Como os EUA usam a Otan para projetar influência na Europa; leia análise


Os líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) reunidos esta semana em Vilna, Lituânia, têm todo motivo para celebrar seu sucesso

Por Grey Anderson e Thomas Meaney

THE NEW YORK TIMES - Há apenas quatro anos, às vésperas de outra cúpula, a aliança parecia em maus lençóis; nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron, a organização se encontrava em estado de “morte cerebral”. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, contudo, a situação se transformou. Conforme a Otan planeja as boas-vindas da Suécia às suas fileiras — a Finlândia tornou-se membro pleno em abril — e despachar tropas para reforçar seu flanco oriental, os aliados da União Europeia estão finalmente cumprindo promessas longamente proteladas de aumentar seu gasto militar. A opinião pública seguiu a toada. Se a Rússia buscou dividir a Europa, o presidente Joe Biden pôde declarar plausivelmente na primavera passada (Hemisfério Norte) que, em vez disso, Moscou “Otanizou” complemente o continente.

Essa guinada energizou, compreensivelmente, os apoiadores da aliança. A declaração de propósito de Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, de que “a força da Otan é a melhor ferramenta possível de que dispomos para manter a paz e a segurança” nunca teve tantos adeptos leais. Mesmo os críticos da organização — como beligerantes chineses que a consideram uma distração da ameaça real no Leste Asiático e pregadores da contenção que prefeririam ver Washington recolocar o foco em soluções diplomáticas e problemas domésticos — reconhecem que o propósito da Otan é primeiramente a defesa da Europa.

Mas desde suas origens a Otan nunca esteve preocupada principalmente em agregar poder militar. Destacando 100 divisões no auge da Guerra Fria, uma pequena fração do contingente do Pacto de Varsóvia, a organização não seria capaz de repelir uma invasão soviética, e até as armas nucleares estacionadas no continente estavam sob controle de Washington. Em vez de perseguir esse objetivo, a aliança foi estabelecida para amarrar a Europa Ocidental a um projeto muito mais abrangente de uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, no qual a proteção dos americanos serviu como um mecanismo para obter concessões em relação a outros temas, como comércio e política monetária. Nessa missão, a Otan se provou excepcionalmente bem-sucedida.

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Ministros das Relações Exteriores da Otan posam durante uma cerimônia para hastear bandeiras em abril Foto: Olivier Matthys/AP

Muitos observadores esperavam que a Otan fosse fechar a lojinha após o colapso de seu rival na Guerra Fria. Mas na década que se seguiu a 1989 a organização encontrou sua verdadeira vocação, passando a agir como uma agência de avaliação de risco para a União Europeia no Leste Europeu, declarando países seguros ou não para empreendimentos e investimentos. A organização pressionou pretensos parceiros a aderir ao credo liberal, pró-mercado, segundo o qual — conforme colocou o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Bill Clinton — “a busca por instituições democráticas, a expansão dos livres mercados” e “a promoção da segurança coletiva” marchavam lado a lado. Militares profissionais europeus e elites de mentalidade reformadora formaram um eleitorado solícito com suas campanhas impulsionadas pelo aparato de informação da Otan.

Quando povos europeus provaram-se teimosos demais — ou compreensivelmente imbuídos de sentimentos socialistas ou nacionalistas — a integração atlântica procedeu da mesma forma. A República Checa foi um caso revelador. Diante de um referendo que tendia a decidir por não juntar-se à aliança, em 1997, então secretário-geral e outras graduadas autoridades da Otan trabalharam para que Praga simplesmente abandonasse a consulta; e o país entrou na organização dois anos depois. O novo século trouxe mais do mesmo, com uma alteração apropriada na ênfase. Coincidindo com a guerra global contra o terrorismo, a expansão explosiva de 2004 — na qual sete países adeririam — testemunhou o contraterrorismo ultrapassar a democracia e os direitos humanos na retórica da aliança. A ênfase em necessidades de liberalizações e reformas em setores públicos continuou uma constante.

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A aliança não foi tão promovida no campo da defesa. Por décadas, os EUA foram o principal fornecedor de armas, logística, bases aéreas e planos de batalha. Apesar de todo burburinho sobre a Europa se apresentar, a guerra na Ucrânia deixou essa assimetria essencialmente intocada. De modo revelador, a escala da ajuda militar americana — US$ 47 bilhões ao longo do primeiro ano do conflito — é mais de duas vezes maior do que a oferecida por todos os países da União Europeia combinados. As promessas de gastos dos europeus também poderão se provar menos impressionantes do que aparentam. Mais de um ano depois do governo alemão anunciar a criação de um fundo especial de US$ 110 bilhões para suas Forças Armadas, a maior parte desses recursos permanece intacta. Nesse meio-tempo, comandantes militares alemães têm afirmado que não possuem munição para mais que dois dias de combates de alta intensidade.

Sejam quais forem os níveis de gastos, é notável a pouca capacidade militar que os europeus recebem em troca das despesas envolvidas. Falta de coordenação — tanto quanto mesquinhez — paralisa a capacidade da Europa de garantir sua própria segurança. Ao proibir a duplicação das capacidades existentes e persuadir os aliados a aceitar papéis setorizados, a Otan entravou a ascensão de qualquer força europeia semiautônoma capaz de alguma ação independente. Enquanto aquisições de defesa, padrões comuns para interoperacionalidade aliados com o gigantismo do setor militar-industrial americano e os impedimentos burocráticos em Bruxelas favorecem empresas americanas em detrimento de competidoras europeias. A aliança, paradoxalmente, parece ter enfraquecido a capacidade dos aliados de se defender.

As bandeiras da Ucrânia e da Otan são fotografadas em Vilna, Lituânia  Foto: Petras Malukas/AFP
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Mas o paradoxo é apenas superficial. Na realidade, a Otan opera exatamente da maneira como foi planejada pelos estrategistas americanos do pós-guerra, atraindo a Europa para uma dependência em relação ao poder americano que reduz seu campo de manobra. Longe de ser um dispendioso programa de caridade, a Otan assegura a influência dos EUA na Europa a baixo custo. As contribuições para a Otan e outros programas de assistência de segurança na Europa representam uma pequena fração do orçamento anual do Pentágono — menos de 6% segundo uma estimativa recente. E a atual guerra apenas intensificou o pulso dos EUA. Antes da invasão russa à Ucrânia, aproximadamente a metade do gasto militar europeu tinha como destino empresas americanas. A demanda em elevação exacerbou essa tendência conforme países se apressam para comprar tanques, caças de combate e outros sistemas de armamentos, vinculando-se a contratos dispendiosos de vários anos. A Europa pode estar se remilitarizando, mas os EUA estão colhendo as recompensas.

Na Ucrânia o padrão é claro. Washington fornecerá a segurança militar e as corporações americanas se beneficiarão da bonança de encomendas de armamentos dos europeus, enquanto os europeus arcarão com os custos da reconstrução — algo que a Alemanha está mais bem posicionada para operar do que a ampliação de suas Forças Armadas. A guerra também serve de ensaio com figurino para o confronto entre EUA e China, no qual não será tão fácil contar com o apoio europeu. Limitar o acesso de Pequim a tecnologias estratégicas e promover a indústria americana dificilmente seriam prioridades, e cortar o comércio sino-europeu ainda é difícil até imaginar. Mas já há sinais de que a Otan está progredindo em fazer a Europa seguir sua batuta. Em conformidade, o ministro da Defesa alemão proclamou, na véspera de uma visita a Washington, no fim de junho, seu entendimento sobre uma “responsabilidade europeia no Indo-Pacífico” e a importância da “ordem internacional com base em regras” no Mar do Sul da China.

Não importa sua procedência, apoiadores da aliança atlântica inquietam-se com a possibilidade do apoio à Otan ser minado por desinformação e intromissões cibernéticas. Mas eles não têm com que se preocupar nesse sentido. Contestada ao longo de toda a Guerra Fria, a Otan permaneceu objeto de controvérsia até os anos 90, quando o desaparecimento de sua adversária encorajou pensamentos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa. Hoje, o dissenso é menos audível do que jamais foi.

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Os partidos de esquerda europeus, historicamente críticos ao militarismo e ao poder americano, se alinharam contundentemente em defesa do Ocidente: a trajetória dos Verdes na Alemanha, de oponentes ferozes às armas nucleares para um partido aparentemente disposto à guerra atômica, é uma ilustração particularmente vívida. Do lado dos EUA, a crítica à Otan tem como foco os riscos de ampliar excessivamente as obrigações de Washington no tratado, não de enfatizar justificativas. Reunida em celebração de si mesma, a mais bem-sucedida aliança na história não precisa esperar seu 75.º aniversário, no próximo ano, para estourar a champanhe. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Há apenas quatro anos, às vésperas de outra cúpula, a aliança parecia em maus lençóis; nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron, a organização se encontrava em estado de “morte cerebral”. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, contudo, a situação se transformou. Conforme a Otan planeja as boas-vindas da Suécia às suas fileiras — a Finlândia tornou-se membro pleno em abril — e despachar tropas para reforçar seu flanco oriental, os aliados da União Europeia estão finalmente cumprindo promessas longamente proteladas de aumentar seu gasto militar. A opinião pública seguiu a toada. Se a Rússia buscou dividir a Europa, o presidente Joe Biden pôde declarar plausivelmente na primavera passada (Hemisfério Norte) que, em vez disso, Moscou “Otanizou” complemente o continente.

Essa guinada energizou, compreensivelmente, os apoiadores da aliança. A declaração de propósito de Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, de que “a força da Otan é a melhor ferramenta possível de que dispomos para manter a paz e a segurança” nunca teve tantos adeptos leais. Mesmo os críticos da organização — como beligerantes chineses que a consideram uma distração da ameaça real no Leste Asiático e pregadores da contenção que prefeririam ver Washington recolocar o foco em soluções diplomáticas e problemas domésticos — reconhecem que o propósito da Otan é primeiramente a defesa da Europa.

Mas desde suas origens a Otan nunca esteve preocupada principalmente em agregar poder militar. Destacando 100 divisões no auge da Guerra Fria, uma pequena fração do contingente do Pacto de Varsóvia, a organização não seria capaz de repelir uma invasão soviética, e até as armas nucleares estacionadas no continente estavam sob controle de Washington. Em vez de perseguir esse objetivo, a aliança foi estabelecida para amarrar a Europa Ocidental a um projeto muito mais abrangente de uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, no qual a proteção dos americanos serviu como um mecanismo para obter concessões em relação a outros temas, como comércio e política monetária. Nessa missão, a Otan se provou excepcionalmente bem-sucedida.

Ministros das Relações Exteriores da Otan posam durante uma cerimônia para hastear bandeiras em abril Foto: Olivier Matthys/AP

Muitos observadores esperavam que a Otan fosse fechar a lojinha após o colapso de seu rival na Guerra Fria. Mas na década que se seguiu a 1989 a organização encontrou sua verdadeira vocação, passando a agir como uma agência de avaliação de risco para a União Europeia no Leste Europeu, declarando países seguros ou não para empreendimentos e investimentos. A organização pressionou pretensos parceiros a aderir ao credo liberal, pró-mercado, segundo o qual — conforme colocou o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Bill Clinton — “a busca por instituições democráticas, a expansão dos livres mercados” e “a promoção da segurança coletiva” marchavam lado a lado. Militares profissionais europeus e elites de mentalidade reformadora formaram um eleitorado solícito com suas campanhas impulsionadas pelo aparato de informação da Otan.

Quando povos europeus provaram-se teimosos demais — ou compreensivelmente imbuídos de sentimentos socialistas ou nacionalistas — a integração atlântica procedeu da mesma forma. A República Checa foi um caso revelador. Diante de um referendo que tendia a decidir por não juntar-se à aliança, em 1997, então secretário-geral e outras graduadas autoridades da Otan trabalharam para que Praga simplesmente abandonasse a consulta; e o país entrou na organização dois anos depois. O novo século trouxe mais do mesmo, com uma alteração apropriada na ênfase. Coincidindo com a guerra global contra o terrorismo, a expansão explosiva de 2004 — na qual sete países adeririam — testemunhou o contraterrorismo ultrapassar a democracia e os direitos humanos na retórica da aliança. A ênfase em necessidades de liberalizações e reformas em setores públicos continuou uma constante.

A aliança não foi tão promovida no campo da defesa. Por décadas, os EUA foram o principal fornecedor de armas, logística, bases aéreas e planos de batalha. Apesar de todo burburinho sobre a Europa se apresentar, a guerra na Ucrânia deixou essa assimetria essencialmente intocada. De modo revelador, a escala da ajuda militar americana — US$ 47 bilhões ao longo do primeiro ano do conflito — é mais de duas vezes maior do que a oferecida por todos os países da União Europeia combinados. As promessas de gastos dos europeus também poderão se provar menos impressionantes do que aparentam. Mais de um ano depois do governo alemão anunciar a criação de um fundo especial de US$ 110 bilhões para suas Forças Armadas, a maior parte desses recursos permanece intacta. Nesse meio-tempo, comandantes militares alemães têm afirmado que não possuem munição para mais que dois dias de combates de alta intensidade.

Sejam quais forem os níveis de gastos, é notável a pouca capacidade militar que os europeus recebem em troca das despesas envolvidas. Falta de coordenação — tanto quanto mesquinhez — paralisa a capacidade da Europa de garantir sua própria segurança. Ao proibir a duplicação das capacidades existentes e persuadir os aliados a aceitar papéis setorizados, a Otan entravou a ascensão de qualquer força europeia semiautônoma capaz de alguma ação independente. Enquanto aquisições de defesa, padrões comuns para interoperacionalidade aliados com o gigantismo do setor militar-industrial americano e os impedimentos burocráticos em Bruxelas favorecem empresas americanas em detrimento de competidoras europeias. A aliança, paradoxalmente, parece ter enfraquecido a capacidade dos aliados de se defender.

As bandeiras da Ucrânia e da Otan são fotografadas em Vilna, Lituânia  Foto: Petras Malukas/AFP

Mas o paradoxo é apenas superficial. Na realidade, a Otan opera exatamente da maneira como foi planejada pelos estrategistas americanos do pós-guerra, atraindo a Europa para uma dependência em relação ao poder americano que reduz seu campo de manobra. Longe de ser um dispendioso programa de caridade, a Otan assegura a influência dos EUA na Europa a baixo custo. As contribuições para a Otan e outros programas de assistência de segurança na Europa representam uma pequena fração do orçamento anual do Pentágono — menos de 6% segundo uma estimativa recente. E a atual guerra apenas intensificou o pulso dos EUA. Antes da invasão russa à Ucrânia, aproximadamente a metade do gasto militar europeu tinha como destino empresas americanas. A demanda em elevação exacerbou essa tendência conforme países se apressam para comprar tanques, caças de combate e outros sistemas de armamentos, vinculando-se a contratos dispendiosos de vários anos. A Europa pode estar se remilitarizando, mas os EUA estão colhendo as recompensas.

Na Ucrânia o padrão é claro. Washington fornecerá a segurança militar e as corporações americanas se beneficiarão da bonança de encomendas de armamentos dos europeus, enquanto os europeus arcarão com os custos da reconstrução — algo que a Alemanha está mais bem posicionada para operar do que a ampliação de suas Forças Armadas. A guerra também serve de ensaio com figurino para o confronto entre EUA e China, no qual não será tão fácil contar com o apoio europeu. Limitar o acesso de Pequim a tecnologias estratégicas e promover a indústria americana dificilmente seriam prioridades, e cortar o comércio sino-europeu ainda é difícil até imaginar. Mas já há sinais de que a Otan está progredindo em fazer a Europa seguir sua batuta. Em conformidade, o ministro da Defesa alemão proclamou, na véspera de uma visita a Washington, no fim de junho, seu entendimento sobre uma “responsabilidade europeia no Indo-Pacífico” e a importância da “ordem internacional com base em regras” no Mar do Sul da China.

Não importa sua procedência, apoiadores da aliança atlântica inquietam-se com a possibilidade do apoio à Otan ser minado por desinformação e intromissões cibernéticas. Mas eles não têm com que se preocupar nesse sentido. Contestada ao longo de toda a Guerra Fria, a Otan permaneceu objeto de controvérsia até os anos 90, quando o desaparecimento de sua adversária encorajou pensamentos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa. Hoje, o dissenso é menos audível do que jamais foi.

Os partidos de esquerda europeus, historicamente críticos ao militarismo e ao poder americano, se alinharam contundentemente em defesa do Ocidente: a trajetória dos Verdes na Alemanha, de oponentes ferozes às armas nucleares para um partido aparentemente disposto à guerra atômica, é uma ilustração particularmente vívida. Do lado dos EUA, a crítica à Otan tem como foco os riscos de ampliar excessivamente as obrigações de Washington no tratado, não de enfatizar justificativas. Reunida em celebração de si mesma, a mais bem-sucedida aliança na história não precisa esperar seu 75.º aniversário, no próximo ano, para estourar a champanhe. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Há apenas quatro anos, às vésperas de outra cúpula, a aliança parecia em maus lençóis; nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron, a organização se encontrava em estado de “morte cerebral”. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, contudo, a situação se transformou. Conforme a Otan planeja as boas-vindas da Suécia às suas fileiras — a Finlândia tornou-se membro pleno em abril — e despachar tropas para reforçar seu flanco oriental, os aliados da União Europeia estão finalmente cumprindo promessas longamente proteladas de aumentar seu gasto militar. A opinião pública seguiu a toada. Se a Rússia buscou dividir a Europa, o presidente Joe Biden pôde declarar plausivelmente na primavera passada (Hemisfério Norte) que, em vez disso, Moscou “Otanizou” complemente o continente.

Essa guinada energizou, compreensivelmente, os apoiadores da aliança. A declaração de propósito de Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, de que “a força da Otan é a melhor ferramenta possível de que dispomos para manter a paz e a segurança” nunca teve tantos adeptos leais. Mesmo os críticos da organização — como beligerantes chineses que a consideram uma distração da ameaça real no Leste Asiático e pregadores da contenção que prefeririam ver Washington recolocar o foco em soluções diplomáticas e problemas domésticos — reconhecem que o propósito da Otan é primeiramente a defesa da Europa.

Mas desde suas origens a Otan nunca esteve preocupada principalmente em agregar poder militar. Destacando 100 divisões no auge da Guerra Fria, uma pequena fração do contingente do Pacto de Varsóvia, a organização não seria capaz de repelir uma invasão soviética, e até as armas nucleares estacionadas no continente estavam sob controle de Washington. Em vez de perseguir esse objetivo, a aliança foi estabelecida para amarrar a Europa Ocidental a um projeto muito mais abrangente de uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, no qual a proteção dos americanos serviu como um mecanismo para obter concessões em relação a outros temas, como comércio e política monetária. Nessa missão, a Otan se provou excepcionalmente bem-sucedida.

Ministros das Relações Exteriores da Otan posam durante uma cerimônia para hastear bandeiras em abril Foto: Olivier Matthys/AP

Muitos observadores esperavam que a Otan fosse fechar a lojinha após o colapso de seu rival na Guerra Fria. Mas na década que se seguiu a 1989 a organização encontrou sua verdadeira vocação, passando a agir como uma agência de avaliação de risco para a União Europeia no Leste Europeu, declarando países seguros ou não para empreendimentos e investimentos. A organização pressionou pretensos parceiros a aderir ao credo liberal, pró-mercado, segundo o qual — conforme colocou o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Bill Clinton — “a busca por instituições democráticas, a expansão dos livres mercados” e “a promoção da segurança coletiva” marchavam lado a lado. Militares profissionais europeus e elites de mentalidade reformadora formaram um eleitorado solícito com suas campanhas impulsionadas pelo aparato de informação da Otan.

Quando povos europeus provaram-se teimosos demais — ou compreensivelmente imbuídos de sentimentos socialistas ou nacionalistas — a integração atlântica procedeu da mesma forma. A República Checa foi um caso revelador. Diante de um referendo que tendia a decidir por não juntar-se à aliança, em 1997, então secretário-geral e outras graduadas autoridades da Otan trabalharam para que Praga simplesmente abandonasse a consulta; e o país entrou na organização dois anos depois. O novo século trouxe mais do mesmo, com uma alteração apropriada na ênfase. Coincidindo com a guerra global contra o terrorismo, a expansão explosiva de 2004 — na qual sete países adeririam — testemunhou o contraterrorismo ultrapassar a democracia e os direitos humanos na retórica da aliança. A ênfase em necessidades de liberalizações e reformas em setores públicos continuou uma constante.

A aliança não foi tão promovida no campo da defesa. Por décadas, os EUA foram o principal fornecedor de armas, logística, bases aéreas e planos de batalha. Apesar de todo burburinho sobre a Europa se apresentar, a guerra na Ucrânia deixou essa assimetria essencialmente intocada. De modo revelador, a escala da ajuda militar americana — US$ 47 bilhões ao longo do primeiro ano do conflito — é mais de duas vezes maior do que a oferecida por todos os países da União Europeia combinados. As promessas de gastos dos europeus também poderão se provar menos impressionantes do que aparentam. Mais de um ano depois do governo alemão anunciar a criação de um fundo especial de US$ 110 bilhões para suas Forças Armadas, a maior parte desses recursos permanece intacta. Nesse meio-tempo, comandantes militares alemães têm afirmado que não possuem munição para mais que dois dias de combates de alta intensidade.

Sejam quais forem os níveis de gastos, é notável a pouca capacidade militar que os europeus recebem em troca das despesas envolvidas. Falta de coordenação — tanto quanto mesquinhez — paralisa a capacidade da Europa de garantir sua própria segurança. Ao proibir a duplicação das capacidades existentes e persuadir os aliados a aceitar papéis setorizados, a Otan entravou a ascensão de qualquer força europeia semiautônoma capaz de alguma ação independente. Enquanto aquisições de defesa, padrões comuns para interoperacionalidade aliados com o gigantismo do setor militar-industrial americano e os impedimentos burocráticos em Bruxelas favorecem empresas americanas em detrimento de competidoras europeias. A aliança, paradoxalmente, parece ter enfraquecido a capacidade dos aliados de se defender.

As bandeiras da Ucrânia e da Otan são fotografadas em Vilna, Lituânia  Foto: Petras Malukas/AFP

Mas o paradoxo é apenas superficial. Na realidade, a Otan opera exatamente da maneira como foi planejada pelos estrategistas americanos do pós-guerra, atraindo a Europa para uma dependência em relação ao poder americano que reduz seu campo de manobra. Longe de ser um dispendioso programa de caridade, a Otan assegura a influência dos EUA na Europa a baixo custo. As contribuições para a Otan e outros programas de assistência de segurança na Europa representam uma pequena fração do orçamento anual do Pentágono — menos de 6% segundo uma estimativa recente. E a atual guerra apenas intensificou o pulso dos EUA. Antes da invasão russa à Ucrânia, aproximadamente a metade do gasto militar europeu tinha como destino empresas americanas. A demanda em elevação exacerbou essa tendência conforme países se apressam para comprar tanques, caças de combate e outros sistemas de armamentos, vinculando-se a contratos dispendiosos de vários anos. A Europa pode estar se remilitarizando, mas os EUA estão colhendo as recompensas.

Na Ucrânia o padrão é claro. Washington fornecerá a segurança militar e as corporações americanas se beneficiarão da bonança de encomendas de armamentos dos europeus, enquanto os europeus arcarão com os custos da reconstrução — algo que a Alemanha está mais bem posicionada para operar do que a ampliação de suas Forças Armadas. A guerra também serve de ensaio com figurino para o confronto entre EUA e China, no qual não será tão fácil contar com o apoio europeu. Limitar o acesso de Pequim a tecnologias estratégicas e promover a indústria americana dificilmente seriam prioridades, e cortar o comércio sino-europeu ainda é difícil até imaginar. Mas já há sinais de que a Otan está progredindo em fazer a Europa seguir sua batuta. Em conformidade, o ministro da Defesa alemão proclamou, na véspera de uma visita a Washington, no fim de junho, seu entendimento sobre uma “responsabilidade europeia no Indo-Pacífico” e a importância da “ordem internacional com base em regras” no Mar do Sul da China.

Não importa sua procedência, apoiadores da aliança atlântica inquietam-se com a possibilidade do apoio à Otan ser minado por desinformação e intromissões cibernéticas. Mas eles não têm com que se preocupar nesse sentido. Contestada ao longo de toda a Guerra Fria, a Otan permaneceu objeto de controvérsia até os anos 90, quando o desaparecimento de sua adversária encorajou pensamentos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa. Hoje, o dissenso é menos audível do que jamais foi.

Os partidos de esquerda europeus, historicamente críticos ao militarismo e ao poder americano, se alinharam contundentemente em defesa do Ocidente: a trajetória dos Verdes na Alemanha, de oponentes ferozes às armas nucleares para um partido aparentemente disposto à guerra atômica, é uma ilustração particularmente vívida. Do lado dos EUA, a crítica à Otan tem como foco os riscos de ampliar excessivamente as obrigações de Washington no tratado, não de enfatizar justificativas. Reunida em celebração de si mesma, a mais bem-sucedida aliança na história não precisa esperar seu 75.º aniversário, no próximo ano, para estourar a champanhe. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Há apenas quatro anos, às vésperas de outra cúpula, a aliança parecia em maus lençóis; nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron, a organização se encontrava em estado de “morte cerebral”. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, contudo, a situação se transformou. Conforme a Otan planeja as boas-vindas da Suécia às suas fileiras — a Finlândia tornou-se membro pleno em abril — e despachar tropas para reforçar seu flanco oriental, os aliados da União Europeia estão finalmente cumprindo promessas longamente proteladas de aumentar seu gasto militar. A opinião pública seguiu a toada. Se a Rússia buscou dividir a Europa, o presidente Joe Biden pôde declarar plausivelmente na primavera passada (Hemisfério Norte) que, em vez disso, Moscou “Otanizou” complemente o continente.

Essa guinada energizou, compreensivelmente, os apoiadores da aliança. A declaração de propósito de Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, de que “a força da Otan é a melhor ferramenta possível de que dispomos para manter a paz e a segurança” nunca teve tantos adeptos leais. Mesmo os críticos da organização — como beligerantes chineses que a consideram uma distração da ameaça real no Leste Asiático e pregadores da contenção que prefeririam ver Washington recolocar o foco em soluções diplomáticas e problemas domésticos — reconhecem que o propósito da Otan é primeiramente a defesa da Europa.

Mas desde suas origens a Otan nunca esteve preocupada principalmente em agregar poder militar. Destacando 100 divisões no auge da Guerra Fria, uma pequena fração do contingente do Pacto de Varsóvia, a organização não seria capaz de repelir uma invasão soviética, e até as armas nucleares estacionadas no continente estavam sob controle de Washington. Em vez de perseguir esse objetivo, a aliança foi estabelecida para amarrar a Europa Ocidental a um projeto muito mais abrangente de uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, no qual a proteção dos americanos serviu como um mecanismo para obter concessões em relação a outros temas, como comércio e política monetária. Nessa missão, a Otan se provou excepcionalmente bem-sucedida.

Ministros das Relações Exteriores da Otan posam durante uma cerimônia para hastear bandeiras em abril Foto: Olivier Matthys/AP

Muitos observadores esperavam que a Otan fosse fechar a lojinha após o colapso de seu rival na Guerra Fria. Mas na década que se seguiu a 1989 a organização encontrou sua verdadeira vocação, passando a agir como uma agência de avaliação de risco para a União Europeia no Leste Europeu, declarando países seguros ou não para empreendimentos e investimentos. A organização pressionou pretensos parceiros a aderir ao credo liberal, pró-mercado, segundo o qual — conforme colocou o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Bill Clinton — “a busca por instituições democráticas, a expansão dos livres mercados” e “a promoção da segurança coletiva” marchavam lado a lado. Militares profissionais europeus e elites de mentalidade reformadora formaram um eleitorado solícito com suas campanhas impulsionadas pelo aparato de informação da Otan.

Quando povos europeus provaram-se teimosos demais — ou compreensivelmente imbuídos de sentimentos socialistas ou nacionalistas — a integração atlântica procedeu da mesma forma. A República Checa foi um caso revelador. Diante de um referendo que tendia a decidir por não juntar-se à aliança, em 1997, então secretário-geral e outras graduadas autoridades da Otan trabalharam para que Praga simplesmente abandonasse a consulta; e o país entrou na organização dois anos depois. O novo século trouxe mais do mesmo, com uma alteração apropriada na ênfase. Coincidindo com a guerra global contra o terrorismo, a expansão explosiva de 2004 — na qual sete países adeririam — testemunhou o contraterrorismo ultrapassar a democracia e os direitos humanos na retórica da aliança. A ênfase em necessidades de liberalizações e reformas em setores públicos continuou uma constante.

A aliança não foi tão promovida no campo da defesa. Por décadas, os EUA foram o principal fornecedor de armas, logística, bases aéreas e planos de batalha. Apesar de todo burburinho sobre a Europa se apresentar, a guerra na Ucrânia deixou essa assimetria essencialmente intocada. De modo revelador, a escala da ajuda militar americana — US$ 47 bilhões ao longo do primeiro ano do conflito — é mais de duas vezes maior do que a oferecida por todos os países da União Europeia combinados. As promessas de gastos dos europeus também poderão se provar menos impressionantes do que aparentam. Mais de um ano depois do governo alemão anunciar a criação de um fundo especial de US$ 110 bilhões para suas Forças Armadas, a maior parte desses recursos permanece intacta. Nesse meio-tempo, comandantes militares alemães têm afirmado que não possuem munição para mais que dois dias de combates de alta intensidade.

Sejam quais forem os níveis de gastos, é notável a pouca capacidade militar que os europeus recebem em troca das despesas envolvidas. Falta de coordenação — tanto quanto mesquinhez — paralisa a capacidade da Europa de garantir sua própria segurança. Ao proibir a duplicação das capacidades existentes e persuadir os aliados a aceitar papéis setorizados, a Otan entravou a ascensão de qualquer força europeia semiautônoma capaz de alguma ação independente. Enquanto aquisições de defesa, padrões comuns para interoperacionalidade aliados com o gigantismo do setor militar-industrial americano e os impedimentos burocráticos em Bruxelas favorecem empresas americanas em detrimento de competidoras europeias. A aliança, paradoxalmente, parece ter enfraquecido a capacidade dos aliados de se defender.

As bandeiras da Ucrânia e da Otan são fotografadas em Vilna, Lituânia  Foto: Petras Malukas/AFP

Mas o paradoxo é apenas superficial. Na realidade, a Otan opera exatamente da maneira como foi planejada pelos estrategistas americanos do pós-guerra, atraindo a Europa para uma dependência em relação ao poder americano que reduz seu campo de manobra. Longe de ser um dispendioso programa de caridade, a Otan assegura a influência dos EUA na Europa a baixo custo. As contribuições para a Otan e outros programas de assistência de segurança na Europa representam uma pequena fração do orçamento anual do Pentágono — menos de 6% segundo uma estimativa recente. E a atual guerra apenas intensificou o pulso dos EUA. Antes da invasão russa à Ucrânia, aproximadamente a metade do gasto militar europeu tinha como destino empresas americanas. A demanda em elevação exacerbou essa tendência conforme países se apressam para comprar tanques, caças de combate e outros sistemas de armamentos, vinculando-se a contratos dispendiosos de vários anos. A Europa pode estar se remilitarizando, mas os EUA estão colhendo as recompensas.

Na Ucrânia o padrão é claro. Washington fornecerá a segurança militar e as corporações americanas se beneficiarão da bonança de encomendas de armamentos dos europeus, enquanto os europeus arcarão com os custos da reconstrução — algo que a Alemanha está mais bem posicionada para operar do que a ampliação de suas Forças Armadas. A guerra também serve de ensaio com figurino para o confronto entre EUA e China, no qual não será tão fácil contar com o apoio europeu. Limitar o acesso de Pequim a tecnologias estratégicas e promover a indústria americana dificilmente seriam prioridades, e cortar o comércio sino-europeu ainda é difícil até imaginar. Mas já há sinais de que a Otan está progredindo em fazer a Europa seguir sua batuta. Em conformidade, o ministro da Defesa alemão proclamou, na véspera de uma visita a Washington, no fim de junho, seu entendimento sobre uma “responsabilidade europeia no Indo-Pacífico” e a importância da “ordem internacional com base em regras” no Mar do Sul da China.

Não importa sua procedência, apoiadores da aliança atlântica inquietam-se com a possibilidade do apoio à Otan ser minado por desinformação e intromissões cibernéticas. Mas eles não têm com que se preocupar nesse sentido. Contestada ao longo de toda a Guerra Fria, a Otan permaneceu objeto de controvérsia até os anos 90, quando o desaparecimento de sua adversária encorajou pensamentos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa. Hoje, o dissenso é menos audível do que jamais foi.

Os partidos de esquerda europeus, historicamente críticos ao militarismo e ao poder americano, se alinharam contundentemente em defesa do Ocidente: a trajetória dos Verdes na Alemanha, de oponentes ferozes às armas nucleares para um partido aparentemente disposto à guerra atômica, é uma ilustração particularmente vívida. Do lado dos EUA, a crítica à Otan tem como foco os riscos de ampliar excessivamente as obrigações de Washington no tratado, não de enfatizar justificativas. Reunida em celebração de si mesma, a mais bem-sucedida aliança na história não precisa esperar seu 75.º aniversário, no próximo ano, para estourar a champanhe. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Há apenas quatro anos, às vésperas de outra cúpula, a aliança parecia em maus lençóis; nas palavras do presidente francês, Emmanuel Macron, a organização se encontrava em estado de “morte cerebral”. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, contudo, a situação se transformou. Conforme a Otan planeja as boas-vindas da Suécia às suas fileiras — a Finlândia tornou-se membro pleno em abril — e despachar tropas para reforçar seu flanco oriental, os aliados da União Europeia estão finalmente cumprindo promessas longamente proteladas de aumentar seu gasto militar. A opinião pública seguiu a toada. Se a Rússia buscou dividir a Europa, o presidente Joe Biden pôde declarar plausivelmente na primavera passada (Hemisfério Norte) que, em vez disso, Moscou “Otanizou” complemente o continente.

Essa guinada energizou, compreensivelmente, os apoiadores da aliança. A declaração de propósito de Jens Stoltenberg, seu secretário-geral, de que “a força da Otan é a melhor ferramenta possível de que dispomos para manter a paz e a segurança” nunca teve tantos adeptos leais. Mesmo os críticos da organização — como beligerantes chineses que a consideram uma distração da ameaça real no Leste Asiático e pregadores da contenção que prefeririam ver Washington recolocar o foco em soluções diplomáticas e problemas domésticos — reconhecem que o propósito da Otan é primeiramente a defesa da Europa.

Mas desde suas origens a Otan nunca esteve preocupada principalmente em agregar poder militar. Destacando 100 divisões no auge da Guerra Fria, uma pequena fração do contingente do Pacto de Varsóvia, a organização não seria capaz de repelir uma invasão soviética, e até as armas nucleares estacionadas no continente estavam sob controle de Washington. Em vez de perseguir esse objetivo, a aliança foi estabelecida para amarrar a Europa Ocidental a um projeto muito mais abrangente de uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, no qual a proteção dos americanos serviu como um mecanismo para obter concessões em relação a outros temas, como comércio e política monetária. Nessa missão, a Otan se provou excepcionalmente bem-sucedida.

Ministros das Relações Exteriores da Otan posam durante uma cerimônia para hastear bandeiras em abril Foto: Olivier Matthys/AP

Muitos observadores esperavam que a Otan fosse fechar a lojinha após o colapso de seu rival na Guerra Fria. Mas na década que se seguiu a 1989 a organização encontrou sua verdadeira vocação, passando a agir como uma agência de avaliação de risco para a União Europeia no Leste Europeu, declarando países seguros ou não para empreendimentos e investimentos. A organização pressionou pretensos parceiros a aderir ao credo liberal, pró-mercado, segundo o qual — conforme colocou o conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Bill Clinton — “a busca por instituições democráticas, a expansão dos livres mercados” e “a promoção da segurança coletiva” marchavam lado a lado. Militares profissionais europeus e elites de mentalidade reformadora formaram um eleitorado solícito com suas campanhas impulsionadas pelo aparato de informação da Otan.

Quando povos europeus provaram-se teimosos demais — ou compreensivelmente imbuídos de sentimentos socialistas ou nacionalistas — a integração atlântica procedeu da mesma forma. A República Checa foi um caso revelador. Diante de um referendo que tendia a decidir por não juntar-se à aliança, em 1997, então secretário-geral e outras graduadas autoridades da Otan trabalharam para que Praga simplesmente abandonasse a consulta; e o país entrou na organização dois anos depois. O novo século trouxe mais do mesmo, com uma alteração apropriada na ênfase. Coincidindo com a guerra global contra o terrorismo, a expansão explosiva de 2004 — na qual sete países adeririam — testemunhou o contraterrorismo ultrapassar a democracia e os direitos humanos na retórica da aliança. A ênfase em necessidades de liberalizações e reformas em setores públicos continuou uma constante.

A aliança não foi tão promovida no campo da defesa. Por décadas, os EUA foram o principal fornecedor de armas, logística, bases aéreas e planos de batalha. Apesar de todo burburinho sobre a Europa se apresentar, a guerra na Ucrânia deixou essa assimetria essencialmente intocada. De modo revelador, a escala da ajuda militar americana — US$ 47 bilhões ao longo do primeiro ano do conflito — é mais de duas vezes maior do que a oferecida por todos os países da União Europeia combinados. As promessas de gastos dos europeus também poderão se provar menos impressionantes do que aparentam. Mais de um ano depois do governo alemão anunciar a criação de um fundo especial de US$ 110 bilhões para suas Forças Armadas, a maior parte desses recursos permanece intacta. Nesse meio-tempo, comandantes militares alemães têm afirmado que não possuem munição para mais que dois dias de combates de alta intensidade.

Sejam quais forem os níveis de gastos, é notável a pouca capacidade militar que os europeus recebem em troca das despesas envolvidas. Falta de coordenação — tanto quanto mesquinhez — paralisa a capacidade da Europa de garantir sua própria segurança. Ao proibir a duplicação das capacidades existentes e persuadir os aliados a aceitar papéis setorizados, a Otan entravou a ascensão de qualquer força europeia semiautônoma capaz de alguma ação independente. Enquanto aquisições de defesa, padrões comuns para interoperacionalidade aliados com o gigantismo do setor militar-industrial americano e os impedimentos burocráticos em Bruxelas favorecem empresas americanas em detrimento de competidoras europeias. A aliança, paradoxalmente, parece ter enfraquecido a capacidade dos aliados de se defender.

As bandeiras da Ucrânia e da Otan são fotografadas em Vilna, Lituânia  Foto: Petras Malukas/AFP

Mas o paradoxo é apenas superficial. Na realidade, a Otan opera exatamente da maneira como foi planejada pelos estrategistas americanos do pós-guerra, atraindo a Europa para uma dependência em relação ao poder americano que reduz seu campo de manobra. Longe de ser um dispendioso programa de caridade, a Otan assegura a influência dos EUA na Europa a baixo custo. As contribuições para a Otan e outros programas de assistência de segurança na Europa representam uma pequena fração do orçamento anual do Pentágono — menos de 6% segundo uma estimativa recente. E a atual guerra apenas intensificou o pulso dos EUA. Antes da invasão russa à Ucrânia, aproximadamente a metade do gasto militar europeu tinha como destino empresas americanas. A demanda em elevação exacerbou essa tendência conforme países se apressam para comprar tanques, caças de combate e outros sistemas de armamentos, vinculando-se a contratos dispendiosos de vários anos. A Europa pode estar se remilitarizando, mas os EUA estão colhendo as recompensas.

Na Ucrânia o padrão é claro. Washington fornecerá a segurança militar e as corporações americanas se beneficiarão da bonança de encomendas de armamentos dos europeus, enquanto os europeus arcarão com os custos da reconstrução — algo que a Alemanha está mais bem posicionada para operar do que a ampliação de suas Forças Armadas. A guerra também serve de ensaio com figurino para o confronto entre EUA e China, no qual não será tão fácil contar com o apoio europeu. Limitar o acesso de Pequim a tecnologias estratégicas e promover a indústria americana dificilmente seriam prioridades, e cortar o comércio sino-europeu ainda é difícil até imaginar. Mas já há sinais de que a Otan está progredindo em fazer a Europa seguir sua batuta. Em conformidade, o ministro da Defesa alemão proclamou, na véspera de uma visita a Washington, no fim de junho, seu entendimento sobre uma “responsabilidade europeia no Indo-Pacífico” e a importância da “ordem internacional com base em regras” no Mar do Sul da China.

Não importa sua procedência, apoiadores da aliança atlântica inquietam-se com a possibilidade do apoio à Otan ser minado por desinformação e intromissões cibernéticas. Mas eles não têm com que se preocupar nesse sentido. Contestada ao longo de toda a Guerra Fria, a Otan permaneceu objeto de controvérsia até os anos 90, quando o desaparecimento de sua adversária encorajou pensamentos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa. Hoje, o dissenso é menos audível do que jamais foi.

Os partidos de esquerda europeus, historicamente críticos ao militarismo e ao poder americano, se alinharam contundentemente em defesa do Ocidente: a trajetória dos Verdes na Alemanha, de oponentes ferozes às armas nucleares para um partido aparentemente disposto à guerra atômica, é uma ilustração particularmente vívida. Do lado dos EUA, a crítica à Otan tem como foco os riscos de ampliar excessivamente as obrigações de Washington no tratado, não de enfatizar justificativas. Reunida em celebração de si mesma, a mais bem-sucedida aliança na história não precisa esperar seu 75.º aniversário, no próximo ano, para estourar a champanhe. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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