Trinta e seis anos depois do sequestro e desaparecimento de Fernando Ortíz, a família dele finalmente recebeu seus restos mortais: cinco fragmentos de osso em uma caixa.
Ortíz, um professor de 50, foi capturado em 1976 durante a ditadura do general Augusto Pinochet, arregimentado com outras lideranças comunistas no Chile e enviado a um centro de tortura tão secreto que, durante três décadas, ninguém soube da sua existência.
Ninguém saiu vivo da instalação secreta batizada com o nome da rua em que se situava: Simón Bolívar. Era pouco mais do que uma casa na zona rural a leste da capital, administrada pela agência de espionagem do governo, DINA. Não há testemunhas nem sobreviventes que possam elucidar o destino dos prisioneiros. Durante décadas, houve apenas um silêncio ensurdecedor.
Ortíz foi um dos 1.469 chilenos que desapareceram durante o regime militar do país entre 1973 e 1990. Desses, apenas 307 foram localizados e identificados.
Agora, antes do aniversário de 50 anos do golpe que derrubou uma das democracias mais estáveis da América Latina e instalou uma ditadura que, ao longo de 17 anos, prendeu, torturou e assassinou milhares de seus opositores, o Chile deu início a um plano nacional de busca para rastrear os desaparecidos remanescentes.
“A justiça já demorou demais”, disse o presidente do Chile, Gabriel Boric, durante cerimônia na quarta feira, 6, para a assinatura de um decreto presidencial definindo os parâmetros do plano. “Não estamos fazendo um favor às famílias. A sociedade como um todo tem o dever de apresentar as respostas que o país merece e das quais necessita.”
A medida marca a primeira vez desde o fim do regime de Pinochet que o governo chileno tenta encontrar os desaparecidos, tarefa que até agora coube principalmente às famílias deles, em particular às mulheres, que protestaram, fizeram greve de fome e levaram seus casos aos tribunais. Até o momento, foi somente por meio desses casos judiciais que as covas foram identificadas.
“O estado os levou embora, e é o estado que deve arcar com a responsabilidade da reparação, da justiça e da manutenção das buscas”, disse Luis Cordero, ministro da justiça e dos direitos humanos do Chile, em entrevista ao jornal americano New York Times.
Dois tios-avós de Cordero foram capturados em 1973 e nunca foram encontrados.
Outros países sul-americanos que viveram ditaduras militares nos anos 70 e 80 tiveram diferentes graus de sucesso na recuperação dos restos mortais dos seus desaparecidos. Equipes forenses na Argentina recuperaram mais de 1.400 corpos, dos quais 800 foram identificados. No Brasil, os esforços para localizar 210 desaparecidos renderam pouco resultado. A agência paraguaia incumbida de localizar e identificar os 336 desaparecidos no país descobriu apenas 34 deles.
O plano vai centralizar e digitalizar o imenso volume de arquivos judiciais e outros documentos espalhados entre diferentes agências do governo e organizações de defesa dos direitos humanos, usando um software especial para cruzar as informações. Irá também financiar a exploração de sítios onde as vítimas podem ter sido enterradas, ou onde as escavações estão pendentes há anos por falta de recursos.
Em geral, buscar justiça para os mortos ou desaparecidos tem sido um processo doloroso e arrastado.
Durante décadas, o sistema de tribunais do Chile ficou paralisado por uma lei de anistia da era Pinochet que impedia o indiciamento dos responsáveis por abusos dos direitos humanos cometidos entre 1973 e 1978. Foi somente em 2000 que o judiciário parou de usar essa lei para arquivar os casos, e juízes especiais foram nomeados para investigar tais crimes. Desde então, a Suprema Corte emitiu cerca de 640 decisões, mandando centenas para a prisão e, em janeiro de 2023, havia 17 juízes dedicando-se exclusivamente a quase 1.500 processos.
Com frequência, anos se passaram até que as famílias das vítimas reconhecessem que os desaparecidos jamais retornariam.
“Demoramos para aceitar a ideia de que estão mortos”, diz María Luisa Ortíz, filha de Fernando Ortíz e atual diretora de coleta e pesquisa do Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago, capital do Chile.
As famílias sabem que a probabilidade de encontrar os desaparecidos é pequena. Em 1978, quando os restos de 15 desaparecidos foram encontrados em um forno de cal abandonado, o general Pinochet ordenou ao exército que exumasse centenas de vítimas enterradas secretamente em todo o país para se livrar delas permanentemente. Corpos foram jogados no oceano ou em vulcões. Outros foram explodidos ou incinerados. A maior parte do material encontrado é formada por fragmentos de ossos, dentes e trapos.
O general Pinochet deixou o poder em 1990, mas seguiu no comando do exército do Chile até 1998. Ainda naquele ano, foi detido em Londres e acusado na Espanha por abusos dos direitos humanos, mas acabou sendo libertado e enviado de volta ao Chile por questões de saúde. O general Pinochet passou os últimos anos em reclusão e morreu em 2006.
Os esforços para a implementação do plano de Boric já começaram. Especialistas forenses começaram a escavação de novos sítios. O judiciário começou a digitalização de seus arquivos de direitos humanos. Um novo diretor da agência nacional forense do Chile, que conserva amostras de DNA de 896 famílias de desaparecidos, espera deixar para trás a negligência que marcou seu trabalho anterior.
Em meados dos anos 1990, o necrotério errou na identificação de 48 dos 96 restos descobertos em covas anônimas em Santiago, e o erro só foi reconhecido dez anos mais tarde. Em outro episódio, foi somente neste ano que as famílias das vítimas ficaram sabendo que 89 caixas de papelão contendo restos mortais recuperados em escavações em 2001 permaneceram duas décadas sem serem examinados, guardados no porão de uma universidade. De acordo com Cordero, as caixas foram organizadas e categorizadas este ano, e parte do seu conteúdo foi enviada a laboratórios no exterior.
O projeto de Boric não apresenta planos para obter informações do exército ou daqueles que estão cumprindo sentença. Apenas um pequeno número de agentes condenados, enfrentando doenças terminais ou perto da morte, ofereceram novas informações, disse Cordero.
“O plano precisa resultar em informações a respeito dos perpetradores”, disse a congressista Lorena Pizarro, filha de um líder comunista capturado em 1976 e ex-presidente da Associação de Parentes dos Desaparecidos. “E onde está essa informação? Temos que enfrentar o fato de que as forças armadas a possuem, e já é hora de pararem de dizer que ela não existe.”
As forças armadas nunca entregaram seus arquivos da época da ditadura, alegando que não existem mais. Parte deles, convertida em microfilme nos anos 1970, foi incinerada em 2000. O exército fornece dados específicos aos tribunais somente quando solicitado, mas nenhuma medida foi tomada para reaver todos os seus registros.
Para Nelson Caucoto, advogado defensor dos direitos humanos que trabalhou em centenas de casos, a chave está em abordar antigos agentes de baixa patente, recrutas e colaboradores civis que talvez não saibam os nomes das pessoas que mataram, mas podem se lembrar de onde os enterraram.
“O estado precisa ser proativo e procurá-los em suas casas”, disse ele. “São agentes que vivem no abandono, às vezes enfrentando a pobreza e fora do controle do exército. São vulneráveis e, conforme envelhecem, se tornam mais propensos a se arrepender e revelar segredos.”
Mas, mesmo com o envolvimento do governo, o processo de localização e identificação das vítimas pode levar anos.
Em 2001, o exército do Chile revelou informações que levaram a escavações na região de Cuesta Barriga, uma área montanhosa a oeste da capital. María Luisa e outros parentes passaram 90 dias no local enquanto fragmentos de restos eram descobertos.
“Foi um choque brutal”, disse María Luisa. “Nunca tínhamos pensado que encontraríamos pedacinhos. Imaginávamos encontrar os corpos inteiros.”
Mais tarde, em 2006, um guarda da DINA no alojamento Simón Bolívar revelou a existência da instalação secreta e descreveu em detalhes as torturas suportadas pelos prisioneiros ali.
A família de Ortíz ficou sabendo que ele foi morto a golpes de cassetete. O corpo dele foi jogado no elevador de uma mina em Cuesta Barriga junto com outros cadáveres. Outros corpos foram jogados de helicóptero no Pacífico.
Foram necessários outros 12 anos até que os quase 200 fragmentos de ossos e trapos de roupas encontrados em Cuesta Barriga fossem identificados, incluindo os de Ortíz. Nos tribunais, o caso se arrastou ainda mais. Em junho, 47 anos após os desaparecimentos, a suprema corte do Chile emitiu sua decisão final: penas de até 20 anos de prisão para 37 agentes da instalação de Simón Bolívar.
“Passei quase toda a minha vida mergulhada no horror”, disse María Luisa, que passou 47 anos entre documentos de tribunais e organizações de defesa dos direitos humanos. “Nada pode reparar o estrago feito. Recebemos cinco pedacinhos de ossos e disseram que são do nosso pai. Para mim, ele continua desaparecido, de certa forma. Não há um desfecho, uma conclusão. É tarde demais.”/TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL