THE NEW YORK TIMES — Ali Elshanti chegou na manhã da quarta-feira à cidade de Derna, devastada pelas inundações que atingiram a Líbia, integrando um comboio de ajuda que organizou com amigos e tinha partido da cidade de Misrata, no oeste do país, 15 horas antes. O que Elshanti viu quando chegou parecia uma cena de filme hollywoodiano de desastre, afirmou ele nesta quinta-feira.
Os esforços para responder à devastação que resultou do colapso de duas barragens no leste da Líbia e das inundações que se seguiram, matando milhares de pessoas, são desorganizados e sem coordenação, afirmou Elshanti, um narrador esportivo de 29 anos.
“A situação ainda é muito ruim — a resposta à crise é mal administrada”, disse Elshanti em Derna, onde ele ajudava a equipe do Crescente Vermelho na Líbia a encontrar sobreviventes — e corpos. “Infelizmente, na Líbia nós somos acometidos por uma ausência de gestão de crise. Não há nada. A operação em campo não é organizada.”
Ao longo do fim de semana, chuvas da Tempestade Daniel fizeram romper duas barragens próximas a Derna, na costa nordeste da Líbia, destruindo grande parte da cidade e arrastando bairros inteiros para o mar. As inundações danificaram inúmeras estradas, ruas e pontes, impedindo o acesso às áreas mais atingidas; e os esforços de resgate também são complicados pelo fato da Líbia ser controlada atualmente por governos rivais.
Elshanti e outros voluntários têm sido cruciais para a resposta oficial à crise.
As autoridades líbias anunciaram um gabinete de operações conjuntas para coordenar a resposta na noite da quarta-feira — três dias após as barragens romperem espalhando morte e destruição pelas ruas de Derna e outras cidades costeiras. O ministro do Interior do governo da Líbia oriental, Essam Abu Zeriba, revelou o plano afirmando que o gabinete de operações conjuntas trabalhará em cooperação com as forças de segurança.
Leia mais
O momento do anúncio indica como a resposta ao desastre foi limitada nestes primeiros dias. “As necessidades são tão imensas — a situação é muito caótica”, afirmou Salaheddin Aboulgasem, porta-voz do a ONG Islamic Relief, de ajuda humanitária, que coordena voluntários em campo.
“Há muito a fazer e muito pouco tempo para agir”, afirmou Aboulgasem, que vive em Birmingham, Inglaterra, Ele acrescentou que os primeiros caminhões da organização chegaram em Derna na quarta-feira com cobertores, alimentos, kits de higiene e colchões. Mas as telecomunicações ainda estão prejudicadas, afirmou ele, e há poucas janelas para receber a ajuda. “Nós temos de compreender e ter em conta que esta região não tem muita infraestrutura nem sociedade civil funcional”, afirmou ele.
Um chamado por responsabilização ocorreu na noite da quarta-feira, quando uma graduada autoridade líbia exigiu uma investigação a respeito do colapso das duas barragens e das inundações que se seguiram.
“Nós pedimos para o procurador-geral abrir uma investigação ampla a respeito do desastre”, afirmou Mohamed al-Menfi, chefe do Conselho Presidencial da Líbia ocidental num post em rede social. Ele acrescentou que “todos que cometeram algum erro ou negligência, seja ao se abster ou adotando ações que resultaram no colapso das barragens da cidade de Derna” serão responsabilizados.
O chamado do conselho de Menfi ocorreu no mesmo momento em que o Exército Nacional Líbio, a principal autoridade no leste do país dividido, interditou o acesso a Derna permitindo a entrada apenas de equipes de socorro e comboios de ajuda humanitária. A Líbia está dividida entre um governo reconhecido internacionalmente sediado em Trípoli, a capital, no oeste, e a região separada administrativamente no leste, que inclui Derna.
Comboios de ajuda carregados de alimentos, medicamentos, roupas e cobertores organizados por entidades de caridade, cidadãos, empresários e clubes continuam a rumar para Derna e outras áreas do nordeste líbio em que pessoas deslocadas buscam abrigo.
Veículos militares estão estacionados nas ruas de todas as regiões de Derna. No dia anterior, o Exército tinha aconselhado os moradores a deixar a cidade, mas agentes de ajuda humanitária afirmaram que muitos cidadãos preferiram ficar e procurar parentes e amigos desaparecidos.
Leia também
As investigações deverão “incluir qualquer um que obstruir esforços de ajuda internacional em sua chegada às cidades atingidas”, afirmou Menfi.
Não ficou claro como uma investigação seria conduzida nem quanta responsabilização os líbios podem esperar ver num país em que as infraestruturas foram abandonadas enquanto autoridades rivais colocam foco em disputar poder há mais de uma década.
Numa conferência de imprensa tarde da noite, Abu Zeriba, o ministro do Interior do leste, anunciou que o número documentado de mortos ultrapassava 2,7 mil e que mais de 2,5 mil pessoas estavam desaparecidas.
Anteriormente, autoridades líbias tinham afirmado que o número de mortos pelas inundações poderia ultrapassar 5 mil e que mais de 10 mil pessoas estavam desaparecidas.
A discrepância entre projeções oficiais de números de mortos sublinha o caos e desorganização da resposta a uma catástrofe natural em um país dividido por governos rivais. Os líbios sofrem há mais de uma década com disputas de poder, disfunções e conflitos ocorridos na esteira da Primavera Árabe, revolução que na Líbia depôs o ditador Muamar Kadafi, que controlou o país por mais de 42 anos.
Na noite da quarta-feira, o prefeito de Derna, Abdulmenam al-Ghaithi, disse à emissora de TV Al Arabiya que o número de mortos pelas inundações pode chegar a 20 mil, com base no número de distritos atingidos.
A Líbia estava mal preparada para a Tempestade Daniel, que demonstrou seu poder destrutivo semana passada na Grécia, na Turquia e na Bulgária matando mais de uma dúzia de pessoas antes de atravessar o Mar Mediterrâneo, castigando sua costa e destruindo infraestruturas com manutenção ruim.
Uma autoridade da ONU também afirmou na quinta-feira que a escala da crise foi em parte resultado da ausência de um serviço meteorológico funcional na Líbia.
“Neste momento nós temos uma crise em andamento na Líbia possivelmente com mais de 10 mil mortes”, afirmou o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial, Petteri Taalas, durante uma conferência de imprensa em Genebra. “E uma razão para isso é que o serviço meteorológico na Líbia não tem funcionado em razão da caótica situação de governo no país.”
Ainda que tenha emitido alertas precoces para chuvas pesadas e inundações, o serviço meteorológico líbio não levou em conta o risco apresentado pelas “barragens envelhecidas”, afirmou o grupo em um comunicado posterior, na quinta-feira, acrescentando que houve “grandes lapsos em sistemas de observação”, assim como em sua tecnologia de informação.
“Os eventos de inundação se abateram e nenhuma retirada de cidadãos ocorreu porque não havia nenhum serviço apropriado de alerta precoce em funcionamento”, afirmou Taalas. Se o serviço estivesse operando normalmente, alertas adequados teriam sido emitidos, e a equipe de gestão de crise teria sido capaz de retirar mais gente, acrescentou ele. “Nós poderíamos ter evitado a maioria das mortes”, afirmou ele.
O governo da Líbia tinha emitido alguns alertas precoces antes da tempestade, mas cidadãos afirmaram que em certos lugares as recomendações foram contraditórias.
O governo líbio anunciou um estado de emergência nas regiões orientais alertando sobre possíveis inundações e declarou folga de emergência no domingo e na segunda-feira em todas as instituições públicas, escolas e empresas privadas do país.
Mas moradores afirmaram que houve orientações contraditórias. Alguns afirmaram que houve chamados para retirada, que ninguém atendeu. Outros disseram que foram orientados a permanecer dentro de suas casas.
Mohammed Jadallah, morador de Derna que fugiu da cidade com a família no domingo, afirmou que ouviu de amigos que houve ordens de retirada em alguns bairros da costa antes da tempestade.
Na noite do domingo, afirmou Jadallah, chuvas e ventos tinham se intensificado na cidade. Ele disse que despertou seus três filhos para fugir de casa no carro da família. “Assim que pusemos o pé para fora a chuva ficou mais pesada, e alguns vizinhos hesitaram em partir. Eu berrei o mais alto que pude, insistindo para eles irem embora, dizendo que se a rua enchesse eles não conseguiriam partir.”
Jadallah tentou sair dirigindo, mas seu carro mal conseguia se mover pelas ruas alagadas, até que unidades do Exército o encontraram e o aconselharam a deixar a cidade. “Eu temi por minha família e, ao mesmo tempo, fiquei preocupado com meus parentes e vizinhos”, afirmou ele. “Não houve tempo para garantir que todos ficassem bem.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL