É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment. Escreve quinzenalmente

Opinião|Como será o dia em que Putin desligar os cabos da internet mundial?


A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entendem bem isso

Por Moisés Naím
Atualização:

É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

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O presidente Vladimir Putin, à esquerda, e o chefe do Estado-Maior Geral, general Valery Gerasimov, participam de uma reunião com oficiais militares seniores em Moscou, Rússia, quarta-feira, 21 de dezembro de 2022.  Foto: Mikhail Kuravlev / AP

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

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Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

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Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

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Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

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A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

O presidente Vladimir Putin, à esquerda, e o chefe do Estado-Maior Geral, general Valery Gerasimov, participam de uma reunião com oficiais militares seniores em Moscou, Rússia, quarta-feira, 21 de dezembro de 2022.  Foto: Mikhail Kuravlev / AP

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

O presidente Vladimir Putin, à esquerda, e o chefe do Estado-Maior Geral, general Valery Gerasimov, participam de uma reunião com oficiais militares seniores em Moscou, Rússia, quarta-feira, 21 de dezembro de 2022.  Foto: Mikhail Kuravlev / AP

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

O presidente Vladimir Putin, à esquerda, e o chefe do Estado-Maior Geral, general Valery Gerasimov, participam de uma reunião com oficiais militares seniores em Moscou, Rússia, quarta-feira, 21 de dezembro de 2022.  Foto: Mikhail Kuravlev / AP

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É fácil imaginar a internet como um fenômeno etéreo, imaterial. Nestes tempos é normal, por exemplo, conectar-se à rede sem necessidade de cabos, guardar dados na “nuvem” e supor que a informação flui sem “sujar-se” no mundo tátil.

Pena que essas suposições sejam errôneas. A rede da qual dependemos é alarmantemente física e eminentemente vulnerável. Segundo o marechal Edward Stringer, ex-diretor de operações do Ministério de Defesa britânico, 95% do tráfego internacional de dados passa por um pequeno número de cabos submarinos. Estamos falando de meros 200 cabos, cada um da grossura aproximada à de uma mangueira de jardim e capaz de transferir cerca de 200 terabytes por segundo.

Por essa rede física trafegam US$ 10 trilhões em transações financeiras a cada dia. Como explica Stringer, nos últimos 20 anos, a Rússia investiu fortemente em sistemas capazes de atacar essa rede de cabos submarinos. O Kremlin conta hoje com uma frota de sofisticados submergíveis não tripulados projetados especificamente para esses fins. E a China também.

O presidente Vladimir Putin, à esquerda, e o chefe do Estado-Maior Geral, general Valery Gerasimov, participam de uma reunião com oficiais militares seniores em Moscou, Rússia, quarta-feira, 21 de dezembro de 2022.  Foto: Mikhail Kuravlev / AP

De fato, não se trata de uma ameaça teórica. Em outubro de 2022, o cabo submarino que conecta as Ilhas Shetland com o restante do mundo foi cortado em dois pontos. Poucos dias antes, havia sido detectada presença nessa região de um barco russo de “investigação científica”.

Não é possível vincular a presença do barco com o corte do cabo. De fato, na maioria das vezes os cortes se devem a acidentes com embarcações pesqueiras ou a eventos sísmicos no leito marinho. Mesmo assim, essa coincidência preocupou muito as agências de segurança das potências ocidentais, que perceberam o o incidente como uma advertência enviada pelo Kremlin.

Outro evento relevante nesse sentido foi a decisão tomada em fevereiro de 2023 pelas duas maiores empresas de telecomunicações chinesas, que decidiram se retirar do consórcio internacional encarregado de desenvolver uma rede de 19,2 mil quilômetros de cabos submarinos que conectam o sudoeste da Ásia e a Europa Ocidental.

Os impactos de um ataque coordenado contra os principais cabos submarinos em nível global seriam incalculáveis. Um ataque simultâneo paralisaria o comércio global, os mercados financeiros, o trabalho remoto e as indústrias de tecnologia e comunicação, provocando uma recessão mundial.

Mas o problema não seria meramente financeiro: as cadeias de fornecimento do século 21 dependem da transferência constante de dados para coordenar a entrega de bens e produtos. A interrupção deste fluxo poderia causar um efeito dominó de atrasos e cancelamentos que restringiria a integração econômica, política e até cultural de diferentes zonas geográficas.

Ainda mais, a crise financeira e econômica que um ataque desse tipo precipitaria nem sequer seria o maior dos problemas. “Desconectar” os cabos de potências rivais desembocaria numa crise inadministrável, especialmente se for possível atribuir a responsabilidade a algum ator estatal específico, o que poderia provocar conflitos e reconfigurar alianças. Os países que dependem em grande medida da infraestrutura digital seriam os mais afetados, e aqueles com capacidades autônomas de comunicação e tecnologia poderiam obter vantagens estratégicas.

Desafortunadamente, tais cenários não podem ser ignorados, porque no alto-mar reina a anarquia. Os tratados internacionais existentes sobre direito de navegação não cobrem satisfatoriamente o caso dos cabos submarinos. Trata-se de um exemplo emblemático de uma realidade global que, apesar de ser de grande interesse público, não está adequadamente protegida nem física nem legalmente.

Até agora, as potências marítimas se abstiveram de atacar em grande escala as infraestruturas submarinas. Obviamente, atacar os cabos e conexões submarinas do rival provocaria custosas retaliações. Mas o equilíbrio atual é instável e inerentemente suscetível a perturbações que podem desestabilizar o sistema mundial da noite para o dia.

Quando imaginamos que eventos seriam capazes de suscitar uma escalada entre o Ocidente e seus rivais, nós tendemos a nos esquecer dessa realidade. As sociedades contemporâneas não podem funcionar sem a transmissão de dados facilitada pela internet que, por sua vez, não pode funcionar sem infraestruturas muito difíceis de defender.

A sensação de invulnerabilidade do Ocidente é ilusória, e seus rivais entenderam bem que certas infraestruturas — começando pelos cabos submarinos — são seu calcanhar de Aquiles. Essa realidade sublinha a necessidade de manter relações minimamente funcionais na arena internacional.

A interdependência entre os países não é apenas um conceito usado por diplomatas. É uma realidade que define o mundo de hoje. Este é um mundo no qual os problemas, riscos e ameaças se fazem cada vez mais internacionais, enquanto as respostas dos governos seguem sendo predominantemente nacionais. Há problemas que nenhum país consegue resolver atuando sozinho. A necessidade de coordenar respostas e responder coletivamente com eficácia às ameaças é um objetivo para o qual o mundo não está preparado. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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