Quando 2024 chegar ao fim, metade da população mundial terá participado de eleições, espalhadas por dezenas de países. Na metade deles, no entanto, a democracia está em declínio. É que, a exemplo do que se viu na Venezuela, o voto pode não se traduzir em poder popular de fato.
O relatório anual do V-Dem, instituto com sede na Universidade de Gothenburg, na Suécia, que mede o nível de democracia no mundo, aponta declínio em 31 dos 60 países com eleições este ano. A lista inclui a Índia, onde Narendra Modi conquistou o terceiro mandato consecutivo, e o México, que elegeu Claudia Sheinbaum, a sucessora que Andrés Manuel López Obrador.
“Por um lado, a democracia nunca foi apenas sobre eleições. Por outro, o modelo da zona cinza, em que os países tentam emular a democracia, parecer que são democracias embora não sejam seja, ficou mais comum nos últimos anos”, explica o diretor do V-Dem, Staffan I. Lindberg, em entrevista ao Estadão.
Em apenas três países há sinais de melhora. São eles: Macedônia do Norte, Maldivas e a Tunísia. Em todos os casos, ocorre o que o instituto define como democratização “U-Turn”, ou seja, um inversão de marcha, quando os indicadores melhoram depois de piorar. O Brasil é apontado como um destaque nessa categoria.
Os outros 26 países com eleições nacionais previstas para 2024 não apresentaram mudanças significativas no último ano a ponto de indicar uma tendência, seja de democratização ou de autocratização. É aqui que entram os Estados Unidos, onde as eleições são consideradas um grande teste para a democracia.
O ‘tudo ou nada’ para a democracia
Com tantas eleições em disputa, o estudo destaca que este ano pode ser considerado o “tudo ou nada” para a democracia. No caso dos países que avançam em direção à autocracia, as votações são processos críticos. Por um lado, tem o potencial para provocar mudanças. Por outro, podem ser instrumentos de poder para legitimar regimes e aprofundar a autocratização.
Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi, acusado de erodir a democracia e perseguir minorias mulçumanas, saiu da maior eleição do mundo com um resultado meio amargo: venceu, mas ficou bem aquém da maioria que esperava e viu a oposição sair fortalecida no Parlamento.
“Com a aura de invencibilidade de Modi arranhada, uma vitória da oposição no próximo ciclo eleitoral parece, de repente, inteiramente factível”, escreveu o analista político e professor de Relações Internacionais da FGV Oliver Stuenkel em coluna no Estadão. Ele notou que o resultado das urnas foi claro: o eleitorado preferiu preservar o sistema democrático, mesmo com suas imperfeições.
“É importante destacar que muito do movimento da Índia em direção ao autoritarismo está conectado BJP (Bharatiya Janata Party, o partido de Narendra Modi)”, lembra Ursula Daxecke, cientista política da Universidade de Amsterdã (UvA), especializada em estudos sobre a democracia. Ela afirma que há problemas crescentes no país, como controle sobre a imprensa, pressão sobre acadêmicos e ativistas e violência contra minorias religiosas. “Isso gera reações contrárias.”
Outro sinal de mudanças veio da África do Sul ― onde os índices democráticos estão em lento declínio há mais de uma década, segundo o V-Dem. O partido de Nelson Mandela (Congresso Nacional Africano) perdeu a maioria no Parlamento pela primeira vez em 30 anos de democracia e precisou formar alianças para governar.
Já no caso mexicano, os resultados podem inspirar menos otimismo. O popular López Obrador garantiu a continuidade do seu partido, Morena, no poder com a vitória esmagadora de Claudia Sheinbaum para presidência, com maioria na Câmara e no Senado.
Antes de passar a faixa para a pupila, ele conseguiu aprovar uma reforma do Judiciária sem precedentes. Em caso único no mundo, todos os juízes serão escolhidos por voto popular, inclusive, os ministros da Suprema Corte. Os críticos acusam o governo de minar a independência da Justiça e temem que o México volte a viver sob a hegemonia de um único partido, como aconteceu até o início da transição democrática nos anos 2000.
É que nos processos de corrosão das democracias, a Justiça tem sido alvo frequente de governos com aspirações autoritárias.
“O mais comum hoje em dia são os retrocessos democráticos, os processos em que as instituições são gradualmente corroídas”, contextualiza Nik de Boer, líder do projeto de pesquisa da UvA sobre os fundamentos da democracia. “Uma característica comum é a eliminação dos freios institucionais, frequentemente envolvendo a politização do Judiciário. Tribunais constitucionais que, em tempos normais, atuariam como freio tornam-se instrumentos do governo quando politizados.”
Limitar a atuação da oposição e das organizações não-governamentais, restringir a liberdade de imprensa e politizar a burocracia do Estado, afirma de Boer, são outras formas formas de minar a democracia por dentro. Além, é claro, de manipular as eleições.
Em El Salvador, as eleições deste ano confirmaram o domínio de Nayib Bukele, no país onde todos os ganhos democráticos conquistados a partir da década de 1990 foram revertidos nos últimos anos, segundo o relatório do V-Dem. Sob a justificativa de combater o crime, Bukele implementou o plano autoritário, que inclui prisões arbitrárias, violações dos direitos humanos, cerco à imprensa, e manobras para se manter no poder, como mostrou o Estadão em série de reportagens.
Bukele, em tese, não poderia disputar a reeleição, mas ignorou a regra com aval da Corte Constitucional, nomeada por ele, e saiu vitorioso. Conquistou mais de 80% dos votos, e uma base de apoio que chega a 58 dos 60 deputados na Assembleia de El Salvador.
Eleições na mira de autocratas
Diferentes estudos apontam que as eleições estão na mira de autocratas em busca de poder. O relatório anual da Freedom House, organização com sede em Washington, apontou que as eleições manipuladas, como a de El Salvador, foram uma das principais causas para o declínio da liberdade no mundo.
Essa manipulação pode ocorrer antes, com o controle da disputa — restrições de candidaturas, mudanças nas regras eleitorais, uso do Estado em benefício do grupo no poder — ou depois, com a tentativa de alterar os resultados.
O estudo da Fredom House foi publicado antes das eleições na Venezuela, mas a ditadura de Nicolás Maduro pode ser enquadrado em praticamente todas as formas de manipulação. Impediu a principal líder da oposição, María Corina Machado, de disputar; criou regras que praticamente impediram milhões de imigrantes de votar; restringiu a presença de observadores internacionais; e declarou vitória suspeita de fraude, sem apresentar os dados das urnas.
A Venezuela se encaixa no que Lindberg chama de extremo da escala de autocracias, assim como a Rússia, onde Vladimir Putin venceu este ano mais uma eleição de cartas marcadas, avançando para se tornar o líder mais longevo desde a revolução.
“A Venezuela está no extremo dessa escala, onde as eleições são apenas um teatro, uma farsa. É quase o mesmo que acontece em países como a Rússia e Belarus. Existe um espectro bastante amplo até chegarmos à Hungria, onde as condições são muito melhores, mesmo que ainda não seja democracia”, afirma.
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EUA e o grande teste para a democracia
Em 5 de novembro, os americanos vão fechar o ciclo de eleições decisivas, embora outros países continuem votando pelo menos até 22 de dezembro. A escolha se dará entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump, apontado pelos críticos como uma ameaça à democracia.
O líder republicano é réu por tentar reverter a derrota para Joe Biden em 2020, com pressão sobre autoridades eleitorais, esquema de eleitores falsos e o ataque ao Capitólio. Enquanto tenta voltar à Casa Branca, o republicano conseguiu evitar o julgamento com o recurso na Suprema Corte, de maioria conservadora, que concedeu lhe concedeu ampla imunidade.
Em caso de vitória, os críticos alertam para o que seria Donald Trump sem freios. O republicano rompeu com antigos aliados, que se posicionaram contra ataque ao Capitólio, consolidou o domínio sobre o partido e tem buscado se cercar de pessoas mais leais ao seu projeto político.
É o caso do companheiro de chapa J.D. Vance. Convertido de crítico a defensor ferrenho, ele afirma que, se estivesse no lugar do vice-presidente Mike Pence naquele 6 de janeiro de 2021, teria feito mais para impedir que o resultado fosse certificado pelo Congresso americano. Por se recusar a anular a eleição, Pence entrou na mira dos radicais, que gritaram “enforque Mike Pence” na invasão do Capitólio, e na lista de desafetos de Trump.
‘Desta vez, veríamos muito menos controle dos “adultos na sala”, ou seja, menos pessoas para moderar as ações de Trump. Na primeira vez, ele não tinha um grupo coeso ao seu redor que acreditasse no que ele estava fazendo, e agora ele está cercado por pessoas que apoiam suas intenções, o que resulta em menos freios e contrapesos’, avalia o historiador Jack Thompson, professor de Estudos Americanos na Universidade de Amsterdã.
Em caso de derrota, o temor é que as cenas de violência se repitam. Mesmo sem qualquer evidência de irregularidades no sistema eleitoral os EUA, o republicano nunca reconheceu a derrota na última eleição que afirma, sem provas, ter sido roubada, e tem dito que só aceitará os resultados desta vez se a disputa for “justa”.
Staffan I. Lindberg, diretor do instituto V-Dem
“Muitos cientistas políticos estão preocupados com algum tipo de conflito civil de baixa intensidade. Especialmente se Trump perder. Se eles não aceitarem o resultado, como não aceitaram da última vez. Dois terços dos membros do Partido Republicano ainda acreditam que a eleição foi roubada”, alerta Lindberg.
Do outro lado, o republicano, alvo de duas tentativas de assassinato durante a campanha, culpou o discurso dos seus adversários pelos ataques. Ele disse à Fox News que o atirador encontrado no seu campo de golfe agiu de acordo com a retórica democrata.
“A retórica deles está fazendo com que eu seja alvejado, quando sou eu quem vai salvar o país, e são eles que estão destruindo o país, tanto por dentro quanto por fora”, disse. Trump rejeitou o rótulo de “ameaça à democracia” e apontou os democratas como o perigo para os Estados Unidos. “Isso é chamado de inimigo interno. Eles são a verdadeira ameaça”.
Em sua maioria, os americanos expressam preocupação com a violência política em pesquisas. Mas as sondagens também têm alertado para o número crescente daqueles que estariam dispostos ao vale-tudo.
A primeira do Public Religion Research Institute sobre o tema, ainda em 2021, mostrou que 15% dos entrevistados concordaram com a seguinte afirmação: “Como as coisas saíram tanto dos trilhos, os verdadeiros patriotas americanos talvez tenham que recorrer à violência para salvar nosso país”. No ano passado, esse número era de 23%, chegando a 33% no recorte dos republicanos.
Outra pesquisa feito pela cientista político da Universidade de Chicago Robert Pape e noticiada pelo NY Times após a primeira tentativa de assassinato contra Trump mostra que a propensão à violência com fins políticos não é exclusividade da direita. Entre os entrevistados, 10% disseram apoiar o uso da força para impedir que o republicano se torne presidente. Outros 7% disseram o contrário: que apoiam o uso da força para levá-lo de volta a Casa Branca. E a quantidade de armas espalhadas pelos EUA, torna os dados ainda mais alarmantes.
“Estamos saindo do âmbito conhecido para o incerto”, afirma Jack Thompson. “Não se pode afirmar com certeza se a violência política vai ocorrer, mas as condições para que isso aconteça mudaram de tal forma que a violência se tornou mais provável, independente do resultado das eleições.”