O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da Assembleia-Geral da ONU nesta terça-feira, 19, buscou resgatar as credenciais do Brasil e os interesses e crenças na política externa e elencou o combate à desigualdade como central para solucionar diversas crises globais, de acordo com analistas. O presidente, no entanto, adotou um tom vago ao tratar sobre a guerra na Ucrânia e abriu espaço para críticas e ressalvas ao defender o fim dos bloqueios de Cuba.
Em geral, o discurso foi visto como dentro do esperado. Como previsto, Lula ressaltou a necessidade de atenção e protagonismo do Sul Global e de reforma de estruturas de governança para atender os desafios atuais. “Lula resgata tradições e padrões de discursos brasileiros, com tinta claramente carregada pelo Itamaraty”, afirmou a coordenadora de relações internacionais da FAAP, Fernanda Magnotta.
Apesar do discurso protocolar, as analistas avaliaram que o presidente surpreendeu ao tratar de Cuba, ao pedir o fim do bloqueio econômico imposto pelos EUA, defender Julian Assenge, fundador do WikiLeaks e atualmente preso no Reino Unido, e adotar um discurso vago sobre a guerra na Ucrânia. “A maior surpresa foi a defesa do fim do bloqueio contra Cuba. A defesa da liberdade de imprensa também foi um ponto que não era previsto”, disse Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM.
“Lula acerta no tom e na mensagem, mas certamente será visto com ressalva por lideranças que terão se incomodado com a defesa de Assange, referência a Cuba e discurso vago sobre Ucrânia/Rússia”, avaliou Fernanda Magnotta.
Na análise de Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM, o ponto central do discurso do presidente foi o tema da desigualdade. Ele iniciou a participação ressaltando que o desafio é o mesmo de 2003, quando discursou pela primeira vez na Assembleia-Geral da ONU como presidente brasileiro. “O ponto central foi que todas as crises estão associadas a falta de ação internacional ao combate as diferentes formas de desigualdade”, disse a professora de relações internacionais da ESPM, Denilde Holzhacker.
“No geral, foi um discurso que reforça os principais desafios da agenda internacional, mas que é preciso de maior envolvimento dos países para a busca de solução com diálogo, busca da construção da paz e combate a desigualdade”, acrescentou Denilde.
Para Laura Trajber Waisbich, diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Lula valorizou o papel da ONU na resolução de problemas globais e enfatizou a importância do multilateralismo e do universalismo para enfrentá-los, seguindo uma tradição diplomática brasileira. “Trata-se de mensagem importante a audiências nacionais e internacionais, que insistem em colocar o Brasil em um campo ou outro no atual contexto de extrema polarização internacional”, diz Laura.
“Tal como Guterres, Lula fala do imobilismo das instituições da governança global, usando a mesma expressão: ‘instituições que não funcionam fazem parte do problema e não da solução’”, afirmou.
Hussein Kalout, cientista político e pesquisador da Universidade de Harvard, avaliou que o discurso do presidente foi “sóbrio, equilibrado, consistente e conjugado com os princípios da Constituição e valores universais da política externa brasileira”.
“O presidente Lula endereçou o principal: reforma da governança global politica e economica; a necessidade de cooperação para a mitigação de conflitos; a importância do meio ambiente e da crise climática; o combate à desigualdade. Não faltou nada, na minha visão”, declarou. “Ademais, foi perspicaz ao excluir da centralidade do discurso o conflito da Ucrânia e ao reiterar o compromisso do Brasil com o direito internacional.”
“As responsabilidades e o envolvimento do Brasil e dos EUA diante do conflito na Ucrânia são assimétricos. O presidente Lula fez bem em não adotar o mesmo discurso que o Biden. E o Biden fez o logico em seguir o discurso da forma como encaminhou”, acrescentou.
Abaixo, leia a análise das especialistas sobre os temas tratados pelo presidente durante o discurso:
Guerra e paz
Lula tratou de conflitos atuais entre nações, citando diretamente a guerra na Ucrânia, mas incluindo outros conflitos. Ele enfatizou o papel da ONU na construção da paz e da justiça social e disse que o Brasil preza pela construção de diálogos que possibilitem soluções pacíficas. “Conhecemos os horrores produzidos pela cultura das guerras. A cultura de paz é um dever de nós construir e requer vigilância. Nenhuma solução será duradoura se não for baseada no dialogo. A guerra na ucrânia escancara nossa capacidade coletiva de fazer valer os propósitos e os princípios da Carta da ONU”, disse.
Denilde Holzhacker: “Lula apontou vários dos conflitos atuais, inclusive da Ucrânia. Reforço no diálogo e combate desigualdade, e foi enfático o papel da ONU na construção da paz, mas também da justiça social.”
Fernanda Magnotta: “Ele está endereçando um tema inevitável, que é a guerra, mas tentando relativizar a forma como o assunto vem sendo tratado em forúns internacionais. Geralmente o foco fica em torno da Guerra da Ucrânia e o debate sobre guerra e paz se restringe a isso. Lula tenta chamar a atenção para o fato de que há outros conflitos em andamento e outras violações que merecem atenção. Vai de Assange e Cuba à Ucrânia, passando por vários outros casos. É um jeito de tentar reenquadrar o debate da forma como está sendo conduzido pelas principais potências.”
Hussein Kalout: “[Lula] foi perspicaz ao excluir da centralidade do discurso o conflito da Ucrânia e ao reiterar o compromisso do Brasil com o direito internacional. As responsabilidades e o envolvimento do Brasil e dos EUA diante do conflito na Ucrânia são assimétricos. O presidente Lula fez bem em não adotar o mesmo discurso que o Biden. E o Biden fez o logico em seguir o discurso da forma como encaminhou.”
Laura Trajber Waisbich: “Apesar de não falar diretamente na Rússia nem em Putin, Lula mencionou a Guerra na Ucrânia, bem como outros conflitos, reforçando que nenhuma solução será duradoura se não for pautada em diálogo, e repete a determinação do Brasil de criar espaços para negociação. O presidente fez dura crítica à ‘guerras não autorizadas’, mencionando tanto as de expansão territorial como as de mudanças de regime, em alusão à Rússia e aos EUA.”
Assembleia-Geral da ONU
Desigualdade e fome
No discurso, Lula ressaltou que a desigualdade e a fome, objetos centrais do primeiro discurso que fez na ONU, em 2003, continuam urgentes nos dias atuais e se somam a outros desafios, como o das mudanças climáticas. “Naquela época (em 2003) o mundo ainda não havia se dado conta da emergência da mudança climática. Hoje, ela bate à nossa porta, mata e atinge sobretudo os mais pobres”, afirmou Lula. Ele também criticou as ações das nações desenvolvidas no combate à desigualdade.
Denilde Holzhacker: “O discurso do Lula apresenta o quanto a agenda climática cresceu, mas a desigualdade que desde seu 1.º governo ainda é central para a humanidade. O discurso pretende argumentar que todas as crises estão associadas a desigualdade, que sem resolver a desigualdade e pobreza não resolvemos outras crises urgentes. Ele traz várias formas de desigualdade, como a questão da participação das mulheres e racial.”
Fernanda Magnotta: “Os temas são importantes e ainda carecem de medidas para o efetivo combate. Ele toca nos temas aproveitando a oportunidade para apresentar realizações do Brasil em relação à implementação dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) no país. Tenta sensibilizar os demais líderes ao argumentar que os riscos da desigualdade impactam diretamente outros temas que são importantes para eles, como os efeitos sobre a democracia e outras crises, incluindo geopolíticas. Ele sabe que os assuntos geopolíticos são urgentes e capturam a agenda do mundo desenvolvido. Vincular desenvolvimento a tudo o que acontece no mundo é uma forma de chamar a atenção para a centralidade da agenda brasileira e do Sul Global.”
Mudanças climáticas
Antes de introduzir o tema da desigualdade, o presidente brasileiro prestou condolências as vítimas das enchentes na Líbia e do terremoto no Marrocos e relembrou que o Brasil vive uma tragédia semelhante causada por eventos climáticos no Rio Grande do Sul. Depois, Lula afirmou que os países desenvolvidos são os principais responsáveis pela crise climática por serem os maiores emissores de carbono e disse que o Brasil apresenta um modelo alternativo. “Os países ricos cresceram baseado em um modelo. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos”, declarou.
Denilde Holzkhacker: “Ele enfatizou que o Brasil está fazendo sua parte e que não quer a tutela internacional. Buscou enfatizar que o desenvolvimento tem como principio proteção ambiental, claramente fugiu da discussão sobre questão agrícola. que é o ponto crítico do governo brasileiro.”
Fernanda Magnotta: “O Brasil tem uma das matrizes energéticas mais diversificadas do mundo e tem muito interesse em promover uma agenda de economia verde, incluindo a promoção de biocombustíveis. O Brasil acaba de lançar uma iniciativa conjunta com outros países justamente sobre isso no G20. Apresentar isso é uma forma de reforçar o compromisso brasileiro com a temática ambiental e reverter a imagem anterior deixada por Bolsonaro. Ao mesmo tempo, é uma forma de contornar as críticas que vem sofrendo sobre exploração de petróleo na Amazônia, por exemplo.”
Laura Trajber Waisbich: “Lula reafirmou o perfil de potência ambiental do Brasil e a centralidade da Amazônia nessa questão. Ele enfatizou que a Amazônia vai falar por si mesma, e a intenção do Brasil de capitanear diálogos com outros países detentores de florestas”.
Multilateralismo e organismos internacionais
Como era esperado, o presidente brasileiro também falou sobre a necessidade de reforma de organismos internacionais para dar espaço às nações em desenvolvimento, sobretudo o Conselho de Segurança da ONU e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ele citou o Brics como uma alternativa encontrada pelo Sul Global e relembrou a recente expansão do fórum. “A representação desigual e distorcida no FMI é inaceitável. O Brics surgiu na esteira desse imobilismo e é uma plataforma estratégica para as nações emergentes. Somos uma força que trabalha por um comércio global mais justo no contexto do multilateralismo”, disse.
Denilde Holzhacker: Foi um discurso que reforça os principais desafios da agenda internacional, mas que é preciso de maior envolvimento dos países para a busca de solução com diálogo, busca da construção da paz e combate a desigualdade. Não era esperado que ele falasse dos Brics, mas falar sobre a necessidade de reforma das instituições internacionais.
Fernanda Magnotta: “Lula tenta deixar claro que a forma de ‘enquadrar as coisas’ tais quais elas estão sendo feitas pelas potências estabelecidas não atende aos interesses do Sul Global e que é preciso reformar as estruturas de governança global para atender aos desafios desse século. O governo Lula trata o Brics como uma plataforma central para realização dos interesses do Brasil em promover multilateralismo e empurrar o mundo para a multipolaridade. O Brics ampliado é, na forma de ver de Lula, um fórum mais plural e representativo que dá ao país a chance de desfrutar de protagonismo internacional revisando as ‘regras do jogo’. ‘Brazil is back’ e ‘o Brasil tem ambições globais’ são as duas mensagens centrais desse discurso.”