Cartazes com a foto do primeiro-ministro Narendra Modi lembram a todo momento, por toda perte, que a Índia preside o G-20 este ano. A partir de sábado, 9, Nova Délhi será palco do encontro de líderes globais e quer se mostrar como a nova potência no momento em que terá as atenções voltadas para si. Com isso, o governo Modi, prestes a completar dez anos no poder, projeta a Índia no cenário internacional ao mesmo tempo em que reforça o nacionalismo dentro de casa a um ano da eleição.
Uma entrevista recente do primeiro-ministro Narendra Modi para imprensa local é um bom indicativo da ambição. “Nós temos democracia, demografia e diversidade. Agora, estamos adicionando o quarto D, de desenvolvimento”, disse à Press Trust of India enfatizando que “os indianos dessa era tem uma grande chance de fundamentar o crescimento que será lembrado pelo próximo milênio”.
O país que concentra sozinho 17% da população global tem escalado o ranking de maiores economias, deixou para trás seu colonizador, o Reino Unido, e disputa o protagonismo com a China na Ásia. Segundo as projeções do Goldman Sachs, Nova Délhi só estará atrás de Pequim daqui a 50 anos, quando as potências asiáticas passarão os Estados Unidos para o terceiro lugar. Com essas credenciais, a Índia quer se mostrar como um modelo de desenvolvimento, exemplo para o mundo.
De fato, como destacou Narendra Modi, a ascensão econômica dos últimos anos é inegável. O Banco Mundial observa que o crescimento da Índia — um dos mais rápidos do mundo — resiste a um cenário marcado pela incerteza e, no primeiro trimestre do ano, o PIB teve um salto de 7,8%. O problema é que, quando o assunto é economia, o Produto Interno Bruto não conta a história completa, especialmente no país que já é o mais populoso do mundo com 1,4 bilhão de habitantes.
Puxada pelo preço dos alimentos, inflação subiu acima do esperado em julho para 7,44% e chegou ao patamar mais alto em 15 meses. Os custos para os consumidores corroem a renda de uma população que já sofre com o desemprego, em especial os mais jovens que veem o milagre econômico se transformar em desilusão. A colocação no mercado de trabalho é tão difícil que, em alguns casos, a concorrência chega a 1.800 candidatos por uma única vaga.
“A Índia deveria estar muito preocupada com o desemprego e a falta de oportunidades”, alerta Nikita Sud professora de políticas do desenvolvimento da Universidade de Oxford, autora dos livros “Liberalization, Hindu Nationalism, and the State” e “The Making of Land and the Making of India” em entrevista ao Estadão.
“Somo uma das cinco maiores economias e podemos chegar entre as três, mas isso diz respeito ao PIB e a situação dos super-ricos, não ao indiano médio. Em termos de renda per capta estamos no mesmo nível do Timor Leste, de países de renda média como Bangladesh que em alguns aspectos se sai melhor que a Índia porque essa renda simplesmente não está sendo distribuída”, continuou.
A comparação com Bangladesh é significativa porque é feita também pelos investidores internacionais, que buscam oportunidades entre os dois países com trajetórias de crescimento parecidas. Enquanto o desemprego atingiu 23% dos jovens indianos no ano passado, o índice não chegou a 13% no país vizinho
“Esse aumento do PIB não beneficia as pessoas que continuam com poder de compra muito mediano e certamente não beneficia os mais jovens que tem muita dificuldade para encontrar emprego”, concluiu. Nikita Sud.
Nesse contexto, a pesquisadora avalia que o governo Narendra Modi apela ao populismo e ao nacionalismo para manter o apoio mesmo nessa parcela da população que segue à margem do crescimento econômico no momento em que as eleições se aproximam.
“É uma forma muito centralizadora de governar. Modi gosta de mostrar que, de alguma foram trouxe prestígio internacional para Índia. Isso é importante para projetar a sua própria imagem como líder mas sobretudo para o público interno porque o país terá eleições em 2024 e Narendra Modi vai buscar o terceiro mandato”, explicou.
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Conflitos étnicos pressionam o governo
Nas palavras o primeiro-ministro, o lema da cúpula do G-20 (“o mundo é uma família”) derivado da expressão sânscrita Vasudhaiva Kutumbakam é mais do que um slogan, é uma representação da filosofia indiana. “A nossa abordagem doméstica para melhorar as condições dos negligenciados está nos levando ao nível global”, disse ele.
Entretanto, o próprio Narendra Modi, um nacionalista hindu que está no poder desde 2014 é acusado de incentivar a perseguição contra minorias mulçumanas e cristãs no país.
“A Índia tem retrocessos democráticos desde 2014″, avalia Nikita Sud. “Um ministro do governo tem discurso televisionado com uma expressão hindu maro shaale mulleko que seria equivalente a ‘atire nos bastardos’ em referência principalmente aos mulçumanos. O governo de certa forma promove o discurso de ódio e, na ponta, os seus seguidores literalmente matam mulçumanos e atacam cristãos. [...] Isso vai totalmente contra a ideia de democracia que está prevista na constituição”, criticou Nikita Sud.
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A vice-diretora da Human Rights Watch na Ásia, Meenakshi Ganguly, concorda que os direitos civis e políticos têm se deteriorado na Índia sob o governo de Narendra Modi. " O partido do governo Bharatiya Janata (BJP) promove uma ideologia majoritária hindu e adotou políticas discriminatórias. Os líderes muitas vezes difamam as minorias religiosas, levando a ataques violentos particularmente contra muçulmanos e cristãos”, afirmou.
Ganguly — que estava na Índia quando falou ao Estadão — denunciou ainda que as autoridades são mais rápidas em punir os protestos das minorias do que os ataques em si. Pela Human Rights Watch, ela monitora o conflito deflagrado há meses no Estado de Manipur, ao norte da Índia, uma região sensível, historicamente marcada por disputas, que faz fronteira com Mianmar, China e Bangladesh.
O confronto mais recente opõe os Meitei — uma etnia hindu que vive nos centros urbanos — e os kuki — um tribo predominantemente cristã que vive na região de colinas. Pelo menos 180 pessoas morreram e 60 mil foram obrigadas a fugir de suas vilas onde casas e comércios foram incendiados.
Lá, além da conotação religiosa há também uma disputa por território. A rivalidade escalou quando o governo prometeu conceder um status tribal com a garantia de ações afirmativas para os Meitei. Os Kuki se sentiram ameaçados com a proposta e acusam o governador Biren Singh (que é um Meitei) de apoiar os hindus contra os indígenas.
“O governo do partido Bharatiya Janata, abdicou da responsabilidade pelas suas políticas divisivas que instigaram a maioria Meitei contra os grupos tribais minoritários Kuki. No lugar de harmonizar as comunidades e abrir espaço para o diálogo, o governador fez acusações irresponsáveis contra a minoria Kuki, descrevendo-os como traficantes de drogas e infiltrados” apontou Meenakshi Ganguly.
A disputa étnica ficou ainda mais violenta quando os grupos rivais saquearam delegacias e roubaram armas de fogo. Mesmo assim, a derrubada da internet no Estado manteve o conflito abafado por meses.
Até que a violência de gênero, uma constante no confronto, chamou atenção nacional e internacional para o que estava acontecendo em Manipur a semanas do G-20.
Um vídeo que conseguiu furar o bloqueio mostra duas mulheres cercadas por um grupo de homens violentos, alguns armados com pedaços de madeira. Elas foram obrigadas a andar nuas até um descampado enquanto choravam e tentavam se cobrir com as mãos. O irmão de uma delas tentou ajudar e foi assassinado. Por isso, o caso foi tratado como sequestro, estupro coletivo e homicídio.
Esta semana, a ONU alertou para a grave crise humanitária em Manipur e se disse alarmada com a resposta “aparentemente lenta e inadequada” do governo indiano ao conflito.
“A violência parece ter sido incitada por discurso de ódio que se espalham online e offline para justificar as atrocidades cometidas contra a minoria étnica Kuki, especialmente mulheres”, denunciaram os especialistas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Dentro da Índia, o parlamentar Jairam Ramesh reclamou que o conflito foi esquecido pelo governo enquanto o primeiro-ministro e os seus “batedores de tambor estão obcecados com o G20″.
Eleição à vista
A repercussão pressionou o governo Narendra Modi, que chegou a enfrentar um voto de desconfiança no Parlamento pela resposta do governo à crise em Manipur. No longo discurso em que se defendeu das críticas, ele aproveitou para acusar a oposição de “difamar a Índia” e, como esperado, derrotou a moção com facilidade.
Líder mais popular na Índia, Narendra Modi segue firme em busca do terceiro mandato consecutivo como primeiro-ministro. Ele conta com a própria popularidade, uma imprensa majoritariamente favorável ao governo e simpatia das elites indianas.
“Por meio das instituições, da imprensa e do dinheiro, os governistas se beneficiam de um campo eleitoral distorcido. Então, mesmo com as promessas geração de emprego que não foram cumpridas e a inflação, as pessoas não veem muito alternativa porque a oposição é muito fraca”, avalia Nikita Sud.
Do outro lado, os opositores denunciam ataques de agências do governo e, diante de uma disputa que considera injusta, anunciou uma frente ampla com 28 partidos. A ideia é que cada liderança busque votos no seu reduto em um esforço conjunto para unir os críticos do governo e evitar uma repetição do que aconteceu em 2019 — ano em que Narendra Modi foi reeleito com vitória esmagadora sobre uma oposição fragmentada.
Essa união é mais um indício do fortalecimento da oposição visto nas votações regionais dos últimos anos, mas parece insuficiente para interromper a era Narendra Modi. Embora as pesquisas apontem que o partido Bharatiya Janata deve ter uma vantagem aquém da última eleição, os governistas devem conquistar assentos suficientes para seguir à frente da Índia a partir de 2024.