Até 2 de setembro, a maior parte do mundo não sabia realmente como Gisèle Pelicot é. Quase não havia fotografias online dela, uma avó de 72 anos. Ela não estava nas redes sociais. Ninguém, exceto seus amigos e familiares, sabia que ela tinha um corte de cabelo laranja estilo Louise Brooks e uma predileção por óculos redondos estilo John Lennon.
Nesta quinta-feira, 19, Gisèle permanecia com a cabeça erguida em um tribunal em Avignon, na França, enquanto os veredictos do julgamento por estupro de seu ex-marido e de outros 50 homens, que durou quatro meses, eram lidos. Ali, ela se tornou a imagem da bravura em todo o mundo.
Seu rosto tem sido exibido em cartazes em protestos por toda a França e foi colado nas laterais de prédios. Ele adornou a capa digital da Vogue Alemanha, e sua imagem foi usada em uma capa fictícia da edição da pessoa do ano da Time.
A face dela se tornou o símbolo de sua própria experiência horrível, é claro, mas também da de cada mulher que foi tornada impotente, enganada e abusada. Como disse um de seus advogados, Stéphane Babonneau, o rosto de Gisèle se tornou a expressão física do fato de que “a vergonha mudou de lado”.
Raramente alguém que foi tão literalmente objetificada —transformada em um boneco de pano para homens violarem como quisessem— foi capaz de retomar completamente o controle de sua própria objetificação e transformá-la em uma imagem de empoderamento.
Nisso, a imagem de Gisèle se tornou uma dentre uma lista de imagens que transcenderam uma história única para se tornar um sinônimo de um ponto de virada coletivo.
Pense no jovem de camisa branca em frente a um tanque na praça Tiananmen em 1989, ou na mulher de vestido vermelho sendo atingida por gás lacrimogêneo durante manifestações antigovernamentais na Turquia em 2013, ou na mulher de vestido de verão em frente a uma fila de policiais durante um protesto do Black Lives Matter em Baton Rouge, em Louisiana, em 2016.
Quase sempre, essas fotografias captam pessoas que parecem completamente normais exibindo coragem extraordinária em um momento extraordinário. Embora Gisèle não pudesse antecipar o quanto seu rosto se tornaria um chamado de alerta, disse Babonneau, ela sabia que a partir do momento em que decidiu permitir que seu julgamento fosse público, em vez de uma audiência a portas fechadas, as pessoas a estariam observando.
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“Cada mulher que teve que suportar o que ela passou sabe que será observada, não apenas de acordo com o que ela diz, mas como ela se parece”, disse Babonneau. Será julgada, acrescentou, para ver se atende às “expectativas sociais e culturais do que uma vítima parece”. Ou, por assim dizer, do que um herói parece. Gisèle, ele disse, queria oferecer um exemplo diferente.
Imagine uma mulher que pode ter sido uma vítima, mas não era mais impotente. Uma mulher cujo ex-marido pode ter destruído sua vida, mas não conseguiu destruí-la. Uma mulher que frequentemente era descrita, de acordo com Babonneau, como parecendo “muito francesa”, daquela maneira indescritível, você sabe quando vê.
Como disse LaDame Quicolle —uma artista que criou um retrato em grande escala de Gisèle e o colocou nas ruas de Avignon, Lille, Paris e Bruxelas—, foi precisamente porque “Gisèle Pelicot é uma mulher comum” que sua imagem era tão marcante.
O nome “LaDame Quicolle” se traduz como “a mulher que cola”, e a imagem de Gisèle fazia parte de uma série chamada “Vigilantes” apresentando imagens em tamanho de pôster de mulheres que haviam sofrido violência de gênero, metaforicamente retomando as ruas.
De outra forma: enquanto os homens que a abusaram foram coletivamente chamados de “Monsieur-Tout-le-Monde”, ou Sr. Todo Mundo, porque parecem tão comuns, Gisèle pegou sua própria normalidade e a transformou em parte de seu superpoder.
Enquanto a maioria das mulheres que se manifestaram durante o movimento #MeToo na França eram figuras conhecidas nos mundos da moda e do cinema, Gisèle, disse LaDame Quicolle, “poderia ser nossas mães”.
Desde o primeiro dia do julgamento, Gisèle parecia bem-arrumada, mas simples. As golas de sua jaqueta e casaco estavam viradas de uma certa maneira. Frequentemente, ela usava um lenço branco em volta do pescoço. As cores que ela escolhia eram sóbrias, as estampas discretas. Ela não usava maquiagem óbvia, mas parecia bem cuidada. Ela parecia reconhecível.
Ela parecia o que era: uma avó aposentada e sem pretensões, mas com autorrespeito. Os pequenos óculos redondos que se tornaram tão familiares aconteceram de ser os que ela tinha em sua bolsa em seu primeiro dia no tribunal. E ela os usava inicialmente como uma forma de proteção.
“Os olhos transmitem muitos sentimentos”, disse Babonneau. “Não sabíamos como ela se sentiria. Ela choraria, se sentiria perdida, com medo?” Ao cobrir os olhos, ele disse, Gisèle tinha “um pouco de privacidade”. Ele e um de seus colegas escolheram deliberadamente andar alguns passos atrás de sua cliente, para permitir que ela liderasse o caminho.
“O público a reconhecia por esse olhar”, disse Aline Dessine, uma artista e ilustradora belga. É o olhar que Aline escolheu transmitir quando criou uma imagem de Gisèle que ela ofereceu gratuitamente a quem desejasse demonstrar sua solidariedade: um retrato gráfico, identificável apenas pelo corte de cabelo e óculos escuros.
Conforme o julgamento avançava e o número de apoiadores de Gisèle do lado de fora do tribunal crescia, aplaudindo sua coragem, “ela sentiu que não precisava mais dos óculos”, disse Babonneau. Ela queria fazer contato visual com as mulheres que a cercavam.
Mas, nesse ponto, os óculos escuros haviam passado de dispositivo de proteção para assinatura, e de assinatura para semiologia. Nesse momento, Gisèle entendeu o quanto até mesmo suas menores escolhas importavam, mesmo —talvez especialmente— embora por grande parte de sua vida casada elas tivessem sido tiradas dela.
Por isso, ao longo dos dias de depoimento de seus agressores, ela usava um lenço de seda com uma estampa criada por mulheres aborígenes na Austrália e enviado a ela como um gesto de solidariedade. Era apenas um entre muitos detalhes que impregnavam sua aparência com tanto poder que poderia transcender o julgamento e se tornar um catalisador para a mudança.
Em sua familiaridade, ela continha multiplicidades. Em seu reflexo incansável, as mulheres viam a si mesmas.