Por séculos, o comércio com a Europa foi o principal pilar da economia russa.
A guerra na Ucrânia pôs fim a isso, com sanções ocidentais e outras restrições cortando a Rússia cada vez mais dos mercados europeus. Em resposta, Moscou ampliou as relações com países mais dispostos a fazer negócios com os russos — ao leste a China e, por meio de uma rota ao sul, Índia e Golfo Pérsico.
Essa rota austral tornou-se agora foco de formuladores de políticas russos conforme eles tentam construir infraestrutura para seus planos de se afastar definitivamente do Ocidente. O esforço enfrenta desafios, incluindo dúvidas a respeito de financiamento, confiabilidade dos novos parceiros da Rússia e ameaça de sanções ocidentais contra países que façam negócios com a Rússia.
Uma parte importante do plano sul é uma ferrovia de 160 quilômetros, orçada em US$ 1,7 bilhões, com construção prevista para se iniciar este ano, que seria a ligação final em uma rota entre a Rússia e portos iranianos no Golfo Pérsico — fornecendo acesso fácil a destinações como Mumbai, a capital comercial da Índia. A Rússia concordou em emprestar ao Irã US$ 1,4 bilhão para financiar o projeto.
“Conforme as rotas comerciais tradicionais da Rússia foram amplamente bloqueadas, o país teve de considerar outras opções”, afirmou o especialista em transporte e logística Rauf Agamirzayev, radicado em Baku, Azerbaijão, referindo-se à rota austral.
A Rússia encontrou numerosas maneiras de contornar as restrições comerciais do Ocidente, importando mercadorias como maquinário da Índia e armas do Irã, assim como uma série de itens de consumo — com frequência por meio de países do Golfo e da Turquia — que o governo considera crucial para mostrar aos russos que é capaz de manter o padrão de vida em um tempo de guerra.
Ainda que itens de consumo europeus ainda possam entrar legalmente, toda uma gama de mercadorias restritas ou difíceis de obter também está amplamente disponível na Rússia. Ostras francesas, trazidas de avião com um desvio em alguma terceira localidade, são oferecidas em um restaurante de Moscou. Trufas italianas e champagnes francesas, cuja exportação foi banida pela União Europeia, são encontradas em uma rede de mercados de artigos de luxo.
O governo russo considera o projeto de ferrovia através do Irã — e outra linha que espera restaurar para ter acesso à Turquia — essencial para fixar permanentemente e acelerar o fluxo de todas essas importações para a Rússia. A rota também é considerada crítica para incrementar as exportações russas de recursos naturais, fundamentais para a economia.
O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que a nova rota diminuirá o tempo de viagem das cargas de Mumbai a São Petersburgo para apenas 10 dias, dos atuais 30 a 45 dias de demora. Autoridades russas a estão qualificando como um “projeto revolucionário e inovador”, que competirá com o Canal de Suez.
A nova ligação também complementará rotas comerciais até a China, atualmente a maior parceira comercial da Rússia, conforme as vias ficam sobrecarregadas. Desde 2021, pouco antes da invasão em escala total à Ucrânia, de fevereiro de 2022, o comércio da Rússia com a China aumentou cerca de 63%, para mais de US$ 240 bilhões em 2023, de acordo com registros chineses.
Leia também
O comércio também está aumentando com a Índia, alcançando US$ 65 bilhões, mais que quatro vezes o montante de 2021. O comércio da Rússia com ambos os países em 2023 ultrapassou seu comércio anterior à guerra com a União Europeia, que alcançou US$ 282 bilhões em 2021.
A nova ferrovia ligará duas cidades iranianas, Astara e Rasht, conectando trilhos entre o Irã e o Azerbaijão ao norte e posteriormente à rede ferroviária russa. Quando concluído — estima-se que em 2028 — o novo “Corredor de Transporte Norte-Sul” se estenderá ininterruptamente por mais de 7 mil quilômetros; fora do alcance das sanções do Ocidente.
Dos portos iranianos no Golfo Pérsico, as empresas russas terão acesso fácil à Índia e também a destinos como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Paquistão e além.
Uma rota comercial através do Cáucaso, da Ásia Central e do Mar Cáspio até o Irã já foi importante para a Rússia nos meses recentes, de acordo com o jornal Lloyd’s List, especializado em notícias marítimas e inteligência. A Rússia tem enviado petróleo e produtos como carvão coque e fertilizantes no sentido oposto.
Gagik Aghajanyan, diretor da Apaven, a maior empresa de agenciamento de cargas da Armênia, afirmou que sua frota de caminhões transporta frequentemente itens de consumo, que lhes são entregues por ferrovias a partir de portos na Geórgia e no Mar Negro, e então os transfere para o norte através da fronteira terrestre com a Rússia. Outras mercadorias mais sensíveis, como as proibidas pelos Estados ocidentais, podem chegar pelo Irã, que faz fronteira com a Armênia, afirmou ele. De portos iranianos, as mercadorias podem partir para a Rússia através do Mar Cáspio.
“Os georgianos dizem, ‘Essas mercadorias são sancionadas, nós não deixaremos vocês atravessarem para a Rússia’”, afirmou Aghajanyan. “E os iranianos dizem, ‘Nós não nos importamos’.”
Em 2023, o volume de comércio através dessa rota aumentou 38% em relação a 2021, de acordo com Andrei Belousov, o vice-primeiro-ministro russo da Economia, e poderão triplicar até 2030.
Além da linha através do Irã, a Rússia também quer restaurar uma antiga ferrovia soviética que conectava Moscou com o Irã e a Turquia através da Armênia e do enclave azerbaijanês de Nakhichevan. A ferrovia foi abandonada no início dos anos 90, quando uma guerra entre Armênia e Azerbaijão estourou.
A Rússia espera ter a ferrovia pronta e em operação em alguns anos, mas o projeto tem sido dificultado pela complicada geopolítica da região.
O Azerbaijão está ávido para concluir a ligação, mas a Armênia tem relutado em concordar com o projeto por preocupações a respeito de quem controlará os trilhos em seu território. Na era soviética, a linha pertenceu a uma ferrovia azerbaijanesa. Em 2020, a Armênia assinou um acordo que cedeu seu controle para um serviço de segurança russo.
Mas a Rússia, que no passado foi aliada próxima da Armênia, tem ficado cada vez mais amiga do Azerbaijão e não fez nada enquanto os azerbaijaneses assumiram controle total da região separatista de Nagorno-Karabakh, que ficou sob controle de armênios por mais de três décadas. Agora, os armênios querem controlar essa parte da própria ligação ferroviária, centrada na cidade de Meghri, localizada estrategicamente na fronteira com o Irã.
Por enquanto, a estação de trem em Meghri permanece uma relíquia do passado soviético. Seus salões são repletos de antigos mapas ferroviários e passagens ocultam-se sob folhas secas e poeira. Seus trilhos, construídos mais de um séculos atrás pela Rússia czarista, foram substituídos há muito por jardins.
A ferrovia foi abandonada no início dos anos 90, quando a guerra entre Armênia e Azerbaijão estourou.
Confira mais
A empresa ferroviária azerbaijanesa está próxima de concluir seu trecho de trilhos até a Armênia através de territórios que o país ocupava até a guerra de 2020. De lá, os trilhos poderão seguir tanto pela Armênia quanto pelo Irã, caso a Armênia decida ficar fora da rota.
“A Rússia pode conseguir uma rota ferroviária até o Golfo Pérsico e a Turquia”, afirmou o especialista em políticas russas no Oriente Médio Nikita Smagin, do Conselho Russo de Assuntos Internacionais, um instituto de análise. “E pode fazê-lo rapidamente, em até dois anos.”
O diretor da empresa ferroviária do Azerbaijão, Rovshan Rustamov, afirmou que a parte azerbaijanesa do projeto deverá ser concluída no fim de 2024. Essa operação logística, afirmou ele, poderá até superar o petróleo enquanto principal impulsionador da economia do país.
O Azerbaijão também espera que o Porto de Baku possa lucrar com a nova posição do país como polo de transporte de mercadorias que saem da Rússia para o mundo exterior — assim como entre Ásia e Europa, contornando convenientemente a Rússia.
Após o início da invasão russa à Ucrânia, autoridades em Baku anunciaram planos de desenvolver uma segunda fase do porto para atender a um crescimento esperado no tráfego de cargas.
“O estudo de viabilidade que tínhamos antes mostrou que não precisávamos apressar a expansão”, afirmou o diretor-geral do Porto de Baku, Taleh Ziyadov. “Depois que a guerra começou, nós fizemos um novo estudo que mostrou que nós tínhamos de adiantar essa data, talvez para 2024.”
Ainda que algumas autoridades russas tenham enaltecido as novas rotas comerciais, alguns líderes empresariais não estão tão certos a respeito de seu sucesso.
“Parece uma decisão forçada, não tomada por razões objetivas”, afirmou Ivan Fedyakov, diretor da consultoria russa de mercado InfoLine, que assessora empresas a respeito de como sobreviver sob as atuais restrições.
“O que está sendo criado é, essencialmente, uma rota comercial dos párias”, afirmou Ram Ben Tzion, cuja empresa, Publican, analisa evasões a restrições comerciais. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL