CARACAS — No início do mês, a detenção de Rocío San Miguel, a maior especialista em assuntos militares da Venezuela e diretora da organização Control Ciudadano, propagou ondas de choque pela sociedade civil do país.
Levada sob custódia no aeroporto internacional perto de Caracas e acusada de participar de um complô para dar um golpe contra o presidente Nicolás Maduro, o paradeiro dela foi desconhecido durante dias. Parentes dela também desapareceram, sendo libertados dias depois.
O que torna o caso de Rocío mais preocupante para a sociedade civil da Venezuela é o fato de não se tratar de um caso isolado: em vez disso, parece ser parte de uma repressão mais ampla antes das eleições presidenciais marcadas para este ano. Pouco após a prisão de Rocío, o ministério da informação da Venezuela acusou a Anistia Internacional de ser uma ferramenta do governo americano e expulsou da Venezuela funcionários de agências de defesa dos direitos humanos das Nações Unidas, que criticaram a prisão de Rocío.
Alguns observadores temem que a ditadura tenha em mente medidas que deixariam as condições no país mais parecidas com as da Nicarágua, onde a sociedade civil foi praticamente suprimida.
“O governo é muito impopular e não conta com os mesmos recursos de antes”, disse Marino Alvarado, ex-coordenador da Provea, a mais antiga organização de defesa dos direitos humanos da Venezuela. Ele acrescentou que os partidos políticos da oposição estão enfraquecidos, mas “a sociedade civil organizada [ainda] é uma voz crítica em relação ao governo”. Isso faz dela alvo de repressão.
Em janeiro, a ditadura deteve uma liderança do sindicato dos professores, ligada à oposição, bem como um ativista e quatro coordenadores regionais de um partido da oposição. Enquanto isso, dezenas de locais — endereços de ativistas, escritórios de partidos da oposição e de associações civis — foram vandalizado. Anteriormente, em dezembro, a ditadura perseguiu organizadores das primárias da oposição, incluindo o diretor da ONG eleitoral Súmate, posteriormente libertado em uma troca de prisioneiros com os Estados Unidos.
Todos os sinais apontam para uma repressão generalizada contra a sociedade civil no país, e a ditadura agora pressiona pela aprovação de uma lei que apertaria o controle sobre essas organizações, provavelmente obrigando muitas a fechar as portas.
Atrito com ONGs
Uma proposta de lei apelidada pelos críticos de “Lei de combate à sociedade”, que cancelaria o status jurídico de todas as ONGs e associações civis e as obrigaria a uma refundação a partir do zero dentro de um novo modelo de registro, está sob análise pela legislatura, controlada por Maduro. A proposta de lei é uma dentre muitas que já foram consideradas, mas nunca aprovadas, por medo da reação a elas.
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A proposta, aprovada na primeira apresentação em janeiro de 2023 (é necessária uma segunda aprovação para converter a proposta em lei) e atualmente submetida a um processo de “consulta”, conferiria ao estado maus controle sobre a sociedade civil por meio de uma série de requisitos complexos, como a entrega de uma lista de membros, doadores e bens. O autor da proposta é o deputado Diosdado Cabello, um chavista linha-dura e ex-vice-presidente.
A Venezuela já exige que grupos da sociedade civil sigam uma série de regras de acordo com aproximadamente 40 leis diferentes, de acordo com o grupo Acceso a la Justicia. Mais regras poderiam significar um fardo esmagador, incluindo um requisito para que os grupos informem seus bens, coisa que atualmente apenas autoridades da ditadura são obrigadas a fazer.
“No seu formato atual, a proposta de lei representa um risco para a liberdade de associação”, disse Simón Pestano, diretor da consultoria Fundación S4V, com sede em Caracas, que trabalha com ONGs para melhorar suas capacidades, transparência e gestão.
A lei terá amplo impacto na sociedade civil da Venezuela. De acordo com a National Unit of Financial Intelligence, 9.900 organizações não-governamentais e associações civis operam atualmente no país. Destas, de acordo com o banco de dados da S4V, cerca de 1.000 organizações têm atividade constante.
Para Alí Daniels, diretor da Acceso a la Justicia, a proposta de lei é semelhante a uma lei já existente na Nicarágua, que levou à eliminação de milhares de ONGs, incluindo a Cruz Vermelha da Nicarágua e congregações católicas de caridade. “Mesmo ONGs com afinidade ideológica em relação ao governo [venezuelano] são contrárias à lei porque ela afeta suas operações e implica um aumento nos custos”, disse ele. A medida pode afetar até a guilda empresarial Fedecámaras, antes arqui-inimiga do chavismo, que protagonizou uma aproximação com a ditadura recentemente.
De acordo com Pestano, muitas ONGs seriam incapazes de atender aos requisitos da nova lei, obrigando-as a suspender as atividades, principalmente as organizações menores. De forma semelhante, se atualmente as ONGs venezuelanas precisam apenas notificar o Estado de sua criação, elas passariam a ter que justificar sua existência perante o estado e receber a aprovação deste. “Com isso, o estado poderia ter o poder de decidir a seu critério se a criação dessas organizações é importante ou não”, disse ele.
Lei de combate à solidariedade
A Assembleia Nacional também está mantendo na sua pauta legislativa de 2024 outra proposta, descrita pelas ONGs como “Lei de combate à solidariedade”. Esta nova lei criaria uma agência para regular a “cooperação internacional” e um fundo para receber todas as doações estrangeiras. A agência decidiria a seu critério quais atividades de quais ONGs seriam financiadas.
As organizações não-governamentais têm um papel fundamental na Venezuela, onde muitas das funções do Estado entraram em colapso e os ministérios ocultam informações há anos. Além de oferecerem auxílio humanitário a milhões de venezuelanos na esteira do colapso econômico do país, que já dura uma década, elas também reúnem informações essenciais e monitoram os abusos dos direitos humanos, a violência e a destruição ambiental.
Mas “muitas organizações que têm dificuldade em sobreviver à crise por falta de financiamento agora enfrentarão uma série de requisitos, muitos deles impossíveis de atender, que as tornariam ilegais”, disse Daniels. “Isso vai afetar os venezuelanos beneficiados pela ajuda humanitária. E não estamos falando de uma pequena minoria: é uma população de milhões.”
Nos dois anos mais recentes, a ditadura de Maduro já fechou mais de 100 emissoras de rádio (a maioria delas fora de Caracas) e impôs novos supervisores a organizações que vão do Partido Comunista à Cruz Vermelha — até uma associação de surfistas foi afetada. Se o chavismo permitiu historicamente a autonomia de alguns setores apolíticos ou de oposição, parece que esses espaços estão se reduzindo.
A repressão da ditadura vem ganhando força desde a vitória de María Corina Machado nas primárias da oposição em outubro. Até aquele momento, alguns esperavam uma abertura na política venezuelana, com Maduro aceitando uma série de garantias eleitorais em troca do alívio de grandes sanções americanas ao petróleo, gás e ouro da Venezuela.
Mas a surpreendente alta participação na primária, apesar dos problemas logísticos e da censura em massa, e o fracasso do chavismo em mobilizar suas bases em um referendo realizado em dezembro parecem ter levado o país a mudar de rumo.
“As primárias mostraram que boa parte da oposição estava disposta a se organizar eleitoralmente com sucesso em meio a um contexto autoritário, coordenando-se informalmente”, disse a cientista política venezuelana Stefania Vitale. “Já era esperado” um novo ciclo de repressão por parte da ditadura, buscando introduzir novos cismas na oposição, disse ela. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
* Frangie Mawad é um jornalista freelancer que escreveu de Caracas para a revista Americas Quarterly