Denúncia criminal contra Trump abalará os alicerces da democracia americana; leia a análise


Presidentes americanos foram efetivamente protegidos de acusações por mais de dois séculos; indiciamento de Trump quebra esse tabu e estabelece novo precedente

Por Peter Baker
Atualização:

WASHINGTON - Pela primeira vez dos Estados Unidos, um ex-presidente responderá na Justiça por acusações criminais. Repito: um ex-presidente americano responderá por um crime, pela primeira vez na história.

Desde que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, muitas coisas inéditas ocorreram. Limites foram violados, eventos inimagináveis chocaram o mundo. Ocorreu tanto que é fácil perder de vista o quão surpreendente este fato em particular é.

Apesar do foco em detalhes de mau gosto, na nova teoria jurídica e no impacto político, a história maior da denúncia criminal é a de um país trilhando um caminho nunca antes percorrido. Há profundas consequências para a saúde da democracia mais antiga do mundo.

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Por mais de dois séculos, os presidentes foram mantidos em um pedestal, mesmo os envolvidos em escândalos. Eram declarados imunes a processos durante o mandato e, efetivamente, permaneciam com esse status após deixarem a Casa Branca.

Da esquerda para a direita: Donald Trump, seu ex-advogado Michael Cohen e a atriz pornô Stormy Daniels: os pivôs da denúncia criminal contra o ex-presidente dos EUA  Foto: AP/Photo/Acervo

Isso chegou ao fim. Um novo precedente foi estabelecido. O país ficará despedaçado, como alguns temiam que acontecesse se Nixon fosse indiciado depois de Watergate? Será visto pelos americanos e no exterior como a ‘justiça do vencedor’, semelhante ao que ocorre em países em desenvolvimento, onde ex-líderes são presos por seus sucessores? Ou será um momento de ajustes de contas, um sinal de que mesmo alguém que já foi a pessoa mais poderosa do planeta não está acima da lei?

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“Quer a acusação seja justificada ou não, ela cruza uma linha enorme na política americana e na história jurídica americana”, disse Jack Goldsmith, professor de Direito de Harvard e ex-funcionário do alto escalão do Departamento de Justiça do presidente George W. Bush.

Se isso não bastasse para abalar as estruturas da república americana, a primeiro pode não ser a última. Trump pode enfrentar uma segunda acusação na Geórgia e uma terceira de promotores federais. Potencialmente, pode haver até uma quarta acusação.

Existe o pesar de que a acusação inédita envolva algo tão impróprio quanto pagar suborno para encobrir uma diversão sexual. Dado que o réu esteve envolvido em fatos muito mais devastadores, como tentar derrubar uma eleição e inspirar um ataque ao Capitólio para impedir a transferência de poder, as alegações dos promotores de Manhattan parecem menos do que históricas.

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Mas, se a questão for a responsabilização, o indiciamento desta quinta-feira pode redesenhar o cenário e tornar menos assustador para os promotores da Geórgia e de Washington seguirem o exemplo, acusando Trump de crimes mais graves se tiverem provas. Eles não terão mais que arcar com o ônus de justificar uma ação nunca antes feita. Deixe para o único presidente já acusado duas vezes no Congresso enfrentar tantos processos que os advogados precisam de uma tabela para acompanhar.

Enquanto a acusação de Trump leva o país a um rumo desconhecido, os autores da Constituição podem ter ficado surpresos apenas com o fato de ter demorado tanto. A política do Departamento de Justiça sustenta que os presidentes em exercício não podem ser indiciados, mas a Constituição deixa explícita a perspectiva de acusação após o mandato.

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Um presidente destituído pela Câmara e condenado e removido do cargo pelo Senado “não obstante, será responsável e sujeito a indiciamento, processo, julgamento e punição, de acordo com a lei”, declara o Artigo I, Seção 3 da Constituição.

“Geralmente, consideramos que essa linguagem sugere que, aconteça o que acontecer com relação a um impeachment enquanto um presidente estiver no cargo, ele ainda pode ser responsabilizado civil ou criminalmente após deixar o cargo por sua má conduta”, disse Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte.

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Em outras palavras, nenhum ex-presidente estava imune à responsabilidade criminal. “Os autores teriam ficado horrorizados com a possibilidade de um presidente estar acima da lei enquanto estava no cargo ou depois de deixá-lo”, disse Gerhardt.

De fato, ao votar para absolver Trump no segundo processo de impeachment - aquele que o acusou de incitar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio - o senador Mitch McConnell, líder republicano de Kentucky, disse que o fez porque o Trump não estava mais no cargo, mas ressalvou que ele está sujeito a processo criminal.

“Minha opinião é que, desde que o caso seja instaurado por um crime que não é incomum de se acusar, e a prova também seja tão forte quanto normalmente - ou seja, que alguém se proteja contra o problema de um julgamento seletivo - então é imperativo que responsabilizemos os políticos, independentemente do cargo que ocupam ou ocuparam”, disse Andrew Weissmann, assistente de Robert S. Mueller III, que investigou como conselheiro especial os laços da campanha de Trump com a Rússia.

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Meena Bose, reitora executiva da Escola de Governo Peter S. Kalikow da Universidade Hofstra e diretora de um projeto de história presidencial, afirmou que um país assolado pela polarização e preocupado com a democracia seria mais forte ao impor responsabilidade a seus líderes. “Um compromisso ativo e contínuo para garantir que todos os funcionários públicos sigam o estado de direito é essencial para enfrentar esses desafios”, disse ela.

Mas outros se preocupam com as consequências de longo prazo para a presidência, até porque esta acusação está sendo apresentada por um promotor local e não pelo Departamento de Justiça, abrindo a porta para promotores de todo o país se encarregarem de perseguir um presidente.

Em 2008, eleitores de duas pequenas cidades em Vermont, um Estado tradicionalmente democrata, aprovaram resoluções acusando Bush e o então vice-presidente Dick Cheney de crimes contra a Constituição e pediram que advogados locais elaborassem pedidos de indiciamento. Não deu em nada, mas não é difícil de imaginar um procurador alinhado aos republicanos tentar acusar Biden por, digamos, não conseguir proteger a fronteira do país.

“Isso abre caminho, em tese, para milhares de procuradores estaduais e distritais para investigar e indiciar um presidente, driblando a proibição para investigar presidentes durante o exercício do cargo”, disse Stanley M. Brand, ex-assessor da Casa Branca, cuja firma representa alguns aliados de Trump no caso que investiga os documentos confidenciais apreendidos em Mar-a-Lago. “Em teoria, isso subjuga a presidência de uma maneira que não pensei que pudesse ser contemplada na Constituição.

Goldsmith disse que qualquer indiciamento poderia pôr o sistema judicial como todo em risco. “Especialmente se esse indiciamento for seguido por outro processo do conselho especial (que investiga o caso de Mar-a-Lago). No médio prazo, o que veremos será uma série de vinganças judiciais que farão mal à saúde política do país.”

Aliados de Trump acusam o caso Stormy Daniels de tendencioso desde antes do indiciamento e sem ver as provas apresentadas pela procuradoria. Qualquer coisa que Alvin Bragg tenha mostrado ao Grande Júri acabou se tornando “invisível”, porque era necessário defender o último presidente do Partido Republicano e seu próximo candidato à Casa Branca. Assim, eles preventivamente declararam a investigação de um democrata ilegítima.

O deputado Mark Green, um republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Segurança Interna comparou o caso de Trump a investigações em países emergentes. “Daniel Ortega prendeu a oposição e dizemos que isso é horrível”, disse ele na semana passada. “Pense nisso, presidente Biden.”

Prender ex-chefes de governo em acusações contaminadas pela polarização pode ser comum em autocracias, mas algumas das democracias mais avançadas do mundo não se furtaram em julgar seus líderes por crimes. O ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert passou mais de um ano na cadeia por fraude. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi já respondeu a 35 prtocessos na Justiça, mas só foi condenado por uma acusação de fraude fiscal e condenado a serviço comunitário. Casos similiares ocorreram na França, com Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e na Coreia do Sul, com Park Geun-hye.

Nos Estados Unidos, nunca aconteceu, apesar de casos como o Watergate e Irã-contras. No século 19, Ulisses S. Grant foi parado por correr demais com sua carruagem a cavalo nas ruas de Washington. Foi multado por US$ 20 e foi para casa.

Trump não será impedido de disputar a presidência nem se for condenado. Em 1920, Eugene Debs disputou a casa branca depois de ter sido preso por se opor à participação americana na 1ªGuerra. Mas ao contrário de Trump, não tinha chance de ganhar. Teve 3,4% dos votos.

Pelo menos alguns outros presidentes se preocuparam em ser indiciados após o cargo. Richard Nixon foi perdoado um mês depois de renunciar pelo seu sucessor, Gerald Ford, que o poupou de qualquer processo no escândalo Watergate. Bill Clinton fechou um acordo com os promotores de Whitewater em seu último dia de gestão, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento sobre o caso com Monica Lewinsky, desistiu da licença de advogado por cinco anos e pagou uma multa de US$ 25 mil em troca de não enfrentar acusações como civil.

Ao perdoar Nixon, Ford não estava tentando evitar um precedente para impedir futuros processos contra um presidente, avaliou o historiador Richard Norton Smith, que escreveu a biografia de Ford, “An Ordinary Man”, prevista para ser publicada no mês que vem. Em vez disso, ele estava tentando mover o país para além de Watergate enquanto enfrentava desafios como a inflação, os últimos vestígios da Guerra do Vietnã e o profundo cinismo público.

“Ele não estava menos perdoando Nixon e mais tentando esquecê-lo”, disse Smith. “Isto é, para conter a obsessão popular, política e midiática que, compreensivelmente, se formou em torno da ideia antes impensável de um presidente americano sendo preso. A existência desse fato o impediu de fazer seu trabalho ou o povo americano de seguir em frente para enfrentar os problemas deixados por Nixon”.

A decisão anterior de Ford, acrescentou, não deve significar que Trump receberá um passe livre da prisão. “Parece mais do que injusto torná-lo um bode expiatório para os erros dos presidentes subsequentes”, disse Smith. “Como ele mesmo alertou em 1980, se os eleitores alguma vez escolhessem um presidente arrogante ‘e quero dizer de uma maneira cruel: Deus ajude o país’.”

WASHINGTON - Pela primeira vez dos Estados Unidos, um ex-presidente responderá na Justiça por acusações criminais. Repito: um ex-presidente americano responderá por um crime, pela primeira vez na história.

Desde que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, muitas coisas inéditas ocorreram. Limites foram violados, eventos inimagináveis chocaram o mundo. Ocorreu tanto que é fácil perder de vista o quão surpreendente este fato em particular é.

Apesar do foco em detalhes de mau gosto, na nova teoria jurídica e no impacto político, a história maior da denúncia criminal é a de um país trilhando um caminho nunca antes percorrido. Há profundas consequências para a saúde da democracia mais antiga do mundo.

Por mais de dois séculos, os presidentes foram mantidos em um pedestal, mesmo os envolvidos em escândalos. Eram declarados imunes a processos durante o mandato e, efetivamente, permaneciam com esse status após deixarem a Casa Branca.

Da esquerda para a direita: Donald Trump, seu ex-advogado Michael Cohen e a atriz pornô Stormy Daniels: os pivôs da denúncia criminal contra o ex-presidente dos EUA  Foto: AP/Photo/Acervo

Isso chegou ao fim. Um novo precedente foi estabelecido. O país ficará despedaçado, como alguns temiam que acontecesse se Nixon fosse indiciado depois de Watergate? Será visto pelos americanos e no exterior como a ‘justiça do vencedor’, semelhante ao que ocorre em países em desenvolvimento, onde ex-líderes são presos por seus sucessores? Ou será um momento de ajustes de contas, um sinal de que mesmo alguém que já foi a pessoa mais poderosa do planeta não está acima da lei?

“Quer a acusação seja justificada ou não, ela cruza uma linha enorme na política americana e na história jurídica americana”, disse Jack Goldsmith, professor de Direito de Harvard e ex-funcionário do alto escalão do Departamento de Justiça do presidente George W. Bush.

Se isso não bastasse para abalar as estruturas da república americana, a primeiro pode não ser a última. Trump pode enfrentar uma segunda acusação na Geórgia e uma terceira de promotores federais. Potencialmente, pode haver até uma quarta acusação.

Existe o pesar de que a acusação inédita envolva algo tão impróprio quanto pagar suborno para encobrir uma diversão sexual. Dado que o réu esteve envolvido em fatos muito mais devastadores, como tentar derrubar uma eleição e inspirar um ataque ao Capitólio para impedir a transferência de poder, as alegações dos promotores de Manhattan parecem menos do que históricas.

Mas, se a questão for a responsabilização, o indiciamento desta quinta-feira pode redesenhar o cenário e tornar menos assustador para os promotores da Geórgia e de Washington seguirem o exemplo, acusando Trump de crimes mais graves se tiverem provas. Eles não terão mais que arcar com o ônus de justificar uma ação nunca antes feita. Deixe para o único presidente já acusado duas vezes no Congresso enfrentar tantos processos que os advogados precisam de uma tabela para acompanhar.

Enquanto a acusação de Trump leva o país a um rumo desconhecido, os autores da Constituição podem ter ficado surpresos apenas com o fato de ter demorado tanto. A política do Departamento de Justiça sustenta que os presidentes em exercício não podem ser indiciados, mas a Constituição deixa explícita a perspectiva de acusação após o mandato.

Um presidente destituído pela Câmara e condenado e removido do cargo pelo Senado “não obstante, será responsável e sujeito a indiciamento, processo, julgamento e punição, de acordo com a lei”, declara o Artigo I, Seção 3 da Constituição.

“Geralmente, consideramos que essa linguagem sugere que, aconteça o que acontecer com relação a um impeachment enquanto um presidente estiver no cargo, ele ainda pode ser responsabilizado civil ou criminalmente após deixar o cargo por sua má conduta”, disse Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte.

Em outras palavras, nenhum ex-presidente estava imune à responsabilidade criminal. “Os autores teriam ficado horrorizados com a possibilidade de um presidente estar acima da lei enquanto estava no cargo ou depois de deixá-lo”, disse Gerhardt.

De fato, ao votar para absolver Trump no segundo processo de impeachment - aquele que o acusou de incitar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio - o senador Mitch McConnell, líder republicano de Kentucky, disse que o fez porque o Trump não estava mais no cargo, mas ressalvou que ele está sujeito a processo criminal.

“Minha opinião é que, desde que o caso seja instaurado por um crime que não é incomum de se acusar, e a prova também seja tão forte quanto normalmente - ou seja, que alguém se proteja contra o problema de um julgamento seletivo - então é imperativo que responsabilizemos os políticos, independentemente do cargo que ocupam ou ocuparam”, disse Andrew Weissmann, assistente de Robert S. Mueller III, que investigou como conselheiro especial os laços da campanha de Trump com a Rússia.

Meena Bose, reitora executiva da Escola de Governo Peter S. Kalikow da Universidade Hofstra e diretora de um projeto de história presidencial, afirmou que um país assolado pela polarização e preocupado com a democracia seria mais forte ao impor responsabilidade a seus líderes. “Um compromisso ativo e contínuo para garantir que todos os funcionários públicos sigam o estado de direito é essencial para enfrentar esses desafios”, disse ela.

Mas outros se preocupam com as consequências de longo prazo para a presidência, até porque esta acusação está sendo apresentada por um promotor local e não pelo Departamento de Justiça, abrindo a porta para promotores de todo o país se encarregarem de perseguir um presidente.

Em 2008, eleitores de duas pequenas cidades em Vermont, um Estado tradicionalmente democrata, aprovaram resoluções acusando Bush e o então vice-presidente Dick Cheney de crimes contra a Constituição e pediram que advogados locais elaborassem pedidos de indiciamento. Não deu em nada, mas não é difícil de imaginar um procurador alinhado aos republicanos tentar acusar Biden por, digamos, não conseguir proteger a fronteira do país.

“Isso abre caminho, em tese, para milhares de procuradores estaduais e distritais para investigar e indiciar um presidente, driblando a proibição para investigar presidentes durante o exercício do cargo”, disse Stanley M. Brand, ex-assessor da Casa Branca, cuja firma representa alguns aliados de Trump no caso que investiga os documentos confidenciais apreendidos em Mar-a-Lago. “Em teoria, isso subjuga a presidência de uma maneira que não pensei que pudesse ser contemplada na Constituição.

Goldsmith disse que qualquer indiciamento poderia pôr o sistema judicial como todo em risco. “Especialmente se esse indiciamento for seguido por outro processo do conselho especial (que investiga o caso de Mar-a-Lago). No médio prazo, o que veremos será uma série de vinganças judiciais que farão mal à saúde política do país.”

Aliados de Trump acusam o caso Stormy Daniels de tendencioso desde antes do indiciamento e sem ver as provas apresentadas pela procuradoria. Qualquer coisa que Alvin Bragg tenha mostrado ao Grande Júri acabou se tornando “invisível”, porque era necessário defender o último presidente do Partido Republicano e seu próximo candidato à Casa Branca. Assim, eles preventivamente declararam a investigação de um democrata ilegítima.

O deputado Mark Green, um republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Segurança Interna comparou o caso de Trump a investigações em países emergentes. “Daniel Ortega prendeu a oposição e dizemos que isso é horrível”, disse ele na semana passada. “Pense nisso, presidente Biden.”

Prender ex-chefes de governo em acusações contaminadas pela polarização pode ser comum em autocracias, mas algumas das democracias mais avançadas do mundo não se furtaram em julgar seus líderes por crimes. O ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert passou mais de um ano na cadeia por fraude. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi já respondeu a 35 prtocessos na Justiça, mas só foi condenado por uma acusação de fraude fiscal e condenado a serviço comunitário. Casos similiares ocorreram na França, com Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e na Coreia do Sul, com Park Geun-hye.

Nos Estados Unidos, nunca aconteceu, apesar de casos como o Watergate e Irã-contras. No século 19, Ulisses S. Grant foi parado por correr demais com sua carruagem a cavalo nas ruas de Washington. Foi multado por US$ 20 e foi para casa.

Trump não será impedido de disputar a presidência nem se for condenado. Em 1920, Eugene Debs disputou a casa branca depois de ter sido preso por se opor à participação americana na 1ªGuerra. Mas ao contrário de Trump, não tinha chance de ganhar. Teve 3,4% dos votos.

Pelo menos alguns outros presidentes se preocuparam em ser indiciados após o cargo. Richard Nixon foi perdoado um mês depois de renunciar pelo seu sucessor, Gerald Ford, que o poupou de qualquer processo no escândalo Watergate. Bill Clinton fechou um acordo com os promotores de Whitewater em seu último dia de gestão, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento sobre o caso com Monica Lewinsky, desistiu da licença de advogado por cinco anos e pagou uma multa de US$ 25 mil em troca de não enfrentar acusações como civil.

Ao perdoar Nixon, Ford não estava tentando evitar um precedente para impedir futuros processos contra um presidente, avaliou o historiador Richard Norton Smith, que escreveu a biografia de Ford, “An Ordinary Man”, prevista para ser publicada no mês que vem. Em vez disso, ele estava tentando mover o país para além de Watergate enquanto enfrentava desafios como a inflação, os últimos vestígios da Guerra do Vietnã e o profundo cinismo público.

“Ele não estava menos perdoando Nixon e mais tentando esquecê-lo”, disse Smith. “Isto é, para conter a obsessão popular, política e midiática que, compreensivelmente, se formou em torno da ideia antes impensável de um presidente americano sendo preso. A existência desse fato o impediu de fazer seu trabalho ou o povo americano de seguir em frente para enfrentar os problemas deixados por Nixon”.

A decisão anterior de Ford, acrescentou, não deve significar que Trump receberá um passe livre da prisão. “Parece mais do que injusto torná-lo um bode expiatório para os erros dos presidentes subsequentes”, disse Smith. “Como ele mesmo alertou em 1980, se os eleitores alguma vez escolhessem um presidente arrogante ‘e quero dizer de uma maneira cruel: Deus ajude o país’.”

WASHINGTON - Pela primeira vez dos Estados Unidos, um ex-presidente responderá na Justiça por acusações criminais. Repito: um ex-presidente americano responderá por um crime, pela primeira vez na história.

Desde que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, muitas coisas inéditas ocorreram. Limites foram violados, eventos inimagináveis chocaram o mundo. Ocorreu tanto que é fácil perder de vista o quão surpreendente este fato em particular é.

Apesar do foco em detalhes de mau gosto, na nova teoria jurídica e no impacto político, a história maior da denúncia criminal é a de um país trilhando um caminho nunca antes percorrido. Há profundas consequências para a saúde da democracia mais antiga do mundo.

Por mais de dois séculos, os presidentes foram mantidos em um pedestal, mesmo os envolvidos em escândalos. Eram declarados imunes a processos durante o mandato e, efetivamente, permaneciam com esse status após deixarem a Casa Branca.

Da esquerda para a direita: Donald Trump, seu ex-advogado Michael Cohen e a atriz pornô Stormy Daniels: os pivôs da denúncia criminal contra o ex-presidente dos EUA  Foto: AP/Photo/Acervo

Isso chegou ao fim. Um novo precedente foi estabelecido. O país ficará despedaçado, como alguns temiam que acontecesse se Nixon fosse indiciado depois de Watergate? Será visto pelos americanos e no exterior como a ‘justiça do vencedor’, semelhante ao que ocorre em países em desenvolvimento, onde ex-líderes são presos por seus sucessores? Ou será um momento de ajustes de contas, um sinal de que mesmo alguém que já foi a pessoa mais poderosa do planeta não está acima da lei?

“Quer a acusação seja justificada ou não, ela cruza uma linha enorme na política americana e na história jurídica americana”, disse Jack Goldsmith, professor de Direito de Harvard e ex-funcionário do alto escalão do Departamento de Justiça do presidente George W. Bush.

Se isso não bastasse para abalar as estruturas da república americana, a primeiro pode não ser a última. Trump pode enfrentar uma segunda acusação na Geórgia e uma terceira de promotores federais. Potencialmente, pode haver até uma quarta acusação.

Existe o pesar de que a acusação inédita envolva algo tão impróprio quanto pagar suborno para encobrir uma diversão sexual. Dado que o réu esteve envolvido em fatos muito mais devastadores, como tentar derrubar uma eleição e inspirar um ataque ao Capitólio para impedir a transferência de poder, as alegações dos promotores de Manhattan parecem menos do que históricas.

Mas, se a questão for a responsabilização, o indiciamento desta quinta-feira pode redesenhar o cenário e tornar menos assustador para os promotores da Geórgia e de Washington seguirem o exemplo, acusando Trump de crimes mais graves se tiverem provas. Eles não terão mais que arcar com o ônus de justificar uma ação nunca antes feita. Deixe para o único presidente já acusado duas vezes no Congresso enfrentar tantos processos que os advogados precisam de uma tabela para acompanhar.

Enquanto a acusação de Trump leva o país a um rumo desconhecido, os autores da Constituição podem ter ficado surpresos apenas com o fato de ter demorado tanto. A política do Departamento de Justiça sustenta que os presidentes em exercício não podem ser indiciados, mas a Constituição deixa explícita a perspectiva de acusação após o mandato.

Um presidente destituído pela Câmara e condenado e removido do cargo pelo Senado “não obstante, será responsável e sujeito a indiciamento, processo, julgamento e punição, de acordo com a lei”, declara o Artigo I, Seção 3 da Constituição.

“Geralmente, consideramos que essa linguagem sugere que, aconteça o que acontecer com relação a um impeachment enquanto um presidente estiver no cargo, ele ainda pode ser responsabilizado civil ou criminalmente após deixar o cargo por sua má conduta”, disse Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte.

Em outras palavras, nenhum ex-presidente estava imune à responsabilidade criminal. “Os autores teriam ficado horrorizados com a possibilidade de um presidente estar acima da lei enquanto estava no cargo ou depois de deixá-lo”, disse Gerhardt.

De fato, ao votar para absolver Trump no segundo processo de impeachment - aquele que o acusou de incitar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio - o senador Mitch McConnell, líder republicano de Kentucky, disse que o fez porque o Trump não estava mais no cargo, mas ressalvou que ele está sujeito a processo criminal.

“Minha opinião é que, desde que o caso seja instaurado por um crime que não é incomum de se acusar, e a prova também seja tão forte quanto normalmente - ou seja, que alguém se proteja contra o problema de um julgamento seletivo - então é imperativo que responsabilizemos os políticos, independentemente do cargo que ocupam ou ocuparam”, disse Andrew Weissmann, assistente de Robert S. Mueller III, que investigou como conselheiro especial os laços da campanha de Trump com a Rússia.

Meena Bose, reitora executiva da Escola de Governo Peter S. Kalikow da Universidade Hofstra e diretora de um projeto de história presidencial, afirmou que um país assolado pela polarização e preocupado com a democracia seria mais forte ao impor responsabilidade a seus líderes. “Um compromisso ativo e contínuo para garantir que todos os funcionários públicos sigam o estado de direito é essencial para enfrentar esses desafios”, disse ela.

Mas outros se preocupam com as consequências de longo prazo para a presidência, até porque esta acusação está sendo apresentada por um promotor local e não pelo Departamento de Justiça, abrindo a porta para promotores de todo o país se encarregarem de perseguir um presidente.

Em 2008, eleitores de duas pequenas cidades em Vermont, um Estado tradicionalmente democrata, aprovaram resoluções acusando Bush e o então vice-presidente Dick Cheney de crimes contra a Constituição e pediram que advogados locais elaborassem pedidos de indiciamento. Não deu em nada, mas não é difícil de imaginar um procurador alinhado aos republicanos tentar acusar Biden por, digamos, não conseguir proteger a fronteira do país.

“Isso abre caminho, em tese, para milhares de procuradores estaduais e distritais para investigar e indiciar um presidente, driblando a proibição para investigar presidentes durante o exercício do cargo”, disse Stanley M. Brand, ex-assessor da Casa Branca, cuja firma representa alguns aliados de Trump no caso que investiga os documentos confidenciais apreendidos em Mar-a-Lago. “Em teoria, isso subjuga a presidência de uma maneira que não pensei que pudesse ser contemplada na Constituição.

Goldsmith disse que qualquer indiciamento poderia pôr o sistema judicial como todo em risco. “Especialmente se esse indiciamento for seguido por outro processo do conselho especial (que investiga o caso de Mar-a-Lago). No médio prazo, o que veremos será uma série de vinganças judiciais que farão mal à saúde política do país.”

Aliados de Trump acusam o caso Stormy Daniels de tendencioso desde antes do indiciamento e sem ver as provas apresentadas pela procuradoria. Qualquer coisa que Alvin Bragg tenha mostrado ao Grande Júri acabou se tornando “invisível”, porque era necessário defender o último presidente do Partido Republicano e seu próximo candidato à Casa Branca. Assim, eles preventivamente declararam a investigação de um democrata ilegítima.

O deputado Mark Green, um republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Segurança Interna comparou o caso de Trump a investigações em países emergentes. “Daniel Ortega prendeu a oposição e dizemos que isso é horrível”, disse ele na semana passada. “Pense nisso, presidente Biden.”

Prender ex-chefes de governo em acusações contaminadas pela polarização pode ser comum em autocracias, mas algumas das democracias mais avançadas do mundo não se furtaram em julgar seus líderes por crimes. O ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert passou mais de um ano na cadeia por fraude. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi já respondeu a 35 prtocessos na Justiça, mas só foi condenado por uma acusação de fraude fiscal e condenado a serviço comunitário. Casos similiares ocorreram na França, com Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e na Coreia do Sul, com Park Geun-hye.

Nos Estados Unidos, nunca aconteceu, apesar de casos como o Watergate e Irã-contras. No século 19, Ulisses S. Grant foi parado por correr demais com sua carruagem a cavalo nas ruas de Washington. Foi multado por US$ 20 e foi para casa.

Trump não será impedido de disputar a presidência nem se for condenado. Em 1920, Eugene Debs disputou a casa branca depois de ter sido preso por se opor à participação americana na 1ªGuerra. Mas ao contrário de Trump, não tinha chance de ganhar. Teve 3,4% dos votos.

Pelo menos alguns outros presidentes se preocuparam em ser indiciados após o cargo. Richard Nixon foi perdoado um mês depois de renunciar pelo seu sucessor, Gerald Ford, que o poupou de qualquer processo no escândalo Watergate. Bill Clinton fechou um acordo com os promotores de Whitewater em seu último dia de gestão, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento sobre o caso com Monica Lewinsky, desistiu da licença de advogado por cinco anos e pagou uma multa de US$ 25 mil em troca de não enfrentar acusações como civil.

Ao perdoar Nixon, Ford não estava tentando evitar um precedente para impedir futuros processos contra um presidente, avaliou o historiador Richard Norton Smith, que escreveu a biografia de Ford, “An Ordinary Man”, prevista para ser publicada no mês que vem. Em vez disso, ele estava tentando mover o país para além de Watergate enquanto enfrentava desafios como a inflação, os últimos vestígios da Guerra do Vietnã e o profundo cinismo público.

“Ele não estava menos perdoando Nixon e mais tentando esquecê-lo”, disse Smith. “Isto é, para conter a obsessão popular, política e midiática que, compreensivelmente, se formou em torno da ideia antes impensável de um presidente americano sendo preso. A existência desse fato o impediu de fazer seu trabalho ou o povo americano de seguir em frente para enfrentar os problemas deixados por Nixon”.

A decisão anterior de Ford, acrescentou, não deve significar que Trump receberá um passe livre da prisão. “Parece mais do que injusto torná-lo um bode expiatório para os erros dos presidentes subsequentes”, disse Smith. “Como ele mesmo alertou em 1980, se os eleitores alguma vez escolhessem um presidente arrogante ‘e quero dizer de uma maneira cruel: Deus ajude o país’.”

WASHINGTON - Pela primeira vez dos Estados Unidos, um ex-presidente responderá na Justiça por acusações criminais. Repito: um ex-presidente americano responderá por um crime, pela primeira vez na história.

Desde que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, muitas coisas inéditas ocorreram. Limites foram violados, eventos inimagináveis chocaram o mundo. Ocorreu tanto que é fácil perder de vista o quão surpreendente este fato em particular é.

Apesar do foco em detalhes de mau gosto, na nova teoria jurídica e no impacto político, a história maior da denúncia criminal é a de um país trilhando um caminho nunca antes percorrido. Há profundas consequências para a saúde da democracia mais antiga do mundo.

Por mais de dois séculos, os presidentes foram mantidos em um pedestal, mesmo os envolvidos em escândalos. Eram declarados imunes a processos durante o mandato e, efetivamente, permaneciam com esse status após deixarem a Casa Branca.

Da esquerda para a direita: Donald Trump, seu ex-advogado Michael Cohen e a atriz pornô Stormy Daniels: os pivôs da denúncia criminal contra o ex-presidente dos EUA  Foto: AP/Photo/Acervo

Isso chegou ao fim. Um novo precedente foi estabelecido. O país ficará despedaçado, como alguns temiam que acontecesse se Nixon fosse indiciado depois de Watergate? Será visto pelos americanos e no exterior como a ‘justiça do vencedor’, semelhante ao que ocorre em países em desenvolvimento, onde ex-líderes são presos por seus sucessores? Ou será um momento de ajustes de contas, um sinal de que mesmo alguém que já foi a pessoa mais poderosa do planeta não está acima da lei?

“Quer a acusação seja justificada ou não, ela cruza uma linha enorme na política americana e na história jurídica americana”, disse Jack Goldsmith, professor de Direito de Harvard e ex-funcionário do alto escalão do Departamento de Justiça do presidente George W. Bush.

Se isso não bastasse para abalar as estruturas da república americana, a primeiro pode não ser a última. Trump pode enfrentar uma segunda acusação na Geórgia e uma terceira de promotores federais. Potencialmente, pode haver até uma quarta acusação.

Existe o pesar de que a acusação inédita envolva algo tão impróprio quanto pagar suborno para encobrir uma diversão sexual. Dado que o réu esteve envolvido em fatos muito mais devastadores, como tentar derrubar uma eleição e inspirar um ataque ao Capitólio para impedir a transferência de poder, as alegações dos promotores de Manhattan parecem menos do que históricas.

Mas, se a questão for a responsabilização, o indiciamento desta quinta-feira pode redesenhar o cenário e tornar menos assustador para os promotores da Geórgia e de Washington seguirem o exemplo, acusando Trump de crimes mais graves se tiverem provas. Eles não terão mais que arcar com o ônus de justificar uma ação nunca antes feita. Deixe para o único presidente já acusado duas vezes no Congresso enfrentar tantos processos que os advogados precisam de uma tabela para acompanhar.

Enquanto a acusação de Trump leva o país a um rumo desconhecido, os autores da Constituição podem ter ficado surpresos apenas com o fato de ter demorado tanto. A política do Departamento de Justiça sustenta que os presidentes em exercício não podem ser indiciados, mas a Constituição deixa explícita a perspectiva de acusação após o mandato.

Um presidente destituído pela Câmara e condenado e removido do cargo pelo Senado “não obstante, será responsável e sujeito a indiciamento, processo, julgamento e punição, de acordo com a lei”, declara o Artigo I, Seção 3 da Constituição.

“Geralmente, consideramos que essa linguagem sugere que, aconteça o que acontecer com relação a um impeachment enquanto um presidente estiver no cargo, ele ainda pode ser responsabilizado civil ou criminalmente após deixar o cargo por sua má conduta”, disse Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte.

Em outras palavras, nenhum ex-presidente estava imune à responsabilidade criminal. “Os autores teriam ficado horrorizados com a possibilidade de um presidente estar acima da lei enquanto estava no cargo ou depois de deixá-lo”, disse Gerhardt.

De fato, ao votar para absolver Trump no segundo processo de impeachment - aquele que o acusou de incitar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio - o senador Mitch McConnell, líder republicano de Kentucky, disse que o fez porque o Trump não estava mais no cargo, mas ressalvou que ele está sujeito a processo criminal.

“Minha opinião é que, desde que o caso seja instaurado por um crime que não é incomum de se acusar, e a prova também seja tão forte quanto normalmente - ou seja, que alguém se proteja contra o problema de um julgamento seletivo - então é imperativo que responsabilizemos os políticos, independentemente do cargo que ocupam ou ocuparam”, disse Andrew Weissmann, assistente de Robert S. Mueller III, que investigou como conselheiro especial os laços da campanha de Trump com a Rússia.

Meena Bose, reitora executiva da Escola de Governo Peter S. Kalikow da Universidade Hofstra e diretora de um projeto de história presidencial, afirmou que um país assolado pela polarização e preocupado com a democracia seria mais forte ao impor responsabilidade a seus líderes. “Um compromisso ativo e contínuo para garantir que todos os funcionários públicos sigam o estado de direito é essencial para enfrentar esses desafios”, disse ela.

Mas outros se preocupam com as consequências de longo prazo para a presidência, até porque esta acusação está sendo apresentada por um promotor local e não pelo Departamento de Justiça, abrindo a porta para promotores de todo o país se encarregarem de perseguir um presidente.

Em 2008, eleitores de duas pequenas cidades em Vermont, um Estado tradicionalmente democrata, aprovaram resoluções acusando Bush e o então vice-presidente Dick Cheney de crimes contra a Constituição e pediram que advogados locais elaborassem pedidos de indiciamento. Não deu em nada, mas não é difícil de imaginar um procurador alinhado aos republicanos tentar acusar Biden por, digamos, não conseguir proteger a fronteira do país.

“Isso abre caminho, em tese, para milhares de procuradores estaduais e distritais para investigar e indiciar um presidente, driblando a proibição para investigar presidentes durante o exercício do cargo”, disse Stanley M. Brand, ex-assessor da Casa Branca, cuja firma representa alguns aliados de Trump no caso que investiga os documentos confidenciais apreendidos em Mar-a-Lago. “Em teoria, isso subjuga a presidência de uma maneira que não pensei que pudesse ser contemplada na Constituição.

Goldsmith disse que qualquer indiciamento poderia pôr o sistema judicial como todo em risco. “Especialmente se esse indiciamento for seguido por outro processo do conselho especial (que investiga o caso de Mar-a-Lago). No médio prazo, o que veremos será uma série de vinganças judiciais que farão mal à saúde política do país.”

Aliados de Trump acusam o caso Stormy Daniels de tendencioso desde antes do indiciamento e sem ver as provas apresentadas pela procuradoria. Qualquer coisa que Alvin Bragg tenha mostrado ao Grande Júri acabou se tornando “invisível”, porque era necessário defender o último presidente do Partido Republicano e seu próximo candidato à Casa Branca. Assim, eles preventivamente declararam a investigação de um democrata ilegítima.

O deputado Mark Green, um republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Segurança Interna comparou o caso de Trump a investigações em países emergentes. “Daniel Ortega prendeu a oposição e dizemos que isso é horrível”, disse ele na semana passada. “Pense nisso, presidente Biden.”

Prender ex-chefes de governo em acusações contaminadas pela polarização pode ser comum em autocracias, mas algumas das democracias mais avançadas do mundo não se furtaram em julgar seus líderes por crimes. O ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert passou mais de um ano na cadeia por fraude. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi já respondeu a 35 prtocessos na Justiça, mas só foi condenado por uma acusação de fraude fiscal e condenado a serviço comunitário. Casos similiares ocorreram na França, com Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e na Coreia do Sul, com Park Geun-hye.

Nos Estados Unidos, nunca aconteceu, apesar de casos como o Watergate e Irã-contras. No século 19, Ulisses S. Grant foi parado por correr demais com sua carruagem a cavalo nas ruas de Washington. Foi multado por US$ 20 e foi para casa.

Trump não será impedido de disputar a presidência nem se for condenado. Em 1920, Eugene Debs disputou a casa branca depois de ter sido preso por se opor à participação americana na 1ªGuerra. Mas ao contrário de Trump, não tinha chance de ganhar. Teve 3,4% dos votos.

Pelo menos alguns outros presidentes se preocuparam em ser indiciados após o cargo. Richard Nixon foi perdoado um mês depois de renunciar pelo seu sucessor, Gerald Ford, que o poupou de qualquer processo no escândalo Watergate. Bill Clinton fechou um acordo com os promotores de Whitewater em seu último dia de gestão, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento sobre o caso com Monica Lewinsky, desistiu da licença de advogado por cinco anos e pagou uma multa de US$ 25 mil em troca de não enfrentar acusações como civil.

Ao perdoar Nixon, Ford não estava tentando evitar um precedente para impedir futuros processos contra um presidente, avaliou o historiador Richard Norton Smith, que escreveu a biografia de Ford, “An Ordinary Man”, prevista para ser publicada no mês que vem. Em vez disso, ele estava tentando mover o país para além de Watergate enquanto enfrentava desafios como a inflação, os últimos vestígios da Guerra do Vietnã e o profundo cinismo público.

“Ele não estava menos perdoando Nixon e mais tentando esquecê-lo”, disse Smith. “Isto é, para conter a obsessão popular, política e midiática que, compreensivelmente, se formou em torno da ideia antes impensável de um presidente americano sendo preso. A existência desse fato o impediu de fazer seu trabalho ou o povo americano de seguir em frente para enfrentar os problemas deixados por Nixon”.

A decisão anterior de Ford, acrescentou, não deve significar que Trump receberá um passe livre da prisão. “Parece mais do que injusto torná-lo um bode expiatório para os erros dos presidentes subsequentes”, disse Smith. “Como ele mesmo alertou em 1980, se os eleitores alguma vez escolhessem um presidente arrogante ‘e quero dizer de uma maneira cruel: Deus ajude o país’.”

WASHINGTON - Pela primeira vez dos Estados Unidos, um ex-presidente responderá na Justiça por acusações criminais. Repito: um ex-presidente americano responderá por um crime, pela primeira vez na história.

Desde que Donald Trump foi eleito presidente em 2016, muitas coisas inéditas ocorreram. Limites foram violados, eventos inimagináveis chocaram o mundo. Ocorreu tanto que é fácil perder de vista o quão surpreendente este fato em particular é.

Apesar do foco em detalhes de mau gosto, na nova teoria jurídica e no impacto político, a história maior da denúncia criminal é a de um país trilhando um caminho nunca antes percorrido. Há profundas consequências para a saúde da democracia mais antiga do mundo.

Por mais de dois séculos, os presidentes foram mantidos em um pedestal, mesmo os envolvidos em escândalos. Eram declarados imunes a processos durante o mandato e, efetivamente, permaneciam com esse status após deixarem a Casa Branca.

Da esquerda para a direita: Donald Trump, seu ex-advogado Michael Cohen e a atriz pornô Stormy Daniels: os pivôs da denúncia criminal contra o ex-presidente dos EUA  Foto: AP/Photo/Acervo

Isso chegou ao fim. Um novo precedente foi estabelecido. O país ficará despedaçado, como alguns temiam que acontecesse se Nixon fosse indiciado depois de Watergate? Será visto pelos americanos e no exterior como a ‘justiça do vencedor’, semelhante ao que ocorre em países em desenvolvimento, onde ex-líderes são presos por seus sucessores? Ou será um momento de ajustes de contas, um sinal de que mesmo alguém que já foi a pessoa mais poderosa do planeta não está acima da lei?

“Quer a acusação seja justificada ou não, ela cruza uma linha enorme na política americana e na história jurídica americana”, disse Jack Goldsmith, professor de Direito de Harvard e ex-funcionário do alto escalão do Departamento de Justiça do presidente George W. Bush.

Se isso não bastasse para abalar as estruturas da república americana, a primeiro pode não ser a última. Trump pode enfrentar uma segunda acusação na Geórgia e uma terceira de promotores federais. Potencialmente, pode haver até uma quarta acusação.

Existe o pesar de que a acusação inédita envolva algo tão impróprio quanto pagar suborno para encobrir uma diversão sexual. Dado que o réu esteve envolvido em fatos muito mais devastadores, como tentar derrubar uma eleição e inspirar um ataque ao Capitólio para impedir a transferência de poder, as alegações dos promotores de Manhattan parecem menos do que históricas.

Mas, se a questão for a responsabilização, o indiciamento desta quinta-feira pode redesenhar o cenário e tornar menos assustador para os promotores da Geórgia e de Washington seguirem o exemplo, acusando Trump de crimes mais graves se tiverem provas. Eles não terão mais que arcar com o ônus de justificar uma ação nunca antes feita. Deixe para o único presidente já acusado duas vezes no Congresso enfrentar tantos processos que os advogados precisam de uma tabela para acompanhar.

Enquanto a acusação de Trump leva o país a um rumo desconhecido, os autores da Constituição podem ter ficado surpresos apenas com o fato de ter demorado tanto. A política do Departamento de Justiça sustenta que os presidentes em exercício não podem ser indiciados, mas a Constituição deixa explícita a perspectiva de acusação após o mandato.

Um presidente destituído pela Câmara e condenado e removido do cargo pelo Senado “não obstante, será responsável e sujeito a indiciamento, processo, julgamento e punição, de acordo com a lei”, declara o Artigo I, Seção 3 da Constituição.

“Geralmente, consideramos que essa linguagem sugere que, aconteça o que acontecer com relação a um impeachment enquanto um presidente estiver no cargo, ele ainda pode ser responsabilizado civil ou criminalmente após deixar o cargo por sua má conduta”, disse Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte.

Em outras palavras, nenhum ex-presidente estava imune à responsabilidade criminal. “Os autores teriam ficado horrorizados com a possibilidade de um presidente estar acima da lei enquanto estava no cargo ou depois de deixá-lo”, disse Gerhardt.

De fato, ao votar para absolver Trump no segundo processo de impeachment - aquele que o acusou de incitar o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio - o senador Mitch McConnell, líder republicano de Kentucky, disse que o fez porque o Trump não estava mais no cargo, mas ressalvou que ele está sujeito a processo criminal.

“Minha opinião é que, desde que o caso seja instaurado por um crime que não é incomum de se acusar, e a prova também seja tão forte quanto normalmente - ou seja, que alguém se proteja contra o problema de um julgamento seletivo - então é imperativo que responsabilizemos os políticos, independentemente do cargo que ocupam ou ocuparam”, disse Andrew Weissmann, assistente de Robert S. Mueller III, que investigou como conselheiro especial os laços da campanha de Trump com a Rússia.

Meena Bose, reitora executiva da Escola de Governo Peter S. Kalikow da Universidade Hofstra e diretora de um projeto de história presidencial, afirmou que um país assolado pela polarização e preocupado com a democracia seria mais forte ao impor responsabilidade a seus líderes. “Um compromisso ativo e contínuo para garantir que todos os funcionários públicos sigam o estado de direito é essencial para enfrentar esses desafios”, disse ela.

Mas outros se preocupam com as consequências de longo prazo para a presidência, até porque esta acusação está sendo apresentada por um promotor local e não pelo Departamento de Justiça, abrindo a porta para promotores de todo o país se encarregarem de perseguir um presidente.

Em 2008, eleitores de duas pequenas cidades em Vermont, um Estado tradicionalmente democrata, aprovaram resoluções acusando Bush e o então vice-presidente Dick Cheney de crimes contra a Constituição e pediram que advogados locais elaborassem pedidos de indiciamento. Não deu em nada, mas não é difícil de imaginar um procurador alinhado aos republicanos tentar acusar Biden por, digamos, não conseguir proteger a fronteira do país.

“Isso abre caminho, em tese, para milhares de procuradores estaduais e distritais para investigar e indiciar um presidente, driblando a proibição para investigar presidentes durante o exercício do cargo”, disse Stanley M. Brand, ex-assessor da Casa Branca, cuja firma representa alguns aliados de Trump no caso que investiga os documentos confidenciais apreendidos em Mar-a-Lago. “Em teoria, isso subjuga a presidência de uma maneira que não pensei que pudesse ser contemplada na Constituição.

Goldsmith disse que qualquer indiciamento poderia pôr o sistema judicial como todo em risco. “Especialmente se esse indiciamento for seguido por outro processo do conselho especial (que investiga o caso de Mar-a-Lago). No médio prazo, o que veremos será uma série de vinganças judiciais que farão mal à saúde política do país.”

Aliados de Trump acusam o caso Stormy Daniels de tendencioso desde antes do indiciamento e sem ver as provas apresentadas pela procuradoria. Qualquer coisa que Alvin Bragg tenha mostrado ao Grande Júri acabou se tornando “invisível”, porque era necessário defender o último presidente do Partido Republicano e seu próximo candidato à Casa Branca. Assim, eles preventivamente declararam a investigação de um democrata ilegítima.

O deputado Mark Green, um republicano do Tennessee e presidente do Comitê de Segurança Interna comparou o caso de Trump a investigações em países emergentes. “Daniel Ortega prendeu a oposição e dizemos que isso é horrível”, disse ele na semana passada. “Pense nisso, presidente Biden.”

Prender ex-chefes de governo em acusações contaminadas pela polarização pode ser comum em autocracias, mas algumas das democracias mais avançadas do mundo não se furtaram em julgar seus líderes por crimes. O ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert passou mais de um ano na cadeia por fraude. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi já respondeu a 35 prtocessos na Justiça, mas só foi condenado por uma acusação de fraude fiscal e condenado a serviço comunitário. Casos similiares ocorreram na França, com Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, e na Coreia do Sul, com Park Geun-hye.

Nos Estados Unidos, nunca aconteceu, apesar de casos como o Watergate e Irã-contras. No século 19, Ulisses S. Grant foi parado por correr demais com sua carruagem a cavalo nas ruas de Washington. Foi multado por US$ 20 e foi para casa.

Trump não será impedido de disputar a presidência nem se for condenado. Em 1920, Eugene Debs disputou a casa branca depois de ter sido preso por se opor à participação americana na 1ªGuerra. Mas ao contrário de Trump, não tinha chance de ganhar. Teve 3,4% dos votos.

Pelo menos alguns outros presidentes se preocuparam em ser indiciados após o cargo. Richard Nixon foi perdoado um mês depois de renunciar pelo seu sucessor, Gerald Ford, que o poupou de qualquer processo no escândalo Watergate. Bill Clinton fechou um acordo com os promotores de Whitewater em seu último dia de gestão, no qual admitiu ter prestado falso testemunho sob juramento sobre o caso com Monica Lewinsky, desistiu da licença de advogado por cinco anos e pagou uma multa de US$ 25 mil em troca de não enfrentar acusações como civil.

Ao perdoar Nixon, Ford não estava tentando evitar um precedente para impedir futuros processos contra um presidente, avaliou o historiador Richard Norton Smith, que escreveu a biografia de Ford, “An Ordinary Man”, prevista para ser publicada no mês que vem. Em vez disso, ele estava tentando mover o país para além de Watergate enquanto enfrentava desafios como a inflação, os últimos vestígios da Guerra do Vietnã e o profundo cinismo público.

“Ele não estava menos perdoando Nixon e mais tentando esquecê-lo”, disse Smith. “Isto é, para conter a obsessão popular, política e midiática que, compreensivelmente, se formou em torno da ideia antes impensável de um presidente americano sendo preso. A existência desse fato o impediu de fazer seu trabalho ou o povo americano de seguir em frente para enfrentar os problemas deixados por Nixon”.

A decisão anterior de Ford, acrescentou, não deve significar que Trump receberá um passe livre da prisão. “Parece mais do que injusto torná-lo um bode expiatório para os erros dos presidentes subsequentes”, disse Smith. “Como ele mesmo alertou em 1980, se os eleitores alguma vez escolhessem um presidente arrogante ‘e quero dizer de uma maneira cruel: Deus ajude o país’.”

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