ASSOCIATED PRESS — Num recinto ultraestéril de uma protegida e vigiada instalação industrial em Kansas City, técnicos do governo dos Estados Unidos dão manutenção às ogivas atômicas do país. O trabalho é minucioso: cada ogiva possui milhares de molas, engrenagens e contatos de cobre que têm de funcionar em conjunção para produzir uma explosão nuclear.
A cerca de 1,3 mil quilômetros de lá, no Novo México, técnicos em uma câmara revestida de aço têm uma tarefa igualmente delicada. Usando monitores de radiação, óculos de proteção e sete camadas de luvas, eles treinam técnicas de moldagem de novos núcleos de plutônio de ogivas — manualmente.
E em bases que guardam armas nucleares em todo o país, jovens soldados mantêm funcionando ogivas de 50 anos até que suas substitutas fiquem prontas. Um fino arranhão no cone negro polido de uma ogiva é capaz de tirar a bomba de curso.
A Associated Press obteve um raro acesso a setores críticos da altamente confidencial cadeia de fornecimento nuclear dos EUA e pôde assistir técnicos e engenheiros cumprindo a difícil tarefa de dar manutenção ao envelhecido arsenal nuclear americano. Esses profissionais estão prestes a ficar muito mais ocupados. Os EUA gastarão mais de US$ 750 bilhões ao longo dos próximos 10 anos substituindo quase todos os componentes de suas defesas atômicas, incluindo novos bombardeiros furtivos, submarinos e mísseis balísticos intercontinentais lançados da terra, no mais ambiciosos esforço americano em armas nucleares desde o Projeto Manhattan.
Passaram-se quase oito décadas desde que uma arma nuclear foi disparada em uma guerra. Mas líderes militares alertam que essa paz pode não durar, afirmam que os EUA entraram em uma era de ameaças globais que inclui um fortalecimento atômico da China e as repetidas ameaças da Rússia de usar uma bomba nuclear na Ucrânia, dizem que as envelhecidas armas atômicas dos EUA precisam ser substituídas para garantir seu funcionamento.
“O que nós queremos é preservar nosso modo de vida sem combater em guerras grandes”, afirmou o diretor do programa de armas do Departamento de Energia, Marvin Adams. “Nada na nossa caixa de ferramentas trabalha realmente para dissuadir agressores se não tivermos aquela fundação de dissuasão nuclear.”
Por tratado, os EUA mantêm 1.550 ogivas nucleares ativas, e o governo planeja modernizar todas. Ao mesmo tempo, técnicos, cientistas e equipes militares de operadores de mísseis devem garantir que as armas antigas continuem funcionando até que as novas sejam instaladas.
O projeto é tão ambicioso que entes fiscalizadores alertam que o governo poderá não atender suas metas. O programa também atraiu críticas de defensores da não proliferação nuclear e especialistas alertando que o atual arsenal, apesar de desgastado pelo tempo, é suficiente para atender às demandas dos EUA. Atualizá-lo também sairá caro, afirmam eles.
“Eles terão extrema dificuldade em cumprir esses prazos”, disse Daryl Kimball, diretor-executivo da Associação de Controle de Armas, um grupo apartidário com foco em controle de armamentos nucleares e convencionais. “E os custos aumentarão.”
Kimball alertou que as substituições massivas também poderiam surtir o efeito indesejado de pressionar Rússia e China a melhorar e expandir seus arsenais.
Onde tudo começa
O núcleo de toda ogiva nuclear é uma estrutura oca de plutônio em forma de globo, fabricada por engenheiros do laboratório do Departamento de Energia, em Los Alamos, Novo México, o local de nascimento da bomba atômica. Muitos dos núcleos atuais foram fabricados nos anos 70 e 80. Isso pode ser problemático, porque há muita coisa a respeito do processo de envelhecimento do plutônio que os cientistas ainda não entendem.
O átomo crítico no núcleo de plutônio tem meia-vida de 24 mil anos, o tempo que leva para aproximadamente metade dos átomos radioativos presentes decair. Isso poderia sugerir que as armas seriam viáveis por anos. Mas o decaimento do plutônio ainda é suficiente para causar preocupação sobre a maneira que o fenômeno poderia afetar como a bomba nuclear explode.
O ex-presidente George H.W. Bush assinou uma ordem nos anos 90 banindo testes atômicos subterrâneos, e desde então os EUA deixaram de detonar bombas nucleares para atualizar dados a respeito de sua degradação. Os últimos testes realizados produziram dados sobre núcleos de quase duas décadas. Aquela geração de bombas está hoje passando dos 50.
Bob Webster, vice-diretor de armas em Los Alamos, afirmou que cientistas têm confiado em modelos computacionais para determinar como essas bombas antigas desempenhariam, mas “todo o nosso trabalho é uma extrapolação”, afirmou ele.
Essa incerteza pressionou o departamento a reiniciar a produção de ogivas. Os EUA não produzem mais plutônio manualmente. Em vez disso, o plutônio antigo é essencialmente recolocado em estruturas de bombas novas.
Esse trabalho ocorre dentro do PF-4, um edifício altamente secreto em Los Alamos, cercado de guardas armados, portas de aço pesadas e monitores de radiação. Nas instalações, os funcionários manipulam o plutônio dentro de caixas de aço, o que lhes permite limpar e processar o material sem se expor à radiação mortífera.
Nos passos finais da produção, uma funcionária solitária no recinto leva o núcleo quase completo com ambas as mãos, enluvadas, e o molda em sua forma final.
“As coisas tem de se encaixar de uma determinada maneira, e tudo é pelo toque, pela sensação”, afirmou a funcionária de Los Alamos, que a AP concordou em não informar o nome porque ela é uma das poucas pessoas nos EUA — e a única mulher — que realiza esse sensível trabalho.
Ao longo aproximadamente dos últimos dez anos, técnicos têm praticado em “estruturas-teste” , que não estão prontas para entrar no arsenal. Os EUA planejam reciclar completamente seu primeiro núcleo de plutônio no próximo ano — e aumentar rapidamente sua produção anual para até 80 novas estruturas.
O meticuloso e perigoso trabalho levou uma agência que fiscaliza o governo a expressar dúvidas sobre Washington ser ou não capaz de alcançar essa meta.
“Os EUA não fabricam regularmente núcleos de plutônio desde 1989″, notou o Escritório de Auditoria do Governo em um relatório de 2023, acrescentando que a Administração Nacional de Segurança Nuclear, do Departamento de Energia, forneceu “garantia limitada de que será capaz de produzir números suficientes de núcleos”.
Webster trabalha em Los Alamos desde que Ronald Reagan era presidente. Ele poderia ter se aposentado anos atrás, mas ficou para orientar a produção dos primeiros novos núcleos de plutônio. Ele afirmou que o laboratório voltou a parecer como era nos anos 80, durante a Guerra Fria. Os cientistas em Los Alamos estão em debates intensos a respeito de projetos de armas: quanto cada uma pode pesar, sua potência explosiva, o alcance devido.
“Nós precisamos que a nossa nação volte a fabricar núcleos de plutônio”, afirmou Webster. “Nós simplesmente precisamos dessa capacidade.”
A ogiva e o relógio de pulso
Núcleos completos são protegidos e detonados por uma ogiva externa que é construída no Campus de Segurança Nacional do Departamento de Energia em Kansas City. Dentro do edifício industrial sem janelas, técnicos e engenheiros restauram e testam esses componentes de ogivas, um trabalho que uma agência de fiscalização do governo afirmou exigir “uma grande precisão em manufatura para atender exatamente às especificações”.
Há milhares de componentes minúsculos em cada ogiva, portanto mãos firmes são um atributo crucial. Por este motivo os técnicos passam por uma avaliação de habilidades que inclui desmontar e remontar um relógio de pulso mecânico.
“Tudo é feito sob um microscópio, com pinças”, afirmou a porta-voz da fábrica de Kansas City, Molly Hadfield. “E o candidato passa ou fracassa, o relógio funciona ou não.”
Esta fábrica estaria movimentada mesmo se a reforma não estivesse em andamento. Todas as ogivas nucleares têm requerimentos de manutenção regular. Seus plásticos envelhecem, e seus mecanismos metálicos e fiação enfraquecem em razão dos anos expostos à radiação.
A fábrica também trabalha em ogivas para armar o B-21 Raider, um futurístico bombardeiro furtivo, o Sentinel, um novo míssil balístico intercontinental, e uma nova classe de submarinos.
Saiba mais
“Há um enorme esforço de modernização em andamento”, afirmou Eric Wollerman, que administra o complexo de Kansas City para o Departamento de Energia por meio do contrato federal com a empresa Honeywell. “Se nós vamos atualizar os sistemas de entrega, é melhor logo atualizar as ogivas nos mísseis e suas bombas.”
Para atender à demanda tanto de manutenção quanto de modernização, a fábrica de Kansas City passou por uma onda de contratações e conta atualmente com 6,7 mil funcionários, um salto de 40% desde 2018, com planos de aumentar o quadro com outras centenas de profissionais. O laboratório em Los Alamos contratou mais de 4 mil funcionários nesse mesmo período.
Mísseis velhos, soldados jovens
O arsenal nuclear dos EUA revela sua idade toda vez que os soldados consertam um míssil. Isso pode ocorrer até duas vezes por semana, mas apenas se os igualmente velhos equipamentos, ou os caminhões que carregam os equipamentos, ou os caminhões necessários para transportar os próprios mísseis também não quebram, o que ocorre com frequência. É por esse motivo que o aviador de 1.ª classe Jonathan Marrs arrastava um reboque de alumínio de 102 quilos, pela segunda vez, para um silo de concreto no meio da vastidão rural de Montana, numa tarde recente.
Marrs, de 21 anos, e outros aviadores usaram o reboque e ferramentas do tamanho de fêmures para deslocar a porta resistente a explosões, de 110 toneladas, do silo do Bravo-9. Debaixo de sua cobertura de cimento e aço estava um míssil nuclear de 31.750 quilos; a ogiva do míssil teve de ser içada e colocada em um caminhão para ser transportada à base para manutenção.
Mas a porta nem se mexeu. O primeiro reboque de 102 quilos, ou mula como os soldados apelidam o equipamento, não gerou potência suficiente para deslocar a porta. Depois de conectar uma segunda mula, Marrs e os outros aviadores conseguiram abrir a porta, libertando dezenas de ratos.
Os técnicos de manutenção soltaram, então, a ogiva do míssil e a colocaram em um caminhão especializado. A ogiva foi então transportada com escolta do corpo de segurança Força Aérea para um hangar fortemente guardado na Base da Força Área Malmstrom, em Montana.
Marrs e os outros aviadores — conhecidos como “mantenedores” — são monitorados proximamente quando lidam com armas nucleares, afirmaram autoridades da Força Aérea dos EUA.
“Se eu encho insuficientemente a bola de basquete no ginásio, ninguém se importa”, afirmou o primeiro-sargento Andrew Zahm, líder da unidade de manutenção da Base da Força Aérea F.E. Warren “Se eu fizer algo errado com uma dessas armas, o presidente fica sabendo em 45 minutos.”
A carga de trabalho já é pesada para esses soldados, e não há muitas maneiras fáceis de aliviá-la.
Enquanto as fábricas administradas pelo setor privado em Los Alamos e Kansas City contrataram funcionários para atender à crescente demanda de trabalho, os militares têm tido dificuldades para preencher vagas e manter técnicos experientes. E os técnicos militares têm sido obrigados a trabalhar mais e por muito menos dinheiro do que poderiam obter com empresas privadas que trabalham para o governo. “Quando começam a mostrar para um terceiro-sargento os US$ 80 mil” que ele poderia ganhar no setor privado, ele pega, afirmou Zahm.
Zahm é um caso raro. Enquanto muitos de seus colegas se aposentaram ou partiram para o setor privado, ele permaneceu servindo à missão nuclear. Com os EUA tão próximos de uma nova arma em muito tempo, ele é movido por um desejo de ver a bomba pronta. “Eu não vi nenhuma novidade em 21 anos”, afirmou Zahm. “Quero ver o que há de novo.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO