Um alinhamento político inédito para eleger o candidato de outro partido em uma eleição regional. O fato, que parece corriqueiro em um regime parlamentarista, balançou a estrutura da União Democrática Cristã (CDU), partido da chanceler Angela Merkel e maior força política da Alemanha, tendo governado o país em 50 dos últimos 70 anos.
A “aliança” com o Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema-direita, teve consequências nacionais, como a renúncia da presidente da sigla, e pôs dúvida sobre os planos de sucessão para o cargo de chanceler.
A crise política começou com as eleições regionais da Turíngia, quarto estado mais populoso da Alemanha, no dia 5 de fevereiro.
Para evitar a vitória do esquerdista Bodo Ramelow, do partido Die Linke (‘A Esquerda’, em português), liberais, conservadores e extrema-direita se uniram pela primeira vez desde 1945, em um acordo tácito para eleger o candidato do Partido Democrático Liberal (FDP, na sigla alemã), Thomas Kemmerich.
“A reação pública a esse acontecimento teve grandes proporções. Na mesma noite em que o candidato do FDP aceitou a vitória conquistada com o apoio da AfD, milhares de pessoas se reuniram em frente aos escritórios do partido em todo o país para protestar”, diz ao Estado Paulina Frölich, líder do programa ‘Futuro da Democracia’, do Centro Progressista de Berlim.
Com a pressão popular, a coalizão se desmanchou em menos de 24 horas. Kemmerich renunciou ao cargo um dia após a eleição, dando fim a qualquer chance de um governo formado por uma frente ampla de direita.
‘Aliança indireta’
Apesar do termo ‘união’ ter sido usado largamente pela imprensa para descrever a relação entre a CDU e o AfD durante as eleições na Turíngia, Frölich vê a situação mais como uma ‘aliança indireta’.
“A aliança entre o FDP e o AfD existiu, porque o FDP enviou um candidato e ele aceitou a vitória com a ajuda dos extremistas”, diz. No entanto, quanto ao papel da CDU, Frölich explica que o alinhamento ocorreu por omissão.
“A CDU também desempenhou um papel importante porque, antes da eleição, o partido anunciou que não lançaria um candidato próprio. Isso aconteceu porque eles sabiam que a única chance de vencer seria com os votos da extrema-direita", explica a pesquisadora.
"Eles mantiveram a promessa e não formalizaram nenhuma aliança direta, mas assumiram o risco de iniciar essa crise política ao apoiar o candidato da FDP, que também foi apoiado pelo AfD.”
Mesmo sem um acordo selado entre os dois partidos, a aliança indireta foi suficiente para provocar reações exaltadas na cúpula do partido. Angela Merkel, que estava em viagem oficial pela África, voltou às pressas para Alemanha e chegou a declarar que “as eleições deveriam ser canceladas”.
Ao mesmo tempo, o secretário geral da CDU, Paul Ziemiak, falou que as eleições marcaram “um dia escuro para a Turíngia” e também sugeriu que novas eleições fossem realizadas. “O mais grave, no entanto, é constatar que os deputados locais tenham considerado possível realizar uma eleição junto com nazistas”, disse em entrevista.
Mas nem as declarações fortes foram suficientes para manter a crise restrita aos limites da Turíngia. A presidente da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer, principal cotada para suceder Merkel como chanceler do país, renunciou à liderança do partido e à possibilidade de concorrer ao cargo. A atual chanceler também tomou uma atitude: demitiu pessoalmente os representantes do partido no leste da Alemanha.
Desafio eleitoral
A instabilidade na CDU, aproximadamente um ano antes da escolha do próximo chanceler, põe em dúvida o futuro político do país. O partido é atualmente a maior força política da Alemanha, com 246 assentos no Bundestag (parlamento alemão), seguido pelo Partido Social Democrata (SPD), que tem 152, e pelo AfD, com 89. Contudo, os conservadores terão que superar uma série de desafios internos para superar essa crise e se manterem dominantes em nível nacional.
“A CDU tem uma questão muito importante e nada fácil de resolver: como e com quais explicações vai se alinhar com a AfD ou com a esquerda?”, diz Paulina. Segundo a pesquisadora, o posicionamento oficial da CDU é de não cooperar com a esquerda e nem com a extrema-direita.
“Em tempos onde o espectro partidário se diversifica, os polos à esquerda e à direita vencem o que está ao centro do partido - o que conhecemos por polarização. A CDU terá dificuldades para conseguir a maioria para formar governo.”
Avanço contido
Na avaliação de Paulina Fröhlich, uma aliança nacional com a extrema-direita em 2021, quando devem ocorrer as próximas eleições, pode ser descartada. Segundo ela, se o FDP usou a Turíngia como um “experimento”, a ideia falhou. “Uma ampla gama de cidadãos - liberais, tradicionalistas, conservadores, verdes e esquerdistas - mostrou sua clara aversão a esse ‘experimento’.”
Ela explica que o processo de normalização do populismo de extrema-direita ocorre por etapas: primeiro eles tentam ser aceitos como parceiros de cooperação política local, depois buscam conquistar instituições e, então, um dia podem construir uma coalizão nacional.
“Mas felizmente posso dizer que a maioria dos políticos - na CDU, no FDP e em todos os outros partidos - conhecem o caráter antidemocrático do AfD e negam essa cooperação.”
A pesquisadora diz que a AfD tem ganhado influência, especialmente na Turíngia, onde teve 23% dos votos. “Mas a influência é maior do que mostram os números eleitorais. Eles dominam o discurso público. Desinformação e provocações são cuidadosamente projetadas e colocadas durante discussões parlamentares, na imprensa e nas mídias sociais”, explica.
Para ela, a visão de futuro da AfD é muito clara: “é uma visão do passado”. Uma sociedade culturalmente homogênea com rótulos claros do que é legítimo ou não. “Em tempos de incerteza e temores futuros, uma imagem tão clara é atraente para alguns. É uma pena que nosso país testemunhe a recorrência de uma ideologia nacionalista e de mente fechada. Ao mesmo tempo, sua existência leva os democratas liberais a trabalharem mais e a permanecerem juntos.”