Como os espiões de Vladimir Putin estão tramando um caos global


A Rússia está levando a cabo um plano revolucionário de sabotagem, incêndio criminoso e assassinato

Por The Economist
Atualização:

“Vimos incêndio criminoso, sabotagem e mais: ações perigosas conduzidas com crescente imprudência”, alertou Ken McCallum, chefe do MI5, a agência de segurança doméstica e contrainteligência do Reino Unido, a respeito da ameaça representada pela Rússia e pelo GRU, sua agência de inteligência militar. “O GRU em particular está em uma missão contínua para gerar caos nas ruas britânicas e europeias”, disse ele em 8 de outubro. Outras agências de inteligência europeias estão igualmente preocupadas. Em 14 de outubro, Bruno Kahl, chefe de espionagem da Alemanha, disse que as medidas secretas da Rússia atingiram um “nível nunca visto antes”. Thomas Haldenwang, chefe dos serviços de inteligência domésticos da Alemanha, disse aos legisladores que um ato de sabotagem quase causou a queda de um avião no início deste ano, alertando que o “comportamento agressivo” de espiões russos estava colocando vidas em risco.

A guerra da Rússia na Ucrânia foi acompanhada por um crescendo de agressão, subversão e intromissão em outros lugares. Em particular, a sabotagem russa na Europa aumentou dramaticamente. “Vemos atos de sabotagem acontecendo na Europa agora”, disse o vice-almirante Nils Andreas Stensones, chefe do Serviço de Inteligência Norueguês, em setembro. Sir Richard Moore, chefe do MI6, a agência de inteligência estrangeira do Reino Unido, foi mais direto: “Os serviços de inteligência russos ficaram um pouco selvagens, francamente.”

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Os homens do Kremlin espremeram o Ocidente até expulsá-lo de vários estados africanos. Seus hackers, disseram os serviços de segurança da Polônia, tentaram paralisar o país nas esferas política, militar e econômica. Os propagandistas da Rússia espalharam desinformação pelo mundo. Suas forças armadas querem colocar uma arma nuclear em órbita. A política externa russa há muito recorreu ao caos. Agora, parece buscar apenas isso.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa do BRICS Business Forum, em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Comecemos com o verão da sabotagem. Em abril, a Alemanha prendeu dois cidadãos germano-russos suspeitos de estarem planejando ataques a instalações militares americanas e outros alvos em nome do GRU. No mesmo mês, a Polônia prendeu um homem que se preparava para passar ao GRU informações a respeito do aeroporto de Rzeszow, um centro de armas para a Ucrânia, e o Reino Unido acusou vários homens por envolvimento em um ataque incendiário a uma empresa de logística de propriedade ucraniana em Londres. Os homens foram acusados de auxiliar o Grupo Wagner, um grupo mercenário agora sob o controle do GRU.

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Em junho, a França prendeu um russo-ucraniano que foi ferido na tentativa de fazer uma bomba em seu quarto de hotel em Paris. Em julho, descobriu-se que a Rússia havia planejado matar Armin Papperger, o chefe da Rheinmetall, a maior empresa de armas da Alemanha. Em 9 de setembro, o tráfego aéreo no aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, foi fechado por mais de duas horas após drones serem avistados sobre as pistas. “Suspeitamos que foi um ato deliberado”, disse um porta-voz da polícia. Autoridades americanas alertam que embarcações russas estão fazendo reconhecimento de cabos submarinos.

Mesmo onde não recorreu à violência, a Rússia tentou agitar as coisas de outras maneiras. Os estados bálticos prenderam várias pessoas pelo que dizem ser provocações patrocinadas pela Rússia. Autoridades de inteligência francesas alegam que a Rússia foi responsável pelo aparecimento de caixões cobertos com a bandeira francesa e com a mensagem “Soldados franceses da Ucrânia” deixados na Torre Eiffel em Paris em junho. Muitas dessas ações visam atiçar a oposição à ajuda à Ucrânia. Mas outras visam simplesmente ampliar divisões sociais de todos os tipos, mesmo que tenham pouca ou nenhuma ligação com a guerra. A França diz que a Rússia também estava por trás do grafite de 250 estrelas de Davi em muros em Paris em novembro, um esforço para alimentar o antissemitismo, que aumentou desde o início do conflito Israel-Hamas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu Conselho de Segurança, em Moscou, Rússia  Foto: Aleksei Nikolsky/AP
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Grande parte da atividade da Rússia tem sido virtual. Em abril, parece que hackers ligados ao GRU manipularam sistemas de controle de distribuição de água nos Estados Unidos e na Polônia. Em setembro, EUA, Reino Unido, Ucrânia e vários outros países publicaram detalhes de ataques cibernéticos realizados pela Unidade 29155 do GRU, um grupo conhecido anteriormente por assassinatos na Europa, incluindo um esforço fracassado para envenenar Sergei Skripal, um ex-oficial de inteligência russo. Os esforços cibernéticos do GRU, que estavam em andamento desde pelo menos 2020, não visavam apenas a espionagem, mas também “danos à reputação” por meio do roubo e vazamento de informações e “sabotagem sistemática” por meio da destruição de dados, de acordo com os EUA e seus aliados.

Além da Europa, oficiais do GRU estiveram no Iêmen ao lado dos Houthis, um grupo rebelde que atacou navios no Mar Vermelho, declaradamente em solidariedade aos palestinos. A Rússia, irritada com o fornecimento de mísseis americanos de longo alcance para a Ucrânia, chegou perto de fornecer armas ao grupo em julho, informou a CNN, mas mudou de curso após forte oposição da Arábia Saudita. O fato de Vladimir Putin, presidente da Rússia, estar disposto a alienar Muhammad bin Salman, o governante de fato do reino, a quem ele cortejou por anos, é uma indicação de como a guerra da Rússia canibalizou sua política externa mais ampla.

Tudo em todo lugar

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“O que Putin está tentando fazer é nos atingir em todos os lugares”, argumenta Fiona Hill, que anteriormente atuou como a principal autoridade em Rússia no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Ela compara a estratégia ao filme vencedor do Oscar: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Na África, por exemplo, a Rússia usou mercenários para suplantar a influência francesa e americana após golpes em Burkina Faso, Mali e Níger.

A intromissão da Rússia nos EUA assume uma forma muito diferente. Em maio, Avril Haines, diretora de inteligência nacional dos Estados Unidos, chamou a Rússia de “a ameaça estrangeira mais ativa às nossas eleições”, acima da China ou do Irã. Não se tratava apenas de tentar moldar a política dos Estados Unidos a respeito da Ucrânia. “Moscou provavelmente vê essas operações como um meio de derrubar os Estados Unidos enquanto seu principal adversário percebido”, disse ela, “permitindo que a Rússia se promova como uma grande potência”. Em julho, as agências de inteligência americanas disseram que estavam “começando a ver a Rússia mirar em grupos demográficos específicos de eleitores, promover narrativas divisivas e difamar políticos específicos”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cumprimenta o líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, em Pyongyang, Coreia do Norte  Foto: Kristina Kormilitsyna/AP
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Esses esforços são geralmente grosseiros e ineficazes. Mas são prolíficos, intensos e, às vezes, inovadores. Em setembro, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou dois funcionários da RT, um meio de comunicação controlado pelo Kremlin que regularmente vomita frases feitas russas e escabrosas teorias da conspiração, de pagar US$ 10 milhões a uma empresa de mídia não identificada no Tennessee. A empresa, supostamente a Tenet Media, postou quase 2.000 vídeos no TikTok, Instagram, X e YouTube (comentaristas pagos pela empresa negaram irregularidades). O departamento também apreendeu 32 domínios de internet controlados pelo Kremlin, projetados para imitar sites de notícias legítimos.

Os propagandistas russos também estão experimentando com a tecnologia. A CopyCop, uma rede de sites, pegou artigos de notícias legítimos e usou o ChatGPT, um modelo de IA, para reescrevê-los. Mais de 90 artigos franceses foram modificados com o prompt: “Reescreva este artigo assumindo uma postura conservadora contra as políticas liberais do governo Macron em favor dos cidadãos franceses da classe trabalhadora”. Outra parte reescrita incluía evidências de suas instruções, dizendo: “Este artigo... destaca o tom cínico em relação ao governo dos EUA, à OTAN e aos políticos dos EUA”.

As campanhas de desinformação russas não são novidade, reconhece Sergey Radchenko, um historiador da política externa russa, apontando episódios como o memorando Tanaka, uma suposta falsificação soviética que foi usada para desacreditar o Japão em 1927. Nem guerras por procuração ou assassinatos são uma novidade. As tropas soviéticas já estavam lutando no Iêmen, disfarçadas de egípcias, no início dos anos 1960, ele observa. Os predecessores e sucessores da KGB mataram muitas pessoas no exterior, de Leon Trotsky ao ex-espião Alexander Litvinenko.

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A parte genuinamente nova, diz Radchenko, “é que, enquanto antes as operações especiais apoiavam a política externa, hoje as operações especiais são a política externa”. Dez anos atrás, o Kremlin trabalhou com os EUA e a Europa para combater o programa nuclear do Irã e da Coreia do Norte. Essa cooperação agora é difícil. “É como se os russos sentissem que não têm mais interesse em preservar algo da ordem internacional do pós-guerra”, diz Radchenko. Esse período o lembra mais da política externa niilista de Mao durante a Revolução Cultural da China do que do pensamento da Guerra Fria da União Soviética, que incluía períodos de pragmatismo e cautela. Hill coloca de outra forma: “É mais Trotsky do que Lênin”.

Putin abraça essas ideias. “Estamos provavelmente na década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo mais importante desde o fim da 2.ª Guerra Mundial”, disse ele no final de 2022. “Para citar um clássico”, acrescentou, invocando um artigo de Vladimir Lenin de 1913, “esta é uma situação revolucionária”. Essa crença — de que a ordem do pós-guerra está podre e precisa ser reescrita, pela força se necessário — também dá à Rússia uma causa comum com a China. “Agora mesmo, há mudanças como não víamos há 100 anos”, disse Xi Jinping a Putin no ano passado em Moscou, “e somos nós que impulsionamos essas mudanças juntos”.

A estratégia de política externa russa, publicada em 2023, oferece a garantia branda de que “a Rússia não se considera inimiga do Ocidente… e não tem más intenções”. Um adendo confidencial adquirido pelo Washington Post de um serviço de inteligência europeu sugere o contrário. Ele propõe uma estratégia abrangente de contenção contra uma “coalizão de países hostis” liderada pelos EUA. Isso inclui uma “campanha de informação ofensiva” entre outras ações nas “esferas…militar-política, comercial-econômica e informacional-psicológica”. O objetivo final, observa, é “enfraquecer os adversários da Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião em Bashkortostan, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Isso não significa que a Rússia seja impossível de deter. Ela é cada vez mais uma parceira júnior da China. Sua influência caiu em alguns países, como a Síria. Ela nem sempre respalda seus próprios representantes — dezenas de combatentes do Grupo Wagner foram mortos em uma emboscada por rebeldes malineses, auxiliados pela Ucrânia, em julho. E a subversão russa pode ser interrompida, diz Sir Richard, pelo “bom e velho trabalho de segurança e inteligência” para identificar os oficiais de inteligência e representantes criminosos por trás dela. O fato de a Rússia depender cada vez mais de criminosos para realizar esses atos, em parte porque espiões russos foram expulsos em massa da Europa, é um sinal de desespero. “O uso de representantes pela Rússia reduz ainda mais o profissionalismo de suas operações e — na ausência de imunidade diplomática — aumenta nossas opções de resposta”, diz McCallum.

A intromissão russa tem como objetivo pressionar a Otan sem provocar uma guerra. “Também temos linhas vermelhas”, diz Hill, “e Putin está tentando sentir esses limites”. Mas se ele é realmente movido por um espírito revolucionário, convencido de que o Ocidente é um edifício podre, isso sugere que mais limites serão cruzados nos próximos meses e anos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Vimos incêndio criminoso, sabotagem e mais: ações perigosas conduzidas com crescente imprudência”, alertou Ken McCallum, chefe do MI5, a agência de segurança doméstica e contrainteligência do Reino Unido, a respeito da ameaça representada pela Rússia e pelo GRU, sua agência de inteligência militar. “O GRU em particular está em uma missão contínua para gerar caos nas ruas britânicas e europeias”, disse ele em 8 de outubro. Outras agências de inteligência europeias estão igualmente preocupadas. Em 14 de outubro, Bruno Kahl, chefe de espionagem da Alemanha, disse que as medidas secretas da Rússia atingiram um “nível nunca visto antes”. Thomas Haldenwang, chefe dos serviços de inteligência domésticos da Alemanha, disse aos legisladores que um ato de sabotagem quase causou a queda de um avião no início deste ano, alertando que o “comportamento agressivo” de espiões russos estava colocando vidas em risco.

A guerra da Rússia na Ucrânia foi acompanhada por um crescendo de agressão, subversão e intromissão em outros lugares. Em particular, a sabotagem russa na Europa aumentou dramaticamente. “Vemos atos de sabotagem acontecendo na Europa agora”, disse o vice-almirante Nils Andreas Stensones, chefe do Serviço de Inteligência Norueguês, em setembro. Sir Richard Moore, chefe do MI6, a agência de inteligência estrangeira do Reino Unido, foi mais direto: “Os serviços de inteligência russos ficaram um pouco selvagens, francamente.”

Os homens do Kremlin espremeram o Ocidente até expulsá-lo de vários estados africanos. Seus hackers, disseram os serviços de segurança da Polônia, tentaram paralisar o país nas esferas política, militar e econômica. Os propagandistas da Rússia espalharam desinformação pelo mundo. Suas forças armadas querem colocar uma arma nuclear em órbita. A política externa russa há muito recorreu ao caos. Agora, parece buscar apenas isso.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa do BRICS Business Forum, em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Comecemos com o verão da sabotagem. Em abril, a Alemanha prendeu dois cidadãos germano-russos suspeitos de estarem planejando ataques a instalações militares americanas e outros alvos em nome do GRU. No mesmo mês, a Polônia prendeu um homem que se preparava para passar ao GRU informações a respeito do aeroporto de Rzeszow, um centro de armas para a Ucrânia, e o Reino Unido acusou vários homens por envolvimento em um ataque incendiário a uma empresa de logística de propriedade ucraniana em Londres. Os homens foram acusados de auxiliar o Grupo Wagner, um grupo mercenário agora sob o controle do GRU.

Em junho, a França prendeu um russo-ucraniano que foi ferido na tentativa de fazer uma bomba em seu quarto de hotel em Paris. Em julho, descobriu-se que a Rússia havia planejado matar Armin Papperger, o chefe da Rheinmetall, a maior empresa de armas da Alemanha. Em 9 de setembro, o tráfego aéreo no aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, foi fechado por mais de duas horas após drones serem avistados sobre as pistas. “Suspeitamos que foi um ato deliberado”, disse um porta-voz da polícia. Autoridades americanas alertam que embarcações russas estão fazendo reconhecimento de cabos submarinos.

Mesmo onde não recorreu à violência, a Rússia tentou agitar as coisas de outras maneiras. Os estados bálticos prenderam várias pessoas pelo que dizem ser provocações patrocinadas pela Rússia. Autoridades de inteligência francesas alegam que a Rússia foi responsável pelo aparecimento de caixões cobertos com a bandeira francesa e com a mensagem “Soldados franceses da Ucrânia” deixados na Torre Eiffel em Paris em junho. Muitas dessas ações visam atiçar a oposição à ajuda à Ucrânia. Mas outras visam simplesmente ampliar divisões sociais de todos os tipos, mesmo que tenham pouca ou nenhuma ligação com a guerra. A França diz que a Rússia também estava por trás do grafite de 250 estrelas de Davi em muros em Paris em novembro, um esforço para alimentar o antissemitismo, que aumentou desde o início do conflito Israel-Hamas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu Conselho de Segurança, em Moscou, Rússia  Foto: Aleksei Nikolsky/AP

Grande parte da atividade da Rússia tem sido virtual. Em abril, parece que hackers ligados ao GRU manipularam sistemas de controle de distribuição de água nos Estados Unidos e na Polônia. Em setembro, EUA, Reino Unido, Ucrânia e vários outros países publicaram detalhes de ataques cibernéticos realizados pela Unidade 29155 do GRU, um grupo conhecido anteriormente por assassinatos na Europa, incluindo um esforço fracassado para envenenar Sergei Skripal, um ex-oficial de inteligência russo. Os esforços cibernéticos do GRU, que estavam em andamento desde pelo menos 2020, não visavam apenas a espionagem, mas também “danos à reputação” por meio do roubo e vazamento de informações e “sabotagem sistemática” por meio da destruição de dados, de acordo com os EUA e seus aliados.

Além da Europa, oficiais do GRU estiveram no Iêmen ao lado dos Houthis, um grupo rebelde que atacou navios no Mar Vermelho, declaradamente em solidariedade aos palestinos. A Rússia, irritada com o fornecimento de mísseis americanos de longo alcance para a Ucrânia, chegou perto de fornecer armas ao grupo em julho, informou a CNN, mas mudou de curso após forte oposição da Arábia Saudita. O fato de Vladimir Putin, presidente da Rússia, estar disposto a alienar Muhammad bin Salman, o governante de fato do reino, a quem ele cortejou por anos, é uma indicação de como a guerra da Rússia canibalizou sua política externa mais ampla.

Tudo em todo lugar

“O que Putin está tentando fazer é nos atingir em todos os lugares”, argumenta Fiona Hill, que anteriormente atuou como a principal autoridade em Rússia no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Ela compara a estratégia ao filme vencedor do Oscar: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Na África, por exemplo, a Rússia usou mercenários para suplantar a influência francesa e americana após golpes em Burkina Faso, Mali e Níger.

A intromissão da Rússia nos EUA assume uma forma muito diferente. Em maio, Avril Haines, diretora de inteligência nacional dos Estados Unidos, chamou a Rússia de “a ameaça estrangeira mais ativa às nossas eleições”, acima da China ou do Irã. Não se tratava apenas de tentar moldar a política dos Estados Unidos a respeito da Ucrânia. “Moscou provavelmente vê essas operações como um meio de derrubar os Estados Unidos enquanto seu principal adversário percebido”, disse ela, “permitindo que a Rússia se promova como uma grande potência”. Em julho, as agências de inteligência americanas disseram que estavam “começando a ver a Rússia mirar em grupos demográficos específicos de eleitores, promover narrativas divisivas e difamar políticos específicos”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cumprimenta o líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, em Pyongyang, Coreia do Norte  Foto: Kristina Kormilitsyna/AP

Esses esforços são geralmente grosseiros e ineficazes. Mas são prolíficos, intensos e, às vezes, inovadores. Em setembro, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou dois funcionários da RT, um meio de comunicação controlado pelo Kremlin que regularmente vomita frases feitas russas e escabrosas teorias da conspiração, de pagar US$ 10 milhões a uma empresa de mídia não identificada no Tennessee. A empresa, supostamente a Tenet Media, postou quase 2.000 vídeos no TikTok, Instagram, X e YouTube (comentaristas pagos pela empresa negaram irregularidades). O departamento também apreendeu 32 domínios de internet controlados pelo Kremlin, projetados para imitar sites de notícias legítimos.

Os propagandistas russos também estão experimentando com a tecnologia. A CopyCop, uma rede de sites, pegou artigos de notícias legítimos e usou o ChatGPT, um modelo de IA, para reescrevê-los. Mais de 90 artigos franceses foram modificados com o prompt: “Reescreva este artigo assumindo uma postura conservadora contra as políticas liberais do governo Macron em favor dos cidadãos franceses da classe trabalhadora”. Outra parte reescrita incluía evidências de suas instruções, dizendo: “Este artigo... destaca o tom cínico em relação ao governo dos EUA, à OTAN e aos políticos dos EUA”.

As campanhas de desinformação russas não são novidade, reconhece Sergey Radchenko, um historiador da política externa russa, apontando episódios como o memorando Tanaka, uma suposta falsificação soviética que foi usada para desacreditar o Japão em 1927. Nem guerras por procuração ou assassinatos são uma novidade. As tropas soviéticas já estavam lutando no Iêmen, disfarçadas de egípcias, no início dos anos 1960, ele observa. Os predecessores e sucessores da KGB mataram muitas pessoas no exterior, de Leon Trotsky ao ex-espião Alexander Litvinenko.

A parte genuinamente nova, diz Radchenko, “é que, enquanto antes as operações especiais apoiavam a política externa, hoje as operações especiais são a política externa”. Dez anos atrás, o Kremlin trabalhou com os EUA e a Europa para combater o programa nuclear do Irã e da Coreia do Norte. Essa cooperação agora é difícil. “É como se os russos sentissem que não têm mais interesse em preservar algo da ordem internacional do pós-guerra”, diz Radchenko. Esse período o lembra mais da política externa niilista de Mao durante a Revolução Cultural da China do que do pensamento da Guerra Fria da União Soviética, que incluía períodos de pragmatismo e cautela. Hill coloca de outra forma: “É mais Trotsky do que Lênin”.

Putin abraça essas ideias. “Estamos provavelmente na década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo mais importante desde o fim da 2.ª Guerra Mundial”, disse ele no final de 2022. “Para citar um clássico”, acrescentou, invocando um artigo de Vladimir Lenin de 1913, “esta é uma situação revolucionária”. Essa crença — de que a ordem do pós-guerra está podre e precisa ser reescrita, pela força se necessário — também dá à Rússia uma causa comum com a China. “Agora mesmo, há mudanças como não víamos há 100 anos”, disse Xi Jinping a Putin no ano passado em Moscou, “e somos nós que impulsionamos essas mudanças juntos”.

A estratégia de política externa russa, publicada em 2023, oferece a garantia branda de que “a Rússia não se considera inimiga do Ocidente… e não tem más intenções”. Um adendo confidencial adquirido pelo Washington Post de um serviço de inteligência europeu sugere o contrário. Ele propõe uma estratégia abrangente de contenção contra uma “coalizão de países hostis” liderada pelos EUA. Isso inclui uma “campanha de informação ofensiva” entre outras ações nas “esferas…militar-política, comercial-econômica e informacional-psicológica”. O objetivo final, observa, é “enfraquecer os adversários da Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião em Bashkortostan, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Isso não significa que a Rússia seja impossível de deter. Ela é cada vez mais uma parceira júnior da China. Sua influência caiu em alguns países, como a Síria. Ela nem sempre respalda seus próprios representantes — dezenas de combatentes do Grupo Wagner foram mortos em uma emboscada por rebeldes malineses, auxiliados pela Ucrânia, em julho. E a subversão russa pode ser interrompida, diz Sir Richard, pelo “bom e velho trabalho de segurança e inteligência” para identificar os oficiais de inteligência e representantes criminosos por trás dela. O fato de a Rússia depender cada vez mais de criminosos para realizar esses atos, em parte porque espiões russos foram expulsos em massa da Europa, é um sinal de desespero. “O uso de representantes pela Rússia reduz ainda mais o profissionalismo de suas operações e — na ausência de imunidade diplomática — aumenta nossas opções de resposta”, diz McCallum.

A intromissão russa tem como objetivo pressionar a Otan sem provocar uma guerra. “Também temos linhas vermelhas”, diz Hill, “e Putin está tentando sentir esses limites”. Mas se ele é realmente movido por um espírito revolucionário, convencido de que o Ocidente é um edifício podre, isso sugere que mais limites serão cruzados nos próximos meses e anos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Vimos incêndio criminoso, sabotagem e mais: ações perigosas conduzidas com crescente imprudência”, alertou Ken McCallum, chefe do MI5, a agência de segurança doméstica e contrainteligência do Reino Unido, a respeito da ameaça representada pela Rússia e pelo GRU, sua agência de inteligência militar. “O GRU em particular está em uma missão contínua para gerar caos nas ruas britânicas e europeias”, disse ele em 8 de outubro. Outras agências de inteligência europeias estão igualmente preocupadas. Em 14 de outubro, Bruno Kahl, chefe de espionagem da Alemanha, disse que as medidas secretas da Rússia atingiram um “nível nunca visto antes”. Thomas Haldenwang, chefe dos serviços de inteligência domésticos da Alemanha, disse aos legisladores que um ato de sabotagem quase causou a queda de um avião no início deste ano, alertando que o “comportamento agressivo” de espiões russos estava colocando vidas em risco.

A guerra da Rússia na Ucrânia foi acompanhada por um crescendo de agressão, subversão e intromissão em outros lugares. Em particular, a sabotagem russa na Europa aumentou dramaticamente. “Vemos atos de sabotagem acontecendo na Europa agora”, disse o vice-almirante Nils Andreas Stensones, chefe do Serviço de Inteligência Norueguês, em setembro. Sir Richard Moore, chefe do MI6, a agência de inteligência estrangeira do Reino Unido, foi mais direto: “Os serviços de inteligência russos ficaram um pouco selvagens, francamente.”

Os homens do Kremlin espremeram o Ocidente até expulsá-lo de vários estados africanos. Seus hackers, disseram os serviços de segurança da Polônia, tentaram paralisar o país nas esferas política, militar e econômica. Os propagandistas da Rússia espalharam desinformação pelo mundo. Suas forças armadas querem colocar uma arma nuclear em órbita. A política externa russa há muito recorreu ao caos. Agora, parece buscar apenas isso.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa do BRICS Business Forum, em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Comecemos com o verão da sabotagem. Em abril, a Alemanha prendeu dois cidadãos germano-russos suspeitos de estarem planejando ataques a instalações militares americanas e outros alvos em nome do GRU. No mesmo mês, a Polônia prendeu um homem que se preparava para passar ao GRU informações a respeito do aeroporto de Rzeszow, um centro de armas para a Ucrânia, e o Reino Unido acusou vários homens por envolvimento em um ataque incendiário a uma empresa de logística de propriedade ucraniana em Londres. Os homens foram acusados de auxiliar o Grupo Wagner, um grupo mercenário agora sob o controle do GRU.

Em junho, a França prendeu um russo-ucraniano que foi ferido na tentativa de fazer uma bomba em seu quarto de hotel em Paris. Em julho, descobriu-se que a Rússia havia planejado matar Armin Papperger, o chefe da Rheinmetall, a maior empresa de armas da Alemanha. Em 9 de setembro, o tráfego aéreo no aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, foi fechado por mais de duas horas após drones serem avistados sobre as pistas. “Suspeitamos que foi um ato deliberado”, disse um porta-voz da polícia. Autoridades americanas alertam que embarcações russas estão fazendo reconhecimento de cabos submarinos.

Mesmo onde não recorreu à violência, a Rússia tentou agitar as coisas de outras maneiras. Os estados bálticos prenderam várias pessoas pelo que dizem ser provocações patrocinadas pela Rússia. Autoridades de inteligência francesas alegam que a Rússia foi responsável pelo aparecimento de caixões cobertos com a bandeira francesa e com a mensagem “Soldados franceses da Ucrânia” deixados na Torre Eiffel em Paris em junho. Muitas dessas ações visam atiçar a oposição à ajuda à Ucrânia. Mas outras visam simplesmente ampliar divisões sociais de todos os tipos, mesmo que tenham pouca ou nenhuma ligação com a guerra. A França diz que a Rússia também estava por trás do grafite de 250 estrelas de Davi em muros em Paris em novembro, um esforço para alimentar o antissemitismo, que aumentou desde o início do conflito Israel-Hamas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu Conselho de Segurança, em Moscou, Rússia  Foto: Aleksei Nikolsky/AP

Grande parte da atividade da Rússia tem sido virtual. Em abril, parece que hackers ligados ao GRU manipularam sistemas de controle de distribuição de água nos Estados Unidos e na Polônia. Em setembro, EUA, Reino Unido, Ucrânia e vários outros países publicaram detalhes de ataques cibernéticos realizados pela Unidade 29155 do GRU, um grupo conhecido anteriormente por assassinatos na Europa, incluindo um esforço fracassado para envenenar Sergei Skripal, um ex-oficial de inteligência russo. Os esforços cibernéticos do GRU, que estavam em andamento desde pelo menos 2020, não visavam apenas a espionagem, mas também “danos à reputação” por meio do roubo e vazamento de informações e “sabotagem sistemática” por meio da destruição de dados, de acordo com os EUA e seus aliados.

Além da Europa, oficiais do GRU estiveram no Iêmen ao lado dos Houthis, um grupo rebelde que atacou navios no Mar Vermelho, declaradamente em solidariedade aos palestinos. A Rússia, irritada com o fornecimento de mísseis americanos de longo alcance para a Ucrânia, chegou perto de fornecer armas ao grupo em julho, informou a CNN, mas mudou de curso após forte oposição da Arábia Saudita. O fato de Vladimir Putin, presidente da Rússia, estar disposto a alienar Muhammad bin Salman, o governante de fato do reino, a quem ele cortejou por anos, é uma indicação de como a guerra da Rússia canibalizou sua política externa mais ampla.

Tudo em todo lugar

“O que Putin está tentando fazer é nos atingir em todos os lugares”, argumenta Fiona Hill, que anteriormente atuou como a principal autoridade em Rússia no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Ela compara a estratégia ao filme vencedor do Oscar: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Na África, por exemplo, a Rússia usou mercenários para suplantar a influência francesa e americana após golpes em Burkina Faso, Mali e Níger.

A intromissão da Rússia nos EUA assume uma forma muito diferente. Em maio, Avril Haines, diretora de inteligência nacional dos Estados Unidos, chamou a Rússia de “a ameaça estrangeira mais ativa às nossas eleições”, acima da China ou do Irã. Não se tratava apenas de tentar moldar a política dos Estados Unidos a respeito da Ucrânia. “Moscou provavelmente vê essas operações como um meio de derrubar os Estados Unidos enquanto seu principal adversário percebido”, disse ela, “permitindo que a Rússia se promova como uma grande potência”. Em julho, as agências de inteligência americanas disseram que estavam “começando a ver a Rússia mirar em grupos demográficos específicos de eleitores, promover narrativas divisivas e difamar políticos específicos”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cumprimenta o líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, em Pyongyang, Coreia do Norte  Foto: Kristina Kormilitsyna/AP

Esses esforços são geralmente grosseiros e ineficazes. Mas são prolíficos, intensos e, às vezes, inovadores. Em setembro, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou dois funcionários da RT, um meio de comunicação controlado pelo Kremlin que regularmente vomita frases feitas russas e escabrosas teorias da conspiração, de pagar US$ 10 milhões a uma empresa de mídia não identificada no Tennessee. A empresa, supostamente a Tenet Media, postou quase 2.000 vídeos no TikTok, Instagram, X e YouTube (comentaristas pagos pela empresa negaram irregularidades). O departamento também apreendeu 32 domínios de internet controlados pelo Kremlin, projetados para imitar sites de notícias legítimos.

Os propagandistas russos também estão experimentando com a tecnologia. A CopyCop, uma rede de sites, pegou artigos de notícias legítimos e usou o ChatGPT, um modelo de IA, para reescrevê-los. Mais de 90 artigos franceses foram modificados com o prompt: “Reescreva este artigo assumindo uma postura conservadora contra as políticas liberais do governo Macron em favor dos cidadãos franceses da classe trabalhadora”. Outra parte reescrita incluía evidências de suas instruções, dizendo: “Este artigo... destaca o tom cínico em relação ao governo dos EUA, à OTAN e aos políticos dos EUA”.

As campanhas de desinformação russas não são novidade, reconhece Sergey Radchenko, um historiador da política externa russa, apontando episódios como o memorando Tanaka, uma suposta falsificação soviética que foi usada para desacreditar o Japão em 1927. Nem guerras por procuração ou assassinatos são uma novidade. As tropas soviéticas já estavam lutando no Iêmen, disfarçadas de egípcias, no início dos anos 1960, ele observa. Os predecessores e sucessores da KGB mataram muitas pessoas no exterior, de Leon Trotsky ao ex-espião Alexander Litvinenko.

A parte genuinamente nova, diz Radchenko, “é que, enquanto antes as operações especiais apoiavam a política externa, hoje as operações especiais são a política externa”. Dez anos atrás, o Kremlin trabalhou com os EUA e a Europa para combater o programa nuclear do Irã e da Coreia do Norte. Essa cooperação agora é difícil. “É como se os russos sentissem que não têm mais interesse em preservar algo da ordem internacional do pós-guerra”, diz Radchenko. Esse período o lembra mais da política externa niilista de Mao durante a Revolução Cultural da China do que do pensamento da Guerra Fria da União Soviética, que incluía períodos de pragmatismo e cautela. Hill coloca de outra forma: “É mais Trotsky do que Lênin”.

Putin abraça essas ideias. “Estamos provavelmente na década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo mais importante desde o fim da 2.ª Guerra Mundial”, disse ele no final de 2022. “Para citar um clássico”, acrescentou, invocando um artigo de Vladimir Lenin de 1913, “esta é uma situação revolucionária”. Essa crença — de que a ordem do pós-guerra está podre e precisa ser reescrita, pela força se necessário — também dá à Rússia uma causa comum com a China. “Agora mesmo, há mudanças como não víamos há 100 anos”, disse Xi Jinping a Putin no ano passado em Moscou, “e somos nós que impulsionamos essas mudanças juntos”.

A estratégia de política externa russa, publicada em 2023, oferece a garantia branda de que “a Rússia não se considera inimiga do Ocidente… e não tem más intenções”. Um adendo confidencial adquirido pelo Washington Post de um serviço de inteligência europeu sugere o contrário. Ele propõe uma estratégia abrangente de contenção contra uma “coalizão de países hostis” liderada pelos EUA. Isso inclui uma “campanha de informação ofensiva” entre outras ações nas “esferas…militar-política, comercial-econômica e informacional-psicológica”. O objetivo final, observa, é “enfraquecer os adversários da Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião em Bashkortostan, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Isso não significa que a Rússia seja impossível de deter. Ela é cada vez mais uma parceira júnior da China. Sua influência caiu em alguns países, como a Síria. Ela nem sempre respalda seus próprios representantes — dezenas de combatentes do Grupo Wagner foram mortos em uma emboscada por rebeldes malineses, auxiliados pela Ucrânia, em julho. E a subversão russa pode ser interrompida, diz Sir Richard, pelo “bom e velho trabalho de segurança e inteligência” para identificar os oficiais de inteligência e representantes criminosos por trás dela. O fato de a Rússia depender cada vez mais de criminosos para realizar esses atos, em parte porque espiões russos foram expulsos em massa da Europa, é um sinal de desespero. “O uso de representantes pela Rússia reduz ainda mais o profissionalismo de suas operações e — na ausência de imunidade diplomática — aumenta nossas opções de resposta”, diz McCallum.

A intromissão russa tem como objetivo pressionar a Otan sem provocar uma guerra. “Também temos linhas vermelhas”, diz Hill, “e Putin está tentando sentir esses limites”. Mas se ele é realmente movido por um espírito revolucionário, convencido de que o Ocidente é um edifício podre, isso sugere que mais limites serão cruzados nos próximos meses e anos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

“Vimos incêndio criminoso, sabotagem e mais: ações perigosas conduzidas com crescente imprudência”, alertou Ken McCallum, chefe do MI5, a agência de segurança doméstica e contrainteligência do Reino Unido, a respeito da ameaça representada pela Rússia e pelo GRU, sua agência de inteligência militar. “O GRU em particular está em uma missão contínua para gerar caos nas ruas britânicas e europeias”, disse ele em 8 de outubro. Outras agências de inteligência europeias estão igualmente preocupadas. Em 14 de outubro, Bruno Kahl, chefe de espionagem da Alemanha, disse que as medidas secretas da Rússia atingiram um “nível nunca visto antes”. Thomas Haldenwang, chefe dos serviços de inteligência domésticos da Alemanha, disse aos legisladores que um ato de sabotagem quase causou a queda de um avião no início deste ano, alertando que o “comportamento agressivo” de espiões russos estava colocando vidas em risco.

A guerra da Rússia na Ucrânia foi acompanhada por um crescendo de agressão, subversão e intromissão em outros lugares. Em particular, a sabotagem russa na Europa aumentou dramaticamente. “Vemos atos de sabotagem acontecendo na Europa agora”, disse o vice-almirante Nils Andreas Stensones, chefe do Serviço de Inteligência Norueguês, em setembro. Sir Richard Moore, chefe do MI6, a agência de inteligência estrangeira do Reino Unido, foi mais direto: “Os serviços de inteligência russos ficaram um pouco selvagens, francamente.”

Os homens do Kremlin espremeram o Ocidente até expulsá-lo de vários estados africanos. Seus hackers, disseram os serviços de segurança da Polônia, tentaram paralisar o país nas esferas política, militar e econômica. Os propagandistas da Rússia espalharam desinformação pelo mundo. Suas forças armadas querem colocar uma arma nuclear em órbita. A política externa russa há muito recorreu ao caos. Agora, parece buscar apenas isso.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa do BRICS Business Forum, em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

Comecemos com o verão da sabotagem. Em abril, a Alemanha prendeu dois cidadãos germano-russos suspeitos de estarem planejando ataques a instalações militares americanas e outros alvos em nome do GRU. No mesmo mês, a Polônia prendeu um homem que se preparava para passar ao GRU informações a respeito do aeroporto de Rzeszow, um centro de armas para a Ucrânia, e o Reino Unido acusou vários homens por envolvimento em um ataque incendiário a uma empresa de logística de propriedade ucraniana em Londres. Os homens foram acusados de auxiliar o Grupo Wagner, um grupo mercenário agora sob o controle do GRU.

Em junho, a França prendeu um russo-ucraniano que foi ferido na tentativa de fazer uma bomba em seu quarto de hotel em Paris. Em julho, descobriu-se que a Rússia havia planejado matar Armin Papperger, o chefe da Rheinmetall, a maior empresa de armas da Alemanha. Em 9 de setembro, o tráfego aéreo no aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, foi fechado por mais de duas horas após drones serem avistados sobre as pistas. “Suspeitamos que foi um ato deliberado”, disse um porta-voz da polícia. Autoridades americanas alertam que embarcações russas estão fazendo reconhecimento de cabos submarinos.

Mesmo onde não recorreu à violência, a Rússia tentou agitar as coisas de outras maneiras. Os estados bálticos prenderam várias pessoas pelo que dizem ser provocações patrocinadas pela Rússia. Autoridades de inteligência francesas alegam que a Rússia foi responsável pelo aparecimento de caixões cobertos com a bandeira francesa e com a mensagem “Soldados franceses da Ucrânia” deixados na Torre Eiffel em Paris em junho. Muitas dessas ações visam atiçar a oposição à ajuda à Ucrânia. Mas outras visam simplesmente ampliar divisões sociais de todos os tipos, mesmo que tenham pouca ou nenhuma ligação com a guerra. A França diz que a Rússia também estava por trás do grafite de 250 estrelas de Davi em muros em Paris em novembro, um esforço para alimentar o antissemitismo, que aumentou desde o início do conflito Israel-Hamas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu Conselho de Segurança, em Moscou, Rússia  Foto: Aleksei Nikolsky/AP

Grande parte da atividade da Rússia tem sido virtual. Em abril, parece que hackers ligados ao GRU manipularam sistemas de controle de distribuição de água nos Estados Unidos e na Polônia. Em setembro, EUA, Reino Unido, Ucrânia e vários outros países publicaram detalhes de ataques cibernéticos realizados pela Unidade 29155 do GRU, um grupo conhecido anteriormente por assassinatos na Europa, incluindo um esforço fracassado para envenenar Sergei Skripal, um ex-oficial de inteligência russo. Os esforços cibernéticos do GRU, que estavam em andamento desde pelo menos 2020, não visavam apenas a espionagem, mas também “danos à reputação” por meio do roubo e vazamento de informações e “sabotagem sistemática” por meio da destruição de dados, de acordo com os EUA e seus aliados.

Além da Europa, oficiais do GRU estiveram no Iêmen ao lado dos Houthis, um grupo rebelde que atacou navios no Mar Vermelho, declaradamente em solidariedade aos palestinos. A Rússia, irritada com o fornecimento de mísseis americanos de longo alcance para a Ucrânia, chegou perto de fornecer armas ao grupo em julho, informou a CNN, mas mudou de curso após forte oposição da Arábia Saudita. O fato de Vladimir Putin, presidente da Rússia, estar disposto a alienar Muhammad bin Salman, o governante de fato do reino, a quem ele cortejou por anos, é uma indicação de como a guerra da Rússia canibalizou sua política externa mais ampla.

Tudo em todo lugar

“O que Putin está tentando fazer é nos atingir em todos os lugares”, argumenta Fiona Hill, que anteriormente atuou como a principal autoridade em Rússia no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Ela compara a estratégia ao filme vencedor do Oscar: “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Na África, por exemplo, a Rússia usou mercenários para suplantar a influência francesa e americana após golpes em Burkina Faso, Mali e Níger.

A intromissão da Rússia nos EUA assume uma forma muito diferente. Em maio, Avril Haines, diretora de inteligência nacional dos Estados Unidos, chamou a Rússia de “a ameaça estrangeira mais ativa às nossas eleições”, acima da China ou do Irã. Não se tratava apenas de tentar moldar a política dos Estados Unidos a respeito da Ucrânia. “Moscou provavelmente vê essas operações como um meio de derrubar os Estados Unidos enquanto seu principal adversário percebido”, disse ela, “permitindo que a Rússia se promova como uma grande potência”. Em julho, as agências de inteligência americanas disseram que estavam “começando a ver a Rússia mirar em grupos demográficos específicos de eleitores, promover narrativas divisivas e difamar políticos específicos”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, cumprimenta o líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, em Pyongyang, Coreia do Norte  Foto: Kristina Kormilitsyna/AP

Esses esforços são geralmente grosseiros e ineficazes. Mas são prolíficos, intensos e, às vezes, inovadores. Em setembro, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou dois funcionários da RT, um meio de comunicação controlado pelo Kremlin que regularmente vomita frases feitas russas e escabrosas teorias da conspiração, de pagar US$ 10 milhões a uma empresa de mídia não identificada no Tennessee. A empresa, supostamente a Tenet Media, postou quase 2.000 vídeos no TikTok, Instagram, X e YouTube (comentaristas pagos pela empresa negaram irregularidades). O departamento também apreendeu 32 domínios de internet controlados pelo Kremlin, projetados para imitar sites de notícias legítimos.

Os propagandistas russos também estão experimentando com a tecnologia. A CopyCop, uma rede de sites, pegou artigos de notícias legítimos e usou o ChatGPT, um modelo de IA, para reescrevê-los. Mais de 90 artigos franceses foram modificados com o prompt: “Reescreva este artigo assumindo uma postura conservadora contra as políticas liberais do governo Macron em favor dos cidadãos franceses da classe trabalhadora”. Outra parte reescrita incluía evidências de suas instruções, dizendo: “Este artigo... destaca o tom cínico em relação ao governo dos EUA, à OTAN e aos políticos dos EUA”.

As campanhas de desinformação russas não são novidade, reconhece Sergey Radchenko, um historiador da política externa russa, apontando episódios como o memorando Tanaka, uma suposta falsificação soviética que foi usada para desacreditar o Japão em 1927. Nem guerras por procuração ou assassinatos são uma novidade. As tropas soviéticas já estavam lutando no Iêmen, disfarçadas de egípcias, no início dos anos 1960, ele observa. Os predecessores e sucessores da KGB mataram muitas pessoas no exterior, de Leon Trotsky ao ex-espião Alexander Litvinenko.

A parte genuinamente nova, diz Radchenko, “é que, enquanto antes as operações especiais apoiavam a política externa, hoje as operações especiais são a política externa”. Dez anos atrás, o Kremlin trabalhou com os EUA e a Europa para combater o programa nuclear do Irã e da Coreia do Norte. Essa cooperação agora é difícil. “É como se os russos sentissem que não têm mais interesse em preservar algo da ordem internacional do pós-guerra”, diz Radchenko. Esse período o lembra mais da política externa niilista de Mao durante a Revolução Cultural da China do que do pensamento da Guerra Fria da União Soviética, que incluía períodos de pragmatismo e cautela. Hill coloca de outra forma: “É mais Trotsky do que Lênin”.

Putin abraça essas ideias. “Estamos provavelmente na década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo mais importante desde o fim da 2.ª Guerra Mundial”, disse ele no final de 2022. “Para citar um clássico”, acrescentou, invocando um artigo de Vladimir Lenin de 1913, “esta é uma situação revolucionária”. Essa crença — de que a ordem do pós-guerra está podre e precisa ser reescrita, pela força se necessário — também dá à Rússia uma causa comum com a China. “Agora mesmo, há mudanças como não víamos há 100 anos”, disse Xi Jinping a Putin no ano passado em Moscou, “e somos nós que impulsionamos essas mudanças juntos”.

A estratégia de política externa russa, publicada em 2023, oferece a garantia branda de que “a Rússia não se considera inimiga do Ocidente… e não tem más intenções”. Um adendo confidencial adquirido pelo Washington Post de um serviço de inteligência europeu sugere o contrário. Ele propõe uma estratégia abrangente de contenção contra uma “coalizão de países hostis” liderada pelos EUA. Isso inclui uma “campanha de informação ofensiva” entre outras ações nas “esferas…militar-política, comercial-econômica e informacional-psicológica”. O objetivo final, observa, é “enfraquecer os adversários da Rússia”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião em Bashkortostan, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Isso não significa que a Rússia seja impossível de deter. Ela é cada vez mais uma parceira júnior da China. Sua influência caiu em alguns países, como a Síria. Ela nem sempre respalda seus próprios representantes — dezenas de combatentes do Grupo Wagner foram mortos em uma emboscada por rebeldes malineses, auxiliados pela Ucrânia, em julho. E a subversão russa pode ser interrompida, diz Sir Richard, pelo “bom e velho trabalho de segurança e inteligência” para identificar os oficiais de inteligência e representantes criminosos por trás dela. O fato de a Rússia depender cada vez mais de criminosos para realizar esses atos, em parte porque espiões russos foram expulsos em massa da Europa, é um sinal de desespero. “O uso de representantes pela Rússia reduz ainda mais o profissionalismo de suas operações e — na ausência de imunidade diplomática — aumenta nossas opções de resposta”, diz McCallum.

A intromissão russa tem como objetivo pressionar a Otan sem provocar uma guerra. “Também temos linhas vermelhas”, diz Hill, “e Putin está tentando sentir esses limites”. Mas se ele é realmente movido por um espírito revolucionário, convencido de que o Ocidente é um edifício podre, isso sugere que mais limites serão cruzados nos próximos meses e anos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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