Diplomacia da vacina provoca nova guerra fria


Rússia e China vendem imunizantes na América Latina, ocupando espaço dos EUA e ameaçando a posição americana na região

Por Genaro Lozano
Atualização:

Em dezembro, uma comissão chefiada pelo chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, recebeu um enorme avião da DHL com as primeiras remessas da vacina da Pfizer-BioNTech a chegarem à América Latina. Eram apenas 3 mil doses para um país com 126 milhões de habitantes, mas foi um momento simbólico. Com as doses, o México iniciaria a vacinação nacional no dia seguinte. A luz no fim do túnel finalmente estava à vista e Ebrard, num tom triunfante, decretou: “Missão cumprida”.

Um mês e meio depois, a campanha de vacinação está paralisada. Até o dia 9, 724.347 pessoas haviam recebido a primeira dose, com pouco mais de 3.890 vacinações sendo feitas por dia. Os Estados Unidos já vacinaram 42 milhões de pessoas, imunizando mais de 1,4 milhão por dia.

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Geopolítica

O contraste foi notado. Se os EUA e outros países desenvolvidos vêm acelerando a introdução de mais vacinas, o ressentimento, pelo contrário, cresce nos países de menor renda. Aproveitando a oportunidade, Rússia e China incrementam seus esforços para fornecer ao mundo em desenvolvimento suas vacinas. Na América Latina esses esforços trarão consequências inesperadas para as alianças e a geopolítica nos próximos anos.

Soldado do Exército do México vigia furgão com doses da vacina da Pfizer em Monterrey Foto: Daniel Becerril/REUTERS
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Se o presidente Joe Biden cumprir sua promessa de vacinar 100 milhões de americanos nos seus primeiros 100 dias no cargo, os EUA estarão a caminho de alcançar a imunidade coletiva no terceiro trimestre deste ano, de acordo com o diretor para a área médica da Casa Branca, Anthony Fauci. O Reino Unido, por sua vez, já vacinou milhões de pessoas, e Israel já aplicou a vacina em mais de 50% da sua população, ignorando os palestinos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

O Canadá, apesar da sua liderança progressista, rechaçou seu globalismo costumeiro para adotar o nacionalismo das vacinas, tendo firmado contratos com empresas farmacêuticas para aquisição de mais de 400 milhões de doses – cinco vezes mais do que o que precisa para as duas necessárias para sua população inteira. 

Parafraseando Trump, o primeiro-ministro Justin Trudeau colocou o Canadá “em primeiro lugar”. O mesmo se verifica na União Europeia, que agora começa a pensar em proibir a exportação das vacinas Pfizer-BioNTech para o restante do mundo. A “Europa em primeiro lugar”. Uma sombra está arrebatando o mundo: o fantasma do nacionalismo de Donald Trump.

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Mas, em grande parte do mundo em desenvolvimento, a mera perspectiva de implementar uma vacina continua distante. Segundo a Economist Intelligence Unit, se a atual tendência se mantiver, mais de 85 países de baixa renda terão de aguardar até 2023 para ter acesso generalizado à vacina.

Esse cenário somente vem corroborar a ascensão da influência chinesa e russa no mundo em desenvolvimento e na América Latina em particular. Argentina e Nicarágua, por exemplo, já aprovaram a vacina russa Sputnik V para uso emergencial. O presidente argentino, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Fernández Kirchner, receberam suas primeiras doses no final de janeiro.

Na mesma época, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, conhecido como AMLO, desapareceu da vista pública, anunciando depois ter testado positivo para a covid-19. Ele reapareceu apenas para falar do caloroso contato telefônico que manteve com o presidente russo, Vladimir Putin, e que o convidou para visitar o México. Putin expressou a seu colega mexicano votos de pronta recuperação e ambos anunciaram uma remessa de 24 milhões de doses da Sputnik V para o México, que será o primeiro país da América do Norte a usá-la.

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Sputnik V

Para os mexicanos, a aceitação de uma vacina russa depois de décadas de uma estreita integração com os EUA é um choque e as suspeitas em torno do uso de uma (então) vacina ainda sem eficácia comprovada foram grandes no início. Mas depois veio a publicação na revista médica Lancet dos dados da terceira fase de testes da vacina, avaliando a Sputnik V como segura e com mais de 91% de eficácia. Ficou claro que Putin colocou a diplomacia russa numa importante posição de vantagem.

A China tem observado sucesso similar. Os governos do Brasil e do Chile começaram a comprar e a distribuir a vacina chinesa Coronavac como parte de sua campanha de vacinação. O Peru recebeu sua remessa de vacina da Sinopharm chinesa há alguns dias. O México requisitou assistência técnica do Chile quanto à aplicação da Coronavac e agora aprovou a vacina chinesa CanSino para uso emergencial.

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Consciente da forte integração econômica com os EUA – 80% das suas exportações ainda vão para seu vizinho do norte – o México há muito tempo desejava diversificar seus parceiros. O chanceler mexicano mencionou que o governo de AMLO vinha desejando manter relações mais estreitas com outras superpotências globais, ou seja, China e Rússia, e agora talvez seja a oportunidade ideal.

As implicações desses relacionamentos são imprevisíveis. Mas, no caso de a assistência à vacina por parte dos dois países influenciar a opinião pública local, a política externa mexicana pode mudar substancialmente, provocando, por exemplo, uma ratificação das posições sino-russas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde o México ocupa uma vaga temporária. E pode ser um enorme problema para a política externa dos EUA em assuntos envolvendo países como Venezuela, Cuba e o conflito entre israelenses e palestinos, entre outros.

Se Putin aceitar o convite de AMLO para visitar o México, uma relação mais próxima entre os dois países reforçaria a presença de Moscou na região. Putin visitou o México em 2004 e em 2012, mas não retornou mais. Uma visita num futuro próximo, antes do presidente americano, Joe Biden, terá um enorme impacto, simbólico, sobre as relações entre México e EUA. 

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Parceria

E esse momento naturalmente se encaixaria na medida adotada pelo México, que ocupa a presidência temporária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), de nomear a Rússia “parceiro extrarregional” da organização em 2020. O Ministério de Relações Exteriores da Rússia vinha buscando uma maior proximidade com a Celac havia mais de uma década.

Num momento emblemático, dias depois do contato de López Obrador com Putin, o presidente mexicano se comunicou com Biden para pedir mais ajuda com a vacina. Seu apelo foi recusado, uma vez que o presidente americano priorizou a própria população. Na verdade, Biden colocou a América em primeiro lugar.

Biden deseja reverter a falta de engajamento de seu predecessor com relação à América Latina, mas ainda não ofereceu à região o que ela mais necessita: uma cooperação para assegurar o acesso às vacinas. Diante dessa falta de solidariedade, o poder brando russo e chinês se intensifica. À medida que os dois rivais assumem a liderança nesta “guerra fria” das vacinas, seria recomendável os EUA agirem rapidamente. Sua hegemonia na América Latina está em risco. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕESINTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE IBERO-AMERICANA, DA CIDADE DOMÉXICO, E ANALISTA DA REVISTA REFORMA E DA FOROTV

Em dezembro, uma comissão chefiada pelo chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, recebeu um enorme avião da DHL com as primeiras remessas da vacina da Pfizer-BioNTech a chegarem à América Latina. Eram apenas 3 mil doses para um país com 126 milhões de habitantes, mas foi um momento simbólico. Com as doses, o México iniciaria a vacinação nacional no dia seguinte. A luz no fim do túnel finalmente estava à vista e Ebrard, num tom triunfante, decretou: “Missão cumprida”.

Um mês e meio depois, a campanha de vacinação está paralisada. Até o dia 9, 724.347 pessoas haviam recebido a primeira dose, com pouco mais de 3.890 vacinações sendo feitas por dia. Os Estados Unidos já vacinaram 42 milhões de pessoas, imunizando mais de 1,4 milhão por dia.

Geopolítica

O contraste foi notado. Se os EUA e outros países desenvolvidos vêm acelerando a introdução de mais vacinas, o ressentimento, pelo contrário, cresce nos países de menor renda. Aproveitando a oportunidade, Rússia e China incrementam seus esforços para fornecer ao mundo em desenvolvimento suas vacinas. Na América Latina esses esforços trarão consequências inesperadas para as alianças e a geopolítica nos próximos anos.

Soldado do Exército do México vigia furgão com doses da vacina da Pfizer em Monterrey Foto: Daniel Becerril/REUTERS

Se o presidente Joe Biden cumprir sua promessa de vacinar 100 milhões de americanos nos seus primeiros 100 dias no cargo, os EUA estarão a caminho de alcançar a imunidade coletiva no terceiro trimestre deste ano, de acordo com o diretor para a área médica da Casa Branca, Anthony Fauci. O Reino Unido, por sua vez, já vacinou milhões de pessoas, e Israel já aplicou a vacina em mais de 50% da sua população, ignorando os palestinos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

O Canadá, apesar da sua liderança progressista, rechaçou seu globalismo costumeiro para adotar o nacionalismo das vacinas, tendo firmado contratos com empresas farmacêuticas para aquisição de mais de 400 milhões de doses – cinco vezes mais do que o que precisa para as duas necessárias para sua população inteira. 

Parafraseando Trump, o primeiro-ministro Justin Trudeau colocou o Canadá “em primeiro lugar”. O mesmo se verifica na União Europeia, que agora começa a pensar em proibir a exportação das vacinas Pfizer-BioNTech para o restante do mundo. A “Europa em primeiro lugar”. Uma sombra está arrebatando o mundo: o fantasma do nacionalismo de Donald Trump.

Mas, em grande parte do mundo em desenvolvimento, a mera perspectiva de implementar uma vacina continua distante. Segundo a Economist Intelligence Unit, se a atual tendência se mantiver, mais de 85 países de baixa renda terão de aguardar até 2023 para ter acesso generalizado à vacina.

Esse cenário somente vem corroborar a ascensão da influência chinesa e russa no mundo em desenvolvimento e na América Latina em particular. Argentina e Nicarágua, por exemplo, já aprovaram a vacina russa Sputnik V para uso emergencial. O presidente argentino, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Fernández Kirchner, receberam suas primeiras doses no final de janeiro.

Na mesma época, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, conhecido como AMLO, desapareceu da vista pública, anunciando depois ter testado positivo para a covid-19. Ele reapareceu apenas para falar do caloroso contato telefônico que manteve com o presidente russo, Vladimir Putin, e que o convidou para visitar o México. Putin expressou a seu colega mexicano votos de pronta recuperação e ambos anunciaram uma remessa de 24 milhões de doses da Sputnik V para o México, que será o primeiro país da América do Norte a usá-la.

Sputnik V

Para os mexicanos, a aceitação de uma vacina russa depois de décadas de uma estreita integração com os EUA é um choque e as suspeitas em torno do uso de uma (então) vacina ainda sem eficácia comprovada foram grandes no início. Mas depois veio a publicação na revista médica Lancet dos dados da terceira fase de testes da vacina, avaliando a Sputnik V como segura e com mais de 91% de eficácia. Ficou claro que Putin colocou a diplomacia russa numa importante posição de vantagem.

A China tem observado sucesso similar. Os governos do Brasil e do Chile começaram a comprar e a distribuir a vacina chinesa Coronavac como parte de sua campanha de vacinação. O Peru recebeu sua remessa de vacina da Sinopharm chinesa há alguns dias. O México requisitou assistência técnica do Chile quanto à aplicação da Coronavac e agora aprovou a vacina chinesa CanSino para uso emergencial.

Consciente da forte integração econômica com os EUA – 80% das suas exportações ainda vão para seu vizinho do norte – o México há muito tempo desejava diversificar seus parceiros. O chanceler mexicano mencionou que o governo de AMLO vinha desejando manter relações mais estreitas com outras superpotências globais, ou seja, China e Rússia, e agora talvez seja a oportunidade ideal.

As implicações desses relacionamentos são imprevisíveis. Mas, no caso de a assistência à vacina por parte dos dois países influenciar a opinião pública local, a política externa mexicana pode mudar substancialmente, provocando, por exemplo, uma ratificação das posições sino-russas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde o México ocupa uma vaga temporária. E pode ser um enorme problema para a política externa dos EUA em assuntos envolvendo países como Venezuela, Cuba e o conflito entre israelenses e palestinos, entre outros.

Se Putin aceitar o convite de AMLO para visitar o México, uma relação mais próxima entre os dois países reforçaria a presença de Moscou na região. Putin visitou o México em 2004 e em 2012, mas não retornou mais. Uma visita num futuro próximo, antes do presidente americano, Joe Biden, terá um enorme impacto, simbólico, sobre as relações entre México e EUA. 

Parceria

E esse momento naturalmente se encaixaria na medida adotada pelo México, que ocupa a presidência temporária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), de nomear a Rússia “parceiro extrarregional” da organização em 2020. O Ministério de Relações Exteriores da Rússia vinha buscando uma maior proximidade com a Celac havia mais de uma década.

Num momento emblemático, dias depois do contato de López Obrador com Putin, o presidente mexicano se comunicou com Biden para pedir mais ajuda com a vacina. Seu apelo foi recusado, uma vez que o presidente americano priorizou a própria população. Na verdade, Biden colocou a América em primeiro lugar.

Biden deseja reverter a falta de engajamento de seu predecessor com relação à América Latina, mas ainda não ofereceu à região o que ela mais necessita: uma cooperação para assegurar o acesso às vacinas. Diante dessa falta de solidariedade, o poder brando russo e chinês se intensifica. À medida que os dois rivais assumem a liderança nesta “guerra fria” das vacinas, seria recomendável os EUA agirem rapidamente. Sua hegemonia na América Latina está em risco. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕESINTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE IBERO-AMERICANA, DA CIDADE DOMÉXICO, E ANALISTA DA REVISTA REFORMA E DA FOROTV

Em dezembro, uma comissão chefiada pelo chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, recebeu um enorme avião da DHL com as primeiras remessas da vacina da Pfizer-BioNTech a chegarem à América Latina. Eram apenas 3 mil doses para um país com 126 milhões de habitantes, mas foi um momento simbólico. Com as doses, o México iniciaria a vacinação nacional no dia seguinte. A luz no fim do túnel finalmente estava à vista e Ebrard, num tom triunfante, decretou: “Missão cumprida”.

Um mês e meio depois, a campanha de vacinação está paralisada. Até o dia 9, 724.347 pessoas haviam recebido a primeira dose, com pouco mais de 3.890 vacinações sendo feitas por dia. Os Estados Unidos já vacinaram 42 milhões de pessoas, imunizando mais de 1,4 milhão por dia.

Geopolítica

O contraste foi notado. Se os EUA e outros países desenvolvidos vêm acelerando a introdução de mais vacinas, o ressentimento, pelo contrário, cresce nos países de menor renda. Aproveitando a oportunidade, Rússia e China incrementam seus esforços para fornecer ao mundo em desenvolvimento suas vacinas. Na América Latina esses esforços trarão consequências inesperadas para as alianças e a geopolítica nos próximos anos.

Soldado do Exército do México vigia furgão com doses da vacina da Pfizer em Monterrey Foto: Daniel Becerril/REUTERS

Se o presidente Joe Biden cumprir sua promessa de vacinar 100 milhões de americanos nos seus primeiros 100 dias no cargo, os EUA estarão a caminho de alcançar a imunidade coletiva no terceiro trimestre deste ano, de acordo com o diretor para a área médica da Casa Branca, Anthony Fauci. O Reino Unido, por sua vez, já vacinou milhões de pessoas, e Israel já aplicou a vacina em mais de 50% da sua população, ignorando os palestinos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

O Canadá, apesar da sua liderança progressista, rechaçou seu globalismo costumeiro para adotar o nacionalismo das vacinas, tendo firmado contratos com empresas farmacêuticas para aquisição de mais de 400 milhões de doses – cinco vezes mais do que o que precisa para as duas necessárias para sua população inteira. 

Parafraseando Trump, o primeiro-ministro Justin Trudeau colocou o Canadá “em primeiro lugar”. O mesmo se verifica na União Europeia, que agora começa a pensar em proibir a exportação das vacinas Pfizer-BioNTech para o restante do mundo. A “Europa em primeiro lugar”. Uma sombra está arrebatando o mundo: o fantasma do nacionalismo de Donald Trump.

Mas, em grande parte do mundo em desenvolvimento, a mera perspectiva de implementar uma vacina continua distante. Segundo a Economist Intelligence Unit, se a atual tendência se mantiver, mais de 85 países de baixa renda terão de aguardar até 2023 para ter acesso generalizado à vacina.

Esse cenário somente vem corroborar a ascensão da influência chinesa e russa no mundo em desenvolvimento e na América Latina em particular. Argentina e Nicarágua, por exemplo, já aprovaram a vacina russa Sputnik V para uso emergencial. O presidente argentino, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Fernández Kirchner, receberam suas primeiras doses no final de janeiro.

Na mesma época, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, conhecido como AMLO, desapareceu da vista pública, anunciando depois ter testado positivo para a covid-19. Ele reapareceu apenas para falar do caloroso contato telefônico que manteve com o presidente russo, Vladimir Putin, e que o convidou para visitar o México. Putin expressou a seu colega mexicano votos de pronta recuperação e ambos anunciaram uma remessa de 24 milhões de doses da Sputnik V para o México, que será o primeiro país da América do Norte a usá-la.

Sputnik V

Para os mexicanos, a aceitação de uma vacina russa depois de décadas de uma estreita integração com os EUA é um choque e as suspeitas em torno do uso de uma (então) vacina ainda sem eficácia comprovada foram grandes no início. Mas depois veio a publicação na revista médica Lancet dos dados da terceira fase de testes da vacina, avaliando a Sputnik V como segura e com mais de 91% de eficácia. Ficou claro que Putin colocou a diplomacia russa numa importante posição de vantagem.

A China tem observado sucesso similar. Os governos do Brasil e do Chile começaram a comprar e a distribuir a vacina chinesa Coronavac como parte de sua campanha de vacinação. O Peru recebeu sua remessa de vacina da Sinopharm chinesa há alguns dias. O México requisitou assistência técnica do Chile quanto à aplicação da Coronavac e agora aprovou a vacina chinesa CanSino para uso emergencial.

Consciente da forte integração econômica com os EUA – 80% das suas exportações ainda vão para seu vizinho do norte – o México há muito tempo desejava diversificar seus parceiros. O chanceler mexicano mencionou que o governo de AMLO vinha desejando manter relações mais estreitas com outras superpotências globais, ou seja, China e Rússia, e agora talvez seja a oportunidade ideal.

As implicações desses relacionamentos são imprevisíveis. Mas, no caso de a assistência à vacina por parte dos dois países influenciar a opinião pública local, a política externa mexicana pode mudar substancialmente, provocando, por exemplo, uma ratificação das posições sino-russas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde o México ocupa uma vaga temporária. E pode ser um enorme problema para a política externa dos EUA em assuntos envolvendo países como Venezuela, Cuba e o conflito entre israelenses e palestinos, entre outros.

Se Putin aceitar o convite de AMLO para visitar o México, uma relação mais próxima entre os dois países reforçaria a presença de Moscou na região. Putin visitou o México em 2004 e em 2012, mas não retornou mais. Uma visita num futuro próximo, antes do presidente americano, Joe Biden, terá um enorme impacto, simbólico, sobre as relações entre México e EUA. 

Parceria

E esse momento naturalmente se encaixaria na medida adotada pelo México, que ocupa a presidência temporária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), de nomear a Rússia “parceiro extrarregional” da organização em 2020. O Ministério de Relações Exteriores da Rússia vinha buscando uma maior proximidade com a Celac havia mais de uma década.

Num momento emblemático, dias depois do contato de López Obrador com Putin, o presidente mexicano se comunicou com Biden para pedir mais ajuda com a vacina. Seu apelo foi recusado, uma vez que o presidente americano priorizou a própria população. Na verdade, Biden colocou a América em primeiro lugar.

Biden deseja reverter a falta de engajamento de seu predecessor com relação à América Latina, mas ainda não ofereceu à região o que ela mais necessita: uma cooperação para assegurar o acesso às vacinas. Diante dessa falta de solidariedade, o poder brando russo e chinês se intensifica. À medida que os dois rivais assumem a liderança nesta “guerra fria” das vacinas, seria recomendável os EUA agirem rapidamente. Sua hegemonia na América Latina está em risco. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

* É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕESINTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE IBERO-AMERICANA, DA CIDADE DOMÉXICO, E ANALISTA DA REVISTA REFORMA E DA FOROTV

Em dezembro, uma comissão chefiada pelo chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, recebeu um enorme avião da DHL com as primeiras remessas da vacina da Pfizer-BioNTech a chegarem à América Latina. Eram apenas 3 mil doses para um país com 126 milhões de habitantes, mas foi um momento simbólico. Com as doses, o México iniciaria a vacinação nacional no dia seguinte. A luz no fim do túnel finalmente estava à vista e Ebrard, num tom triunfante, decretou: “Missão cumprida”.

Um mês e meio depois, a campanha de vacinação está paralisada. Até o dia 9, 724.347 pessoas haviam recebido a primeira dose, com pouco mais de 3.890 vacinações sendo feitas por dia. Os Estados Unidos já vacinaram 42 milhões de pessoas, imunizando mais de 1,4 milhão por dia.

Geopolítica

O contraste foi notado. Se os EUA e outros países desenvolvidos vêm acelerando a introdução de mais vacinas, o ressentimento, pelo contrário, cresce nos países de menor renda. Aproveitando a oportunidade, Rússia e China incrementam seus esforços para fornecer ao mundo em desenvolvimento suas vacinas. Na América Latina esses esforços trarão consequências inesperadas para as alianças e a geopolítica nos próximos anos.

Soldado do Exército do México vigia furgão com doses da vacina da Pfizer em Monterrey Foto: Daniel Becerril/REUTERS

Se o presidente Joe Biden cumprir sua promessa de vacinar 100 milhões de americanos nos seus primeiros 100 dias no cargo, os EUA estarão a caminho de alcançar a imunidade coletiva no terceiro trimestre deste ano, de acordo com o diretor para a área médica da Casa Branca, Anthony Fauci. O Reino Unido, por sua vez, já vacinou milhões de pessoas, e Israel já aplicou a vacina em mais de 50% da sua população, ignorando os palestinos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

O Canadá, apesar da sua liderança progressista, rechaçou seu globalismo costumeiro para adotar o nacionalismo das vacinas, tendo firmado contratos com empresas farmacêuticas para aquisição de mais de 400 milhões de doses – cinco vezes mais do que o que precisa para as duas necessárias para sua população inteira. 

Parafraseando Trump, o primeiro-ministro Justin Trudeau colocou o Canadá “em primeiro lugar”. O mesmo se verifica na União Europeia, que agora começa a pensar em proibir a exportação das vacinas Pfizer-BioNTech para o restante do mundo. A “Europa em primeiro lugar”. Uma sombra está arrebatando o mundo: o fantasma do nacionalismo de Donald Trump.

Mas, em grande parte do mundo em desenvolvimento, a mera perspectiva de implementar uma vacina continua distante. Segundo a Economist Intelligence Unit, se a atual tendência se mantiver, mais de 85 países de baixa renda terão de aguardar até 2023 para ter acesso generalizado à vacina.

Esse cenário somente vem corroborar a ascensão da influência chinesa e russa no mundo em desenvolvimento e na América Latina em particular. Argentina e Nicarágua, por exemplo, já aprovaram a vacina russa Sputnik V para uso emergencial. O presidente argentino, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Fernández Kirchner, receberam suas primeiras doses no final de janeiro.

Na mesma época, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, conhecido como AMLO, desapareceu da vista pública, anunciando depois ter testado positivo para a covid-19. Ele reapareceu apenas para falar do caloroso contato telefônico que manteve com o presidente russo, Vladimir Putin, e que o convidou para visitar o México. Putin expressou a seu colega mexicano votos de pronta recuperação e ambos anunciaram uma remessa de 24 milhões de doses da Sputnik V para o México, que será o primeiro país da América do Norte a usá-la.

Sputnik V

Para os mexicanos, a aceitação de uma vacina russa depois de décadas de uma estreita integração com os EUA é um choque e as suspeitas em torno do uso de uma (então) vacina ainda sem eficácia comprovada foram grandes no início. Mas depois veio a publicação na revista médica Lancet dos dados da terceira fase de testes da vacina, avaliando a Sputnik V como segura e com mais de 91% de eficácia. Ficou claro que Putin colocou a diplomacia russa numa importante posição de vantagem.

A China tem observado sucesso similar. Os governos do Brasil e do Chile começaram a comprar e a distribuir a vacina chinesa Coronavac como parte de sua campanha de vacinação. O Peru recebeu sua remessa de vacina da Sinopharm chinesa há alguns dias. O México requisitou assistência técnica do Chile quanto à aplicação da Coronavac e agora aprovou a vacina chinesa CanSino para uso emergencial.

Consciente da forte integração econômica com os EUA – 80% das suas exportações ainda vão para seu vizinho do norte – o México há muito tempo desejava diversificar seus parceiros. O chanceler mexicano mencionou que o governo de AMLO vinha desejando manter relações mais estreitas com outras superpotências globais, ou seja, China e Rússia, e agora talvez seja a oportunidade ideal.

As implicações desses relacionamentos são imprevisíveis. Mas, no caso de a assistência à vacina por parte dos dois países influenciar a opinião pública local, a política externa mexicana pode mudar substancialmente, provocando, por exemplo, uma ratificação das posições sino-russas no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde o México ocupa uma vaga temporária. E pode ser um enorme problema para a política externa dos EUA em assuntos envolvendo países como Venezuela, Cuba e o conflito entre israelenses e palestinos, entre outros.

Se Putin aceitar o convite de AMLO para visitar o México, uma relação mais próxima entre os dois países reforçaria a presença de Moscou na região. Putin visitou o México em 2004 e em 2012, mas não retornou mais. Uma visita num futuro próximo, antes do presidente americano, Joe Biden, terá um enorme impacto, simbólico, sobre as relações entre México e EUA. 

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E esse momento naturalmente se encaixaria na medida adotada pelo México, que ocupa a presidência temporária da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), de nomear a Rússia “parceiro extrarregional” da organização em 2020. O Ministério de Relações Exteriores da Rússia vinha buscando uma maior proximidade com a Celac havia mais de uma década.

Num momento emblemático, dias depois do contato de López Obrador com Putin, o presidente mexicano se comunicou com Biden para pedir mais ajuda com a vacina. Seu apelo foi recusado, uma vez que o presidente americano priorizou a própria população. Na verdade, Biden colocou a América em primeiro lugar.

Biden deseja reverter a falta de engajamento de seu predecessor com relação à América Latina, mas ainda não ofereceu à região o que ela mais necessita: uma cooperação para assegurar o acesso às vacinas. Diante dessa falta de solidariedade, o poder brando russo e chinês se intensifica. À medida que os dois rivais assumem a liderança nesta “guerra fria” das vacinas, seria recomendável os EUA agirem rapidamente. Sua hegemonia na América Latina está em risco. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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