THE NEW YORK TIMES - A partir deste mês, todos os estudantes de ensino médio na Rússia ganham um novo livro de história. Em suas páginas, eles encontrarão um relato impressionantemente simplista a respeito dos últimos 80 anos — do fim da 2.ª Guerra até o presente — assinado pelo Kremlin.
A cartilha vai além do revisionismo. Josef Stálin, em contraste à descrição-padrão dos livros escolares russos publicados nos últimos 30 anos, é apresentado como um líder sábio e eficaz, responsável pela vitória da União Soviética na guerra e por uma enorme melhora na vida das pessoas. Repressões são mencionadas, mas não de maneira acusatória. O leitor fica com uma sensação de que as vítimas de Stálin eram culpadas e sofreram um castigo bem merecido.
O relato sobre o fim da União Soviética é similarmente distorcido. Livros escolares anteriores analisavam o colapso do sistema soviético e a ineficácia da economia planejada descrevendo a corrida armamentista e a irracionalidade dos antigos líderes soviéticos. O novo volume coloca a culpa inteiramente sobre Mikhail Gorbachev, classificando-o como um burocrata incompetente que sucumbiu à pressão dos Estados Unidos. E então há 28 páginas sobre a guerra na Ucrânia — que não contêm, evidentemente, nada de história; são pura propaganda, um conjunto de clichês reciclados da TV russa.
O livro foi escrito, juntamente com outros, pelo ex-ministro da Cultura russo Vladimir Medinski, que atua hoje como conselheiro presidencial. Medinski tem outra função mais secreta: é o ghost-writer do presidente Vladimir Putin. Trabalhando com uma equipe de assistentes, ele escreve textos sobre história assinando como Putin. Dada a obsessão do presidente com a história e o uso que ele faz da história para justificar seu regime, Medinski ocupa uma importante posição na Rússia hoje. Das sombras, ele ajudou a construir o fundamento ideológico e histórico no qual grande parte do poder de Putin se baseia.
Mas quem é ele?
Medinski nasceu na região de Cherkasi, na Ucrânia, em 1970. Mas ele não é de nenhuma maneira ucraniano. Seu pai era militar e Medinski passou a infância viajando por toda a União Soviética de guarnição em guarnição. Nesse ambiente itinerante, de acordo com amigos próximos, Medinski foi criado com valores muito conservadores, como um franco patriota soviético. A educação também foi importante — sua mãe era professora — e, na época, o levou ao Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou. Estudante exemplar, Medinski se sobressaiu na Escola de Jornalismo e foi membro da Comsomol, a juventude do Partido Comunista.
Quando Medinski se formou a União Soviética tinha colapsado. Ele não teve nenhuma dificuldade em se ajustar. Em 1992, com um grupo de colegas de faculdade, Medinski criou sua própria agência de publicidade, a Ya Corporation. Seus clientes eram principalmente firmas de finanças e fabricantes de cigarro. Logo ele se tornou relações públicas do lobby do tabaco — algo parecido com o inescrupuloso personagem principal do livro “Obrigado por fumar”, de Christopher Buckley, publicado em 1994. Mesmo assim, Medinski não negligenciou os estudos e continuou a vida acadêmica num doutorado.
Foi quando eu o conheci, quando era graduando do instituto, no fim dos anos 90. Dez anos mais velho, Medinski era indiferente e acabava de começar a lecionar relações públicas. A matéria era nova e estava na moda, e muitos de meus colegas, que queriam virar “RP”, sonhavam em aprender com ele. Um tipo de celebridade no campus, Medinski era considerado um empresário bem-sucedido e apoiava os estudantes solicitamente, levando os melhores para estágios em sua empresa.
Em 2000, Putin tornou-se presidente da Rússia, assumindo após Boris Iéltsin. Como se supõe de qualquer profissional de RP, Medinski se adaptou à mudança no ambiente — e apostou em um cargo no serviço civil e na carreira política. Em 2004, ele era parlamentar pelo partido Rússia Unida, de Putin. Apesar de acusações de que continuava a fazer lobby por empresas de cigarros e cassinos enquanto autoridade eleita, Medinski era um homem em ascensão.
Ajudou ele ter começado a vender patriotismo. Em 2007, este ex-lobista da indústria do tabaco começou a escrever livros sobre história — ou, melhor colocado, começou a criar RP históricas. Numa série de livros chamada “Mitos sobre a Rússia”, Medinski buscou desmascarar estereótipos russos e colocar novas narrativas em seu lugar. Havia muito a respeito de “Alcoolismo russo, preguiça e crueldade”, “Rússia roubada, alma e paciência” e “Democracia russa, sujeira e prisão”.
Em cada livro, Medinski argumentava que tudo de ruim na história da Rússia é difamação de inimigos. Por exemplo, Ivan, o Terrível não foi um tirano ensandecido — porque, por um lado, sempre foi motivado pelos interesses de seu povo e fez todo o possível pelo bem da Rússia; e por outro, os governantes do Ocidente naquela época eram ainda mais cruéis. E, em qualquer caso, todas essas supostas atrocidades eram na realidade fantasias de historiadores europeus.
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Desde o início, a obra de Medinski foi criticada por verdadeiros historiadores russos. Mas ele nunca escondeu que sua obra não se baseava em fatos. Fatos não eram importantes para ele; o objetivo real era criar uma narrativa persuasiva. “Fatos em si não significam muita coisa”, escreveu Medinski em um de seus livros. “Tudo começa não com fatos, mas com interpretações. Se nós amamos nossa pátria, nosso povo, a história que temos de escrever será sempre positiva.”
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Armado com essa abordagem, Medinski fabricou o mito de uma Rússia benevolente e poderosa sempre triunfando em nome da justiça sobre países supostamente inferiores. Esse mito claramente chamou a atenção do presidente e, em 2012, Putin nomeou Medinski ministro da Cultura. De acordo com uma fonte próxima ao Kremlin, Medinski recebeu uma missão clara do presidente: promover a militarização da sociedade russa.
Foi exatamente isso que ele fez. Em 2013, Medinski dirigia a Sociedade Histórica e Militar da Rússia, uma organização de caridade que, em eventos e exposições, glorifica vitórias militares do passado. Como ministro, Medinski direcionou recursos para financiar filmes que criam mitos patrióticos sobre a 2.ª Guerra, como “Maria, o símbolo de uma guerra” e “Os 28 homens de Panfilov”. A arte foi desdenhada — numa reunião, Medinski afirmou que não considerava arte nada que ele mesmo pudesse desenhar — em favor dessas produções. A política cultural de Medinski pode ser descrita como propaganda de guerra e violência.
Foram anos de sucesso. Mas no início de 2020 Putin mudou a composição de seu governo e, juntamente com quase todos os outros ministros, Medinski foi demitido — e nomeado assistente do presidente. Foi uma queda em status bastante significativa, de acordo com pessoas próximas, e o rebaixamento causou mágoa. (Aparentemente Medinski ficou especialmente incomodado por não receber mais o carro novo destinado aos integrantes do gabinete presidencial.)
Mas a pandemia ajudou-o a se levantar. No verão de 2020, Putin estava isolando-se em sua residência em Valdai. Desde sempre interessado em história, lá, com tempo de sobra, o presidente ficou notavelmente obcecado com o assunto. Putin começou a falar sobre temas históricos mas precisava de um assistente, alguém que lhe aprimorasse as ideias e lhes desse expressão plena. Medinski era a escolha óbvia.
Na verdade não é Medinski exatamente que escreve seus próprios textos. O ghost-writer de Putin tem sua própria equipe — extensa — de ghost-writers. Medinski ainda dirige a Sociedade Histórica e Militar da Rússia, cujos funcionários trabalham sobre seus artigos e livros. Em geral o processo é assim: o presidente dita suas teses para Medinski, que as desenvolve e dita, por sua vez, aos seus assistentes; os redatores escrevem, então, os ensaios, e os textos partem na direção oposta — para Medinski e, finalmente, Putin — para ser editados.
Foi dessa maneira, por exemplo, que foi elaborado o infame artigo assinado por Putin em 2021, no qual ele escreveu pela primeira vez que o Ocidente estava deliberadamente transformando a Ucrânia em um Estado “anti-Rússia”. O texto é repleto de alegações grotescas: que russos e ucranianos são um só povo; que a Ucrânia é uma criação dos bolcheviques; que o Império Russo e a União Soviética nunca infringiram os direitos dos ucranianos. O artigo, publicado no website oficial do presidente, foi enviado para todas as unidades militares do Ministério da Defesa, e Putin ainda repete regularmente seus tópicos centrais em discursos públicos. O artigo foi incluído quase inteiro no novo livro escolar de história.
A cartilha, impregnada pelo poder de moldar uma geração inteira de estudantes russos, pode ser a maior realização de Medinski até aqui. De acordo com colegas, ele considera a si mesmo semelhante aos intelectuais conservadores do Império Russo — como Konstantin Pobedonostsev, o infame ideólogo do reinado de Nicolau II; outros modelos são Andrei Zhdanov, braço-direito de Stálin após a 2.ª Guerra, e Mikhail Suslov, principal ideólogo de Brejnev a defender perseguição a dissidentes.
Medinski, evidentemente, não passa de uma paródia dessas figuras — assim como sua versão da história russa: uma mentira irrealista e deslavada que serve, na prática, para denunciar toda a narrativa da história russa. Apesar de todo seu sucesso, Medinski ainda poderá cavar a sepultura da ideologia imperial russa. Porque depois dele poderá não ser mais possível falar a respeito do passado da Rússia sem horror, vergonha e nojo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*Mikhail Zygar (@zygaro) foi editor-chefe do canal televisivo de notícias independente Dozhd (TV Rain) e é autor de “War and Punishment: Putin, Zelensky and the Path to Rússia’s Invasion of Ukraine” (Guerra e castigo: Putin, Zelenski e o caminho até a invasão russa à Ucrânia) e “All the Kremlin’s Men: Inside the Court of Vladimir Putin” (Todos os homens do Kremlin’: Por dentro da corte de Vladimir Putin).