A atual condição da Rússia — militarizada, isolada, corrupta, dominada pelos serviços de segurança e sangrando talentos à medida que centenas de milhares de cidadãos fogem para o exterior para escapar de servir em uma guerra horripilante — é desoladora.
Na esperança de pôr fim a esta sombria realidade, alguns esperam ansiosamente que Vladimir Putin deixe a função. Para o país mudar, contudo, não é suficiente a morte de Putin ou que ele saia da presidência. Os futuros líderes da Rússia têm de desmantelar e transformar as estruturas sobre as quais ele governou por mais de duas décadas. O desafio é, no mínimo, aterrador. Mas um grupo de políticos está delineando um plano para enfrentá-lo.
Composto por figuras bem conhecidas da oposição e jovens representantes de governos locais e regionais, o Primeiro Congresso de Delegados da Rússia se reuniu na Polônia no início de novembro. A locação do encontro, o Palácio Jablonna, nas proximidades de Varsóvia, foi simbólica: foi lá que começaram as negociações da mesa-redonda que colocou fim ao governo comunista na Polônia. Ao longo de três dias de intensos debates, os participantes expuseram propostas para a reconstrução de seu país. Reunidas, essas propostas conformam um sério esforço para imaginar uma Rússia sem Putin.
A principal e mais pungente prioridade, evidentemente, é a invasão à Ucrânia. Todos os integrantes do congresso se opõem à guerra, que, assumem eles, será perdida ou levará ao desastre nuclear. Para lidar com as consequências e evitar a repetição de uma tragédia, eles propõem um “ato de paz” que desmobilizaria o Exército e poria fim à ocupação ao território ucraniano, incluindo a Crimeia; criaria um grupo conjunto para investigação de crimes de guerra; pagaria reparações pela estrutura danificada e para as famílias dos mortos; e rejeitaria futuras “guerras de conquista”. Além de oferecer uma ferramenta de dissuasão contra expansionismos futuros, esse amplo compromisso proveria um acerto de contas essencial com o histórico russo de invasões imperialistas.
As autoridades responsáveis pela devastação também precisarão ser extirpadas — algo que nunca aconteceu após o colapso da União Soviética. O congresso impediria de trabalhar no Estado e em instituições educacionais aqueles que pertenceram a organizações “criminosas” — tais como o Serviço Federal de Segurança e os canais de TV estatais — ou tenham apoiado a guerra publicamente; e restringiria seus direitos eleitorais. O congresso também criaria uma comissão de “desputinização”, para deliberar a respeito de certos grupos, incluindo aqueles que se retratarem publicamente, não tiverem cometido crimes especialmente graves e abrirem os arquivos dos serviços de segurança.
E há também a própria estrutura da Rússia. A Federação Russa é altamente centralizada, composta por um mosaico de 80 repúblicas e regiões fortemente subordinadas ao presidente, o que possibilita um acúmulo enorme de poder. O congresso, baseando-se em visões descentralizantes que remontam à época do colapso soviético, propõe a dissolução da Federação Russa e sua substituição por uma democracia parlamentarista. De acordo com um esboço enunciado em termos vagos de uma provisão a respeito de “autodeterminação”, o futuro Estado russo deve ter “adesão fundada na base da livre escolha dos povos que o habitam”.
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Esse rompimento com o presente poderia corrigir promessas fracassadas do passado. De Vladimir Lênin a Boris Yeltsin, os líderes russos modernos têm histórico de oferecer descentralização para conquistar apoio e então renegá-la, uma vez que consolidam o poder. Apesar de todos os membros da federação serem legalmente iguais sob a atual Constituição russa, desigualdades substanciais persistem — fato que foi sublinhado pelo acionamento e morte desproporcionais de minorias étnicas de repúblicas mais pobres, como Daguestão e Buriácia, na guerra à Ucrânia.
Retomar o tema de uma maior soberania poderia permitir à independentista República da Chechênia, por exemplo, deixar a Rússia após ter sido subjugada brutalmente por Putin e ao mesmo tempo possibilitaria a regiões e repúblicas que não possuem movimentos secessionistas fortes renegociar alocações de recursos e equilibrar o poder com Moscou. Isso criaria um país mais justo e minaria o nacionalismo russo.
O congresso é vago, porém, a respeito de planos econômicos para o país. Uma provisão promete “reavaliar os resultados da privatização” operada durante os anos 90 (que levou à ascensão dos oligarcas russos), e outra busca cancelar a altamente impopular reforma previdenciária que Putin realizou em 2020. Falta, entretanto, um comprometimento com uma rede de seguridade social e não há absolutamente nenhuma menção a respeito de um afastamento da economia russa de sua dependência em relação às exportações de energia. Trata-se de um descuido relevante. Desde a década de 90, quando privatizações e eleições foram introduzidas simultaneamente, riqueza e poder se entrelaçaram. Reformas políticas e econômicas não podem ser consideradas separadamente.
E esse não é o único problema. O principal organizador e patrocinador do congresso é o empreendedor de esquerda Ilia Ponomarev. Único membro do Parlamento russo a votar contra a anexação da Crimeia, em 2014, ele deixou o país, obteve cidadania ucraniana e agora dirige um canal de notícias em língua russa com base em Kiev. Figura controvertida nos círculos da oposição, em agosto ele apoiou o assassinato de Daria Dugina, filha do filósofo eurasianista Alexander Dugin, e afirmou que a ação foi realizada por um exército clandestino pró-Ucrânia com base dentro da Rússia. Essa afirmação não corroborada indignou outras figuras da oposição. Ponomarev foi subsequentemente desconvidado de um evento organizado por Garry Kasparov e Mikhail Khodorkovski, dois antigos críticos do Kremlin.
Apesar de seus desentendimentos, a oposição russa possui uma visão para o futuro geralmente convergente. Khodorkovski e Alexei Navalni, o dissidente mais famoso do país, que atualmente definha em uma colônia penal, também conclamam a transformação da Rússia em uma democracia parlamentarista, com mais poder devolvido às instâncias locais e regionais. Mas nenhum representante de Navalni compareceu ao congresso, nem Kasparov, nem Khodorkovski. Sua legitimidade — já desafiada por várias organizações russas antiguerra afirmando que o congresso não as representa — também foi questionada por alguns participantes, muitos dos quais deixaram o evento em protesto contra o que qualificaram como falta de igualdade e transparência a respeito de sua organização.
Tais querelas não ajudam as propostas, que podem parecer irreais. Mas a história mostra que desdobramentos radicais são com frequência incubados no exterior ou clandestinamente. No fim do século 19 e início do 20, emigrados políticos em comunidades antagônicas de toda Europa conspiraram pela queda do Império Russo. Entre eles, Vladimir Lênin, que vivia na Polônia quando a 1.ª Guerra começou.
Por agora, com a maior parte da população russa forçada a se calar enquanto as pessoas perdem empregos ou liberdades de expressar dissenso, a possibilidade de transformação do país parece remota. A mudança, no entanto, pode vir quando for menos esperada. No início de 1917, Lênin expressou pessimismo e se lamentou, afirmando que não viveria para ver a revolução; algumas semanas depois, o czar foi deposto.
A Rússia não é mais fadada do que nenhum outro país a repetir seu passado. O momento para reimaginar o futuro é agora. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*Neumeyer é jornalista e historiadora especializada em Rússia e Leste Europeu