HARIDWAR, Índia - O policial chegou ao templo hindu em Haridwar com um aviso aos monges: não repitam seu discurso de ódio. Dez dias antes, diante de uma plateia lotada e milhares de pessoas assistindo on-line, os monges incitaram violência contra a minoria muçulmana do país.
Os discursos dos monges, em uma das cidades mais sagradas da Índia, visavam estimular uma campanha genocida para “matar dois milhões deles” e uma limpeza étnica similar à que foi inflingida contra os muçulmanos rohingyas em Mianmar.
Quando os vídeos do evento provocaram indignação nacional, a polícia veio. Os pregadores questionaram se o oficial poderia ser mais objetivo.
Yati Narsinghanand, o organizador do evento conhecido por sua retórica violenta, tratou de acalmá-lo. “Preconceituoso?”, disse Narsinghanand, de acordo com um vídeo da interação. “Ele estará do nosso lado”, acrescentou, enquanto os monges e o oficial caíam na gargalhada.
Antes considerados marginais, elementos extremistas estão cada vez mais popularizando sua mensagem militante, incitando o ódio em um esforço para transformar a república secular constitucionalmente protegida da Índia em um estado hindu.
Ativistas e analistas dizem que sua agenda está sendo permitida, até mesmo normalizada, por líderes políticos e policiais que oferecem endossos tácitos por não abordarem diretamente essas questões divisivas.
Depois de viralizar a convocação dos monges às armas, o primeiro-ministro Narendra Modi e seus principais líderes permaneceram em silêncio, exceto por um vice-presidente com um papel amplamente cerimonial que alertou que “incitar as pessoas umas contra as outras é um crime contra a nação”.
“Há pessoas proferindo discursos de ódio, na verdade incitando o genocídio de um grupo inteiro, e encontramos relutância das autoridades em prender essas pessoas”, disse Rohinton Fali Nariman, um juiz recém-aposentado da Suprema Corte indiana, em uma palestra pública. “Infelizmente, os outros escalões mais altos do partido no poder não estão apenas silenciando sobre o discurso de ódio, mas quase o endossando.”
Narsinghanand foi preso mais tarde depois de ignorar o aviso da polícia e fazer repetidos apelos à violência. Seu advogado, Uttam Singh Chauhan, disse que seus discursos podem ter sido uma reação aos comentários anti-hindus de clérigos muçulmanos. O partido governante, Bharatiya Janata, não respondeu aos pedidos de comentários.
“O primeiro-ministro ou o ministro do Interior precisam abordar todas as questões pequenas e triviais?”, indagou Vinod Bansal, porta-voz do Conselho Mundial Hindu. “Os acusados já foram presos. Os grupos seculares sempre destacarão tais incidentes, mas não quando hindus, deuses e deusas hindus estão sob ataque.”
O discurso de ódio está alimentando tensões comunitárias em um país onde pequenos gatilhos incitaram tragédias com mortes em massa. A agenda dos monges já ressoa com grupos vigilantes cada vez mais encorajados.
Alguns deles já espancaram pessoas acusadas de desrespeitar as vacas, consideradas sagradas por alguns hindus; arrastaram casais para fora de trens, cafés e casas sob a suspeita de que mulheres hindus pudessem ser seduzidas por muçulmanos; e invadiram supostas reuniões de conversão religiosa.
Nas últimas semanas, organizações de direitos humanos e ativistas locais, bem como chefes de segurança aposentados da Índia, alertaram que a retórica violenta atingiu um tom perigoso.
Com as mensagens de direita se espalhando rapidamente pelas mídias sociais e o governo hesitante em agir, há preocupação de que um evento singular - uma disputa local ou um ataque de grupos terroristas internacionais como a Al-Qaeda ou o grupo Estado Islâmico - leve a uma violência generalizada difícil de conter.
Guerra religiosa
O templo Dasna Devi, no estado de Uttar Pradesh, onde Narsinghanand é o principal sacerdote, é cheio de sinais que pedem a preparação para um “dharm yudh”, ou guerra religiosa. Um pede aos “hindus, meus leões” que valorizem suas armas “da mesma forma que esposas dedicadas valorizam seus maridos”. A placa principal do templo proíbe a entrada de muçulmanos.
A raiva dos monges se fundamenta em um sentimento de vitimização que data da fundação da república da Índia após a independência do domínio britânico, em 1947. Quando o Paquistão foi arrancado da Índia em uma divisão sangrenta que deixou centenas de milhares de mortos, a direita hindu ficou furiosa porque o que restava da Índia estava se transformando em uma república secular.
Eles celebram o assassinato de Mahatma Gandhi por um hindu linha-dura -e as forças que moldaram a ideologia do assassino de Gandhi, Nathuram Godse, emergiram lentamente das sombras para dominar a política da Índia.
Modi, o primeiro-ministro, passou décadas como mobilizador da Rashtriya Swayamsevak Sangh, organização centenária de direita vinculada a Godse. O partido de Modi vê o grupo como a fonte de sua ideologia política, amparando-se fortemente em sua vasta rede de voluntários para mobilizar eleitores e garantir vitórias.
Quando era ministro-chefe de Gujarat, Modi viu em primeira mão como as tensões comunais descontroladas poderiam se transformar em derramamento de sangue.
Em 2002, um incêndio em um trem matou 59 peregrinos hindus. Embora a causa do incidente seja desconhecida, multidões violentas, em resposta, atacaram a comunidade muçulmana, deixando mais de mil mortos, muitos queimados vivos.
Organizações de direitos humanos e líderes da oposição acusaram Modi de fazer vista grossa. Ele classificou as alegações como ataques políticos.
Depois que ele chegou ao cargo mais alto do país, em 2014, com uma mensagem de crescimento econômico, havia esperança de que Modi pudesse conter a fúria. Em vez disso, ele muitas vezes voltou a uma agenda hindu que inflama as divisões.
Piqueniques
A escolha de Haridwar como local para um ousado apelo à violência foi estratégica: a cidade atrai milhões de visitantes anualmente, muitas vezes para festivais religiosos e peregrinações.
A margem do rio esteve recentemente ocupada com videntes e adoradores. As famílias faziam piquenique e mergulhavam na água gelada. Mesmo que algumas autoridades religiosas parecessem incomodadas com os apelos à violência, relutavam em condená-las.
Pradeep Jha, o principal organizador do maior festival de peregrinação da cidade, disse que compartilha a visão de um estado hindu, não por meio da violência, mas pedindo aos muçulmanos da Índia que se convertam; nessa visão, todos na Índia foram hindus em algum momento. “Acredito que precisamos perseguir nossos objetivos com paciência, com paz”, disse.
Narsinghanand fez seu nome fazendo exatamente o oposto. Na sua opinião, os muçulmanos da Índia - que representam 15% da população - transformarão o país em um estado muçulmano dentro de uma década. Para evitar tal resultado, ele disse aos seguidores que devem “estar dispostos a morrer”, apontando o grupo Taleban como um “modelo”.
Em 2020, Narsinghanand estava no grupo linha-dura que alimentava as tensões durante protestos contra uma emenda de cidadania vista como discriminatória em relação aos muçulmanos.
Ele pediu violência, usando a linguagem de uma “batalha final”. “Eles são jihadistas, e teremos de acabar com eles”, disse. Motins se seguiram em Nova Délhi, com 50 pessoas mortas, a maioria muçulmanas.
Apesar do aviso da polícia, Narsinghanand e seus companheiros monges repetiram suas mensagens de ódio, inclusive na televisão nacional e nas mídias sociais. “Esta Constituição será o fim dos hindus, todo o 1 bilhão de hindus”, disse Narsinghanand em um evento virtual. “Quem acredita neste sistema, neste Supremo Tribunal, nestes políticos, nesta Constituição, neste Exército e polícia morrerá como um cão.”
Quando a polícia chegou para prender um associado, ele ameaçou os policiais, que educadamente pediram que se acalmasse. “Vocês todos vão morrer”, disse Narsinghanand.
A polícia prendeu Narsinghanand em 15 de janeiro, e ele foi acusado no tribunal por discurso de ódio. “Ele não disse nada de errado”, disse Swami Amritanand, organizador do evento Haridwar. “Fazemos o que os Estados Unidos estão fazendo, o que o Reino Unido está fazendo.”
Amritanand disse que o pedido de armas era justificado porque “nos próximos 10 a 12 anos haverá uma guerra horrível na Índia”.