Desde que o Japão anunciou o despejo das águas residuais do reator nuclear de Fukushima no Oceano Pacífico, que iniciou na semana passada, a China começou uma campanha contra o plano que piora ainda mais a relação entre os dois países. Marcado por um processo de desconfiança e falta de transparência, o plano japonês é visto e denunciado por Pequim como egoísta e irresponsável e provoca a raiva de milhares de chineses. Tóquio garante que o despejo é seguro e acusa o governo chinês de praticar desinformação.
A desconfiança com o despejo das águas em uma região profundamente traumatizada pela herança de testes nucleares durante a Guerra Fria e por questões históricas com o Japão também despertou revolta em outras nações regionais. No próprio Japão, associações de pesca e organizações ambientais se manifestaram contra o projeto. A Coreia do Sul teve protestos e críticas da oposição ao presidente Yoon Suk-yeol por apoiar o plano japonês. O Fórum das Ilhas do Pacífico, que reúne 18 nações insulares, pediu ao Japão para adiar o plano. Mas nenhum desses lugares apresentaram críticas tão ferozes quanto a China.
O governo chinês retalia o plano há meses. No fim de agosto, baniu todas as importações de frutos do mar do Japão e o Ministério das Relações denunciou a liberação de “água contaminada por energia nuclear”. A denúncia foi divulgada amplamente na imprensa estatal, que também destacou os protestos ocorridos em países vizinhos por causa do plano.
Com uma relação marcada por duas guerras sino-japonesas no século 19 e 20 e por uma disputa de liderança regional neste século, o despejo deve agravar ainda mais os desentendimentos entre os dois países, de acordo com a ex-diplomata americana no Leste Asiático e atual professora da Universidade de Yale, Susan Thornton. “A questão de Fukushima aumenta a tensão entre os dois em curto prazo, mas é improvável que tenha efeito prolongado. Dito isso, China e Japão provavelmente permanecerão antagonistas devido a outros fatores”, declarou.
A tensão a curto prazo, no entanto, não é menos grave para a convivência entre japoneses e chineses. Na véspera da liberação das águas, no dia 24, o governo do Japão pediu que japoneses que viajam ou estão na China evitem falar em voz alta e se identificar como japoneses, por temer aumento da xenofobia. A imprensa do Japão também registrou que os escritórios municipais em Tóquio receberam ligações de números da China com mensagens agressivas repudiando o plano.
Alguns restaurantes japoneses localizados na China removeram as decorações japonesas e anunciaram a culinária como “internacional”, destacando a origem dos pescados – “Nosso salmão é da Noruega” ou “O ouriço-do-mar é da Rússia” são frases vistas em alguns restaurantes localizados em Hong Kong, mostram imagens veiculadas no Weibo, uma rede social chinesa. Outras postagens mostram consumidores boicotando produtos de beleza japoneses e comerciantes de peixes preocupados com o futuro dos negócios por causa do medo de contaminação radioativa.
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Falta de transparência do Japão
As desconfianças regionais com o plano japonês são reforçadas por ações pouco transparentes da companhia elétrica que opera a usina de Fukushima, a Tokyo Electric Power Company (Tepco). A companhia começou a armazenar a água utilizada para resfriar os reatores da usina de Fukushima Daiichi após o acidente nuclear de 2011. Em pouco tempo, começou a ser acusada de deixar vazar água com alto valor de trítio (material radioativo) e negou durante dois anos, até reconhecer em 2013 o vazamento de 20 a 40 terabecquerels (unidade de medida radioativa).
A Tepco também foi criticada nos últimos anos por não fornecer resultados de testes para outros produtos químicos radioativos conhecidos por estarem presentes nas águas residuais. Em dezembro de 2022, a Associação Nacional de Laboratórios Marinhos (NAML), com sede nos EUA, divulgou um documento de posição que se opunha ao plano do Japão por “falta de dados científicos adequados e precisos” sobre sua segurança.
Em seu documento de posicionamento, o NAML descreveu os dados fornecidos pela Tepco como “insuficientes e, em alguns casos, incorretos” e sinalizou falhas em seus protocolos científicos de amostragem e análises estatísticas.
Desta vez o governo japonês conta com o aval da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o escritório da ONU para tratar de energia nuclear, que garantiu que o nível de trítio (uma substância que não é possível filtrar) despejado no oceano é muito inferior ao máximo considerado seguro. A garantia da AIEA se somou ao esforço japonês para diminuir as desconfianças em torno do plano e acabou diminuindo a rejeição de países como Austrália e Coreia do Sul, que pedem para acompanhar o despejo das águas.
Para a China, no entanto, mesmo a participação da AIEA não diminui as desconfianças. Pequim cita a preocupação de entidades como a NAML e o Greenpeace, que dizem que o Japão poderia ter explorado outras alternativas e seguem preocupados com o plano, que deve durar pelos próximos 30 anos.
Para analistas, Pequim hoje tem um ceticismo com relação ao Ocidente que acaba por afetar a credibilidade em torno de todas as organizações. Outros dizem que a China mira reordenar as alianças na região, tentando recrutar mais países para o seu lado na disputa com os Estados Unidos, que tem o Japão e a Coreia do Sul como grandes aliados no Sudeste Asiático. “Alguns vizinhos estão claramente politizando isso para manter o Japão com o pé atrás e diplomaticamente enfraquecido”, declarou Jeff Kingston, diretor de Estudos Asiáticos do campus de Tóquio da Universidade Temple ao podcast This Week in Asia.
Mas, segundo Thornton, o episódio não tem força suficiente para alterar as alianças do Pacífico por mais que a China adote uma retórica com esse objetivo. Ela cita que os países que hoje estão desconfiados com o Japão também têm suas próprias desconfianças com a China, incluindo no campo marítimo. “Não acho que isso coloque a China em uma posição de liderança na região nessa questão. Muitos atores regionais também têm preocupações com a China, incluindo suas práticas de pesca e ambições marítimas”, declarou.
Tentativa de reconquistar a confiança
O Japão tenta responder às críticas recebidas em toda a região – desde os protestos da Coreia do Sul até nações menores, como Ilhas Marshall, onde existe uma herança de testes nucleares durante a Guerra Fria que adoeceram centenas de pessoas – com a garantia de segurança do plano e a certificação da AIEA. Entretanto, especialistas dizem que pode ser tarde demais para reverter a rejeição e no debate público sobre o assunto a China pode sair ganhando.
“Desde o início, o Japão realmente não se comunicou bem com seus vizinhos, e foi um caso de ‘propor, anunciar e defender a decisão’”, disse Kingston ao This Week in Asia. “E isso significa que a ofensiva de persuasão chegou tarde demais.”
Entre as ações tentadas nas últimas semanas, o Japão tem dado garantia de transparência e monitoramento dos cientistas estrangeiros sobre o despejo das águas. Funcionários da AIEA foram à usina de Fukushima no dia em que o plano começou para medir o trítio na água diluída e confirmaram que estava abaixo do padrão de 1,5 mil becquerels por litro. A coleta também aconteceu no segundo e terceiro dia, com o mesmo resultado.
O primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, e vários ministros japoneses gravaram vídeos comendo frutos do mar de Fukushima para dissipar as preocupações sobre o impacto da água tratada na saúde humana. O Japão também tem reforçado que diversas outras usinas também despejam trítio no oceano, incluindo na China. “Precisamos informar as pessoas em casa e no exterior (sobre a segurança dos frutos do mar)”, disse o ministro da Economia, Comércio e Indústria, Yasutoshi Nishimura, responsável pela política nuclear do Japão.
Mas, na China, nenhuma dessas ações surte efeito. E dificilmente surtirá. Na semana em que o plano foi iniciado, muitos chineses foram aos supermercados para estocar sal iodado em pânico, na crença equivocada de que ele pode afastar os efeitos da radiação.
Se um ou outro está certo, somente o tempo e o constante monitoramento dos oceanos pode responder. Mas em um artigo para o The New York Times, o pesquisador líder da entidade de monitoramento ambiental Safecast, Azby Brown, aponta que o que está em jogo agora é o recado que o Japão passou para outros países. Ao adotar um processo pouco transparente e comunicativo, o país abriu espaço para outros fazerem o mesmo.
“Só um regime de monitorização verdadeiramente independente, internacional e participativo — com o envolvimento próximo das pessoas mais susceptíveis de serem afetadas — será suficiente para garantir que a libertação da água está a ser feita de forma segura e responsável”, escreve Brown. “Com isso, um precedente ruim poderia ser transformado em um globalmente admirado.”