Com dois aliados dos Estados Unidos dependendo de apoio militar em guerras na Europa e no Oriente Médio e a competição econômica com a China chegando a patamares recordes, vizinhos do continente americano, especialmente tratando-se da América Latina, não deverão ser a maior prioridade do próximo presidente dos Estados Unidos no que se refere à política externa.
Mesmo assim, Donald Trump ou Kamala Harris terão de lidar com alguns desafios crescentes na região, como o fluxo migratório que passa pelo México, o narcotráfico e a relação com figuras autoritárias, como o ditador venezuelano Nicolás Maduro.
“A América Latina é mais problema do que solução para os EUA”, pontua Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para a especialista, o que poderá fazer com que o próximo presidente atue de forma mais estratégia na região é a influência da China.
“Hoje, você tem na América Latina 22 países que já assinaram o memorando da Rota da Seda. Isso é péssimo para os Estados Unidos, porque, do ponto de vista geopolítico, não significa que eles vão perder a liderança na região, mas significa que você cria um terreno para que esses países se distanciem dos Estados Unidos”, explica.
Veja abaixo como as eleições americanas podem impactar alguns países da América, e como seria a relação dos EUA com o Brasil nos dois cenários de vitória.
Fronteira com o México é tema central
Migração é um dos temas chaves das eleições americanas e é também o tópico de maior divergência entre Donald Trump e Kamala Harris. O assunto recai diretamente sobre o México, que é por onde grande parte dos imigrantes ilegais entram nos Estados Unidos.
Entre janeiro de 2021 e janeiro de 2024, a Patrulha de Fronteira dos EUA confirmou mais de 7,2 milhões de travessias de migrantes ilegais ao longo da fronteira com o México. Trump, que atribui aos migrantes uma competição desleal no mercado de trabalho americano e acusa-os de integrarem manicômios e prisões de seus países de origems, promete conter o fluxo migratório e a continuação da construção do muro na fronteira.
O republicano portanto deverá pressionar o México para colaborar no combate à imigração ilegal. Essa pressão poderá ser feita por meio do aumento tarifas ou da ameaça da não renovação do acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), que será revisado em 2026 — tanto Trump quanto Kamala prometeram analisar de perto o acordo. O pacto comercial foi fechado durante o primeiro mandato de Trump em 2020 e substituiu o Acordo de Livre Comércio da América do Norte.
Além disso, uma das propostas apresentadas pelo ex-presidente para contenção migratória é o programa “Remain in Mexico”, que exigia que solicitantes de asilo permanecessem no México enquanto seus casos eram processados.
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Com a crise dos opióides atingindo os Estados Unidos, o narcotráfico também é um assunto a ser resolvido entre EUA e México. Trump poderá ter uma abordagem mais agressiva, incluindo a retomada de uma ideia proposta por ele em 2019 de designar os cartéis como “organizações terroristas”, o que permitira operações mais invasivas sobre o México.
Do outro lado, é provável que o governo de Claudia Sheinbaum resista a uma interferência excessiva dos EUA, o que pode dificultar essa cooperação, especialmente se houver divergências sobre métodos e níveis de envolvimento.
Já uma presidência de Kamala provavelmente seria caracterizada por uma cooperação diplomática mais ampla entre Estados Unidos e México. A democrata defende uma “reforma abrangente” da emigração aos EUA e promete um projeto de lei bipartidário de segurança de fronteira que falhou duas vezes no Congresso.
Kamala tem trabalhado para construir relações positivas com Claudia Sheinbaum, buscando reforçar a cooperação para melhorar os mecanismos legais de entrada para diminuir a migração ilegal.
Quanto ao tráfico de drogas, Kamala já enfatizou que dará continuidade às estratégias de colaboração entre EUA e México para combater redes de tráfico. Sua campanha diz que ela assinará o projeto de lei bipartidário de segurança de fronteira para financiar tecnologia que ajudaria a detectar drogas ilegais sendo contrabandeadas pela fronteira.
Canadá aguarda revisão do USMCA
A revisão do acordo Estados Unidos-México-Canadá em 2026 é espera com ansiedade no Canadá, que tem os EUA como maiores parceiros comerciais. Aproximadamente 75% das exportações canadenses têm como destino os EUA, especialmente produtos como petróleo, veículos e maquinário.
Com a revisão do acordo, Trump poderia trazer uma postura protecionista para promover o que ele chama de “comércio mais justo” com o Canadá. As políticas de Trump, principalmente contra importações chinesas, também podem afetar cadeias de suprimento na América do Norte, pressionando empresas canadenses a buscar outros parceiros comerciais ou transferir produção para os EUA. Recentemente, para a Fox News, o republicano afirmou que com a revisão do USMCA gostaria de “tirar vantagem, agora, da indústria automobilística”, disse.
Kamala também sugeriu que gostaria de fazer mudanças no USMCA. Em 2020, ela foi uma dos 10 senadores dos EUA que votaram contra o acordo e, já no cargo de vice-presidente, afirmou que o acordo não protegia suficientemente os trabalhadores dos Estados Unidos.
Um dos pontos de revisão que Kamala poderia fazer seriam as questões ambientais, defendendo padrões ambientais mais rigorosos nos acordos comerciais. A democrata afirmou que as disposições ambientais do acordo eram “insuficientes — e ao não abordar as mudanças climáticas, o USMCA falha em lidar com as crises deste momento”.
Os dois extremos da relação Brasil-EUA
Lula já deixou claro que prefere uma vitória de Kamala nos Estados Unidos, afirmando que a vitória da vice-presidente é a “opção mais segura para o fortalecimento da democracia nos EUA”. Não é novidade, uma vez que o petista é aliado do atual de Joe Biden. A vitória de Kamala, portanto significaria uma linha mais cooperativa, com pontos de diálogo com o governo Lula em questões de proteção ambiental, com foco na preservação da Amazônia.
No entanto, a postura de Lula em relação a potências como Rússia e China pode criar tensões, especialmente em temas geopolíticos sensíveis, como a guerra na Ucrânia e a Rota da Seda da China que, embora o País ainda não seja signatário, sofre uma pressão dos EUA para não aderir.
“A China está vindo para cá. É o nosso maior parceiro comercial, então tem a questão da disputa por terras raras, minerais críticos, instalações de fábricas chinesas e a infraestrutura da Rota da Seda, então é uma preocupação para o próximo presidente”, diz Cristina.
Por outro lado, uma vitória de Trump traria desafios específicos para as relações Brasil-EUA. Sem o apoio ideológico que teve com Bolsonaro, Trump poderia adotar uma postura mais pragmática e menos inclinada ao multilateralismo, pressionando o Brasil em questões econômicas, como abertura de mercado e comércio bilateral.
As relações com Rússia e China também poderiam ser um problema. O foco de Trump em interesses de segurança nacional e seu ceticismo em relação a acordos ambientais globais pode tornar difícil uma colaboração efetiva na área ambiental, limitando as oportunidades de cooperação entre os dois países em temas globais e de interesse comum.
O autoritarismo na América Latina representado por Maduro
Daniel Ortega, da Nicarágua, Miguel Díaz-Canel, de Cuba e Alejandro Giammattei, Guatemala, são alguns dos líderes latinos que têm gerado preocupação nos EUA com a escalada de autoritarismo. Mas nenhum deles é uma dor de cabeça tão grande quanto Maduro, especialmente após as eleições fraudadas de julho.
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“Venezuela é uma convergência plena entre democratas e republicanos”, sintetiza Cristina, afirmando que ambos enfrentam o desafio de lidar com a crise humanitária e migratória venezuelana e o autoritarismo crescente no país.
Caso Trump vença, é provável que retome sua política de “pressão máxima”, com o aumento de sanções econômicas e pressão diplomática para isolar Maduro. Trump já acusou o regime venezuelano de liberar prisioneiros para se infiltrarem como imigrantes nos EUA, e sua política poderia buscar tanto intensificar as sanções quanto explorar possíveis negociações para limitar o fluxo de migrantes e enfraquecer o governo de Maduro.
Por outro lado, uma administração Kamala tenderia a seguir a abordagem mais diplomática da gestão Biden, que, apesar de buscar negociações e oferecer alívio de sanções, não conseguiu conter a repressão e a crise no país. Diante das recentes eleições venezuelanas fraudulentas em 2024 e da repressão subsequente, Kamala poderia tentar aumentar a pressão junto a aliados internacionais, mas com foco em uma solução diplomática.
Ambas as abordagens, no entanto, enfrentariam o desafio de uma migração em massa, pois a repressão e a crise econômica na Venezuela provavelmente levarão milhões de venezuelanos a deixarem o país. Quase 8 milhões de venezuelanos já fugiram do seu país desde que Maduro assumiu o poder, em 2013, e estima-se que outros milhões sairão após as eleições.