Feriado patriótico que relembra a vitória do Exército soviético sobre as tropas nazistas na 2ª Guerra, o Dia da Vitória, celebrado em 9 de maio, converteu-se nos últimos anos em um evento político estratégico para Moscou. Sob a liderança de Vladimir Putin, o Kremlin passou a utilizar a data histórica para impulsionar sentimentos nacionalistas na sociedade russa, reforçando a imagem do presidente como parte de um país protagonista no cenário internacional.
O Dia da Vitória é um raro evento histórico reverenciado por todos os atores políticos russos no período pós-soviético. As celebrações anuais contam com enormes desfiles militares na Praça Vermelha, em Moscou, e nas principais cidades do país, apresentando os mais recentes armamentos, tanques, jatos de combate e mísseis balísticos intercontinentais.
As paradas militares aconteciam ocasionalmente durante o período soviético e foram revividas pelo presidente Boris Yeltsin no aniversário de 50 anos da vitória contra os nazistas, em 1995, segundo a rede britânica BBC. Mas foi apenas com Putin, no começo da década passada, que o evento ganhou o contorno bélico-nacionalista atual.
Há anos, o líder russo usa a celebração do Dia da Vitória para mobilizar a nação para a possibilidade de uma nova batalha. Quando ele se dirigiu à nação de sua tribuna na Praça Vermelha no ano passado, Putin fez um alerta sobre inimigos da Rússia estarem mais uma vez implantando “grande parte da ideologia dos nazistas”.
Hoje, com a invasão da Ucrânia sendo tratada como uma “operação militar especial” para “desnazificar” o país -- o que é tratado pela mídia estatal russa como um assunto inacabado da 2ª Guerra --, Putin usou o discurso para evocar o heroísmo dos soldados soviéticos e relacionar à atual campanha militar.
Ao longo da semana passada, autoridades internacionais alertaram que o recrudescimento da ofensiva na Ucrânia, principalmente na cidade portuária de Mariupol, poderia estar coordenada com uma estratégia de propaganda o Kremlin, a fim de anunciar uma importante vitória estratégica durante os festejos do feriado.
Com a situação no campo de batalha ainda indefinida, outra preocupação mencionada por autoridades ocidentais era a de que Putin escalaria a “operação militar especial” na Ucrânia para uma guerra total, o que permitiria a Rússia convocar reservistas e aumentar a presença militar no outro lado da fronteira.
Na prática, porém, o presidente evitou escalar o conflito. Em seu discurso, Putin chegou a fazer um raro reconhecimento do preço da guerra, mencionando os soldados mortos na Ucrânia, e não tentou enquadrar a campanha militar como nenhum vitória até aqui -- o que afasta do horizonte mais próximo um fim para o conflito.
A associação entre os ucranianos e os nazistas tem sido usada pelo Kremlin para gerar aceitação popular em torno da guerra entre os russos. Quando autorizou o avanço das tropas para além das fronteiras ucranianas, Putin comparou repetidamente a guerra na Ucrânia ao desafio que a União Soviética enfrentou quando as tropas de Adolf Hitler invadiram a URSS em 1941.
“A tentativa de atenuar o agressor às vésperas da Grande Guerra Patriótica acabou sendo um erro que custou caro ao nosso povo”, disse Putin em 24 de fevereiro, quando anunciou a operação militar na Ucrânia. “Não cometeremos tal erro uma segunda vez, não temos o direito.” Nesta segunda ele voltou a associar o governo de Kiev ao nazismo.
A União Soviética perdeu cerca de 27 milhões de pessoas na 2ª Guerra, mais do que qualquer outro país. Ao lado da derrota do imperador francês Napoleão Bonaparte em 1812, a derrota da Alemanha nazista é o triunfo militar mais reverenciado dos russos, embora Putin tenha criticado nos últimos anos o que Moscou aponta como tentativas do Ocidente de revisar a história para menosprezar a vitória soviética.
Para sustentar a alegação de nazismo na Ucrânia, o alto escalão do governo russo aponta para o culto por grupos de extrema direita ucranianos aos líderes nacionalistas Stepan Bandera e Roman Shukhevich, que se aliaram aos nazistas durante a 2ª Guerra em uma tentativa de romper com o domínio soviético na região.
Ao mesmo tempo, o Kremlin tenta apontar como fator de menor relevância a origem judaica do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski. Na tentativa de justificar que essa seria uma correlação sem relevância, o chanceler russo, Serguei Lavrov, criou uma crise diplomática com Israel na semana passada, ao afirmar que Hitler também teria “sangue judeu”.
Celebração só de um lado da fronteira
Apesar de ter sido instrumentalizado pelo Kremlin como uma expressão do nacionalismo russo, a vitória contra os nazistas também costuma ser comemorada em outras ex-repúblicas soviéticas, inclusive na Ucrânia, que também fez parte da resistência durante a 2ª Guerra. No entanto, enquanto a Rússia se prepara para o dia festivo, do lado ucraniano da fronteira, atos públicos estão sendo cancelados em função dos bombardeios.
O prefeito da cidade de Ivano-Frankivsk, no oeste da Ucrânia, pediu aos moradores locais na quinta-feira, 5, que deixassem o município durante o fim de semana, cancelando a celebração municipal que estava prevista para acontecer entre sexta a domingo da semana passada.
“Peço, se possível, nos dias 7, 8 e 9 de maio, que todos os moradores de Ivano-Frankivsk não se reúnam na cidade, no lago, no parque e em outros locais públicos”, disse Ruslan Martsinkiv em um vídeo postado em seu canal no Telegram, dizendo ter recebido relatos de que a Rússia planeja continuar realizando ataques com mísseis na região.
Também na quinta, autoridades de Zaporizhzhia, no sudeste do país, anunciaram que um toque de recolher entraria em vigor entre a noite de domingo e a manhã de segunda-feira, para evitar maiores danos em caso de uma ofensiva russa durante o feriado. Longos toques de recolher semelhantes foram implementados em cidades ucranianas perto da linha de frente por questões de segurança ao longo da guerra.
Em Moscou, o desfile reuniu cerca de 11 mil militares e com a exibição dos mais recentes tanques Armata e T-90M Proryv, sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e mísseis balísticos intercontinentais.
Uma apresentação com 77 aviões de guerra russos, incluindo jatos de combate, havia sido anunciado, mas a passagem aérea foi cancelada devido às más condições climáticas.
Estavam previstos desfiles militares pelo Dia da Vitória em 28 cidades do país, mobilizando cerca de 65 mil soldados, de acordo com um anúncio do ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, na quarta-feira passada.
Com a Rússia sob pesadas sanções econômicas do Ocidente, nenhum líder ocidental foi convidado para a outrora popular celebração do Dia da Vitória neste ano, confirmou o Kremlin. Há menos de duas décadas, o presidente dos EUA, George W. Bush, juntou-se a Putin em Moscou./ WPOST, AP, REUTERS, NYT