimentos cardíacos. Ela morreu três dias depois. Outras três mortes semelhantes foram noticiadas nos EUA nos últimos meses.
Hoje, o aborto é o terceiro assunto mais importante (com 9%) para os americanos que se registraram para votar, segundo pesquisa da consultoria Gallup. Em primeiro lugar, aparece economia (21%) e, em segundo, imigração (13%).
“De modo geral, as pessoas não gostam da decisão da Suprema Corte (contra o aborto) porque os americanos valorizam o direito de fazer suas próprias escolhas”, afirma Lori Poloni-Staudinger, reitora da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade do Arizona. “Isso está ligado à cultura americana, que é muito individualista”.
Daniela Martins, vice-presidente da Women’s Emergency Network (WEN), uma organização que auxilia pessoas a obter acesso ao aborto na Flórida, acrescenta que, enquanto o aborto é frequentemente discutido sob uma perspectiva moral na América Latina, nos EUA é visto como um direito pessoal, além de uma questão financeira, de planejamento familiar e de saúde. “Trump sabe que a proibição foi impopular até entre parte dos republicanos”, diz ela, que é filha de um brasileiro e uma colombiana, mas mora nos Estados Unidos há oito anos.
Segundo Martins, desde que a Suprema Corte permitiu que os estados americanos legislem sobre o aborto, a WEN percebeu duas mudanças na demanda pelo procedimentos. Em uma primeira fase, após a Flórida estabelecer, em julho de 2022, que o limite para o aborto era de 15 semanas de gravidez, mulheres de estados que haviam banido completamente o procedimento passaram a viajar para a Flórida para realizá-lo. “Vinham muitas mulheres da Geórgia, do Alabama e de Louisiana. A Flórida virou o estado número dois em abortos no país.”
A partir do momento que a restrição na Flórida passou para seis semanas, a WEN passou a ajudar mulheres que precisam deixar o estado para interromper a gravidez. Antes, a organização costumava apoiar cada uma com cerca de US$ 700 (R$ 4000). Agora, com o custo para a viagem, o valor passou para US$ 2 mil (R$ 11,6 mil). As mulheres que recorrem à entidade têm feito aborto em Nova York, Maryland, Washington D.C. e Illinois.
“O número de mulheres que nos procuram aumentou muito e também a necessidade delas. Apoiamos mulheres que nunca entraram em um avião, e a grande maioria já é mãe e não se sente capaz de ter mais uma criança”, diz Martins.
A professora de ciência política da Universidade de Miami Louise Davidson-Schmich também observa que os americanos são altamente céticos em relação ao governo. “Muitos americanos dizem não achar que seja função do governo dizer a um médico ou a um paciente o que eles não podem fazer”, diz.
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Como a decisão enfrentou críticas de eleitores americanos, Trump mudou sua retórica e vem demonstrando inconsistência no discurso. No mês passado, afirmou que alguns estados têm leis “muito rígidas” que deveriam ser “revistas”.
Para Poloni-Staudinger, no entanto, é difícil para as pessoas acreditarem nessa mudança repentina de postura de Trump. “E o aborto é uma questão que pode motivar as pessoas a saírem de casa para votar. As pessoas têm várias razões para votar, mas isso tem sido o suficiente para persuadir muitos.”
Davidson-Schmich acrescenta que o aborto provavelmente motivará jovens mulheres a votarem em Harris, o que poderia beneficiar os democratas, já que os jovens costumam ter menor inclinação para votar. Ela também observa que, se o aborto fosse o único tema desta eleição, Harris provavelmente venceria. “Mas essa não é a única questão, certo?”, comenta a professora. “Outro fator chave é a imigração, e isso tende a favorecer os republicanos.”
A repórter viajou como bolsista do World Press Institute (WPI)