THE NEW YORK TIMES - A Ucrânia pagou centenas de milhões de dólares a empresas que não entregaram armas prometidas, e alguns dos equipamentos doados com ampla divulgação por seus aliados estavam tão decrépitos que foram aproveitados apenas para obter peças reservas.
Documentos do governo mostram que, da invasão russa em fevereiro de 2022 até o final do ano passado, o país pagou a fornecedores de armas mais de US$ 800 milhões por contratos não cumpridos ou apenas parcialmente atendidos.
Duas pessoas envolvidas nas compras bélicas da Ucrânia disseram que algumas das armas faltantes acabaram sendo entregues e que, em outros casos, os corretores reembolsaram o dinheiro. Mas, até o final de março, centenas de milhões de dólares foram pagos –inclusive a empresas estatais– por armamentos que nunca se materializaram, segundo um dos consultados.
“Houve casos em que pagamos e não recebemos”, disse Volodimir Havrilov, vice-ministro da Defesa que trabalha na aquisição de armamento, em entrevista recente. Ele disse que este ano o governo começou a analisar suas compras anteriores e a excluir fornecedores problemáticos.
Problemas são inevitáveis num frenesi de aquisição de armas como o da Ucrânia atualmente. Desde o início da guerra, os aliados ocidentais enviaram ao país dezenas de bilhões de dólares em artilharia. Na semana passada, só os Estados Unidos haviam comprometido cerca de US$ 40 bilhões (R$ 191,2 bilhões) em ajuda militar (e mais em assistência financeira e humanitária), enquanto aliados europeus contribuíram com dezenas de bilhões. Além disso, a Ucrânia gastou bilhões de dólares no mercado bélico privado.
Muitas remessas de aliados ocidentais foram de armas modernas, como os sistemas de defesa antiaérea dos EUA, que se mostraram altamente eficazes contra drones e mísseis russos. Em outros casos, porém, os aliados forneceram equipamentos estocados que, na melhor das hipóteses, precisavam de grandes reformas.
A Ucrânia costuma ter até 30% do seu arsenal em reparo –uma taxa alta, segundo especialistas em defesa, para um Exército que precisa de todas as armas que conseguir para sua contraofensiva em andamento.
“Se eu fosse o chefe de um Exército que doou kits para a Ucrânia, ficaria profissionalmente muito envergonhado por entregar coisas em más condições”, disse Ben Barry, especialista em guerra terrestre do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, em Londres.
Um exemplo disso é uma recente remessa de 33 canhões cedidos pelo governo italiano. Vídeos mostraram fumaça saindo do motor de um deles e líquido de resfriamento vazando de outro.
O Ministério da Defesa da Itália disse em comunicado que os veículos foram desativados anos atrás, mas que a Ucrânia aceitou de qualquer maneira “para serem revisados e colocados em operação, dada a necessidade urgente de meios para enfrentar a agressão russa”.
Documentos do governo ucraniano mostram que seu Ministério da Defesa pagou US$ 19,8 milhões (R$ 94,6 milhões) a um fabricante de armas americano, a Ultra Defense Corp., com sede em Tampa, na Flórida, para consertar os 33 canhões. Em janeiro, 13 deles foram enviados para o país em guerra, mas chegaram “inadequados para missões de combate”, conforme um dos registros.
Autoridades em Kiev, a capital, acusaram a Ultra Defense de não terminar um trabalho que deveria estar concluído no final de dezembro. “A empresa americana, ao oferecer seus serviços, não tinha intenção de cumprir suas obrigações”, escreveu em uma carta de 3 de fevereiro o diretor de aquisições de defesa da Ucrânia, Volodimir Pikuzo, ao inspetor-geral do Pentágono.
O presidente-executivo da Ultra Defense, Matthew Herring, negou veementemente a acusação. “Cada um deles funcionava quando os entregamos”, escreveu ele numa mensagem de texto este mês, dizendo que os ucranianos não mantiveram os canhões adequadamente depois da devolução. O vazamento do resfriador “apareceu magicamente” após a entrega, disse o empresário.
O inspetor-geral do Pentágono está investigando o assunto, segundo um oficial de defesa dos EUA e um americano que trabalhou com a Ucrânia na solicitação de armas.
As autoridades ucranianas se abstiveram de reclamar sobre equipamentos quebrados, para não constranger seus benfeitores. “Houve problemas de qualidade em alguns dos canhões, mas temos que lembrar que foi uma doação”, disse Havrilov.
Segundo outro funcionário ucraniano de alto escalão, porém, o governo de Kiev está cansado de ser informado de que há armas ocidentais suficientes quando algumas delas chegam em condições precárias ou inutilizáveis, obrigando os militares a retirá-las do combate para reaproveitar suas peças.
O funcionário, como alguns outros entrevistados, falou sob a condição de anonimato para discutir francamente um assunto delicado de segurança que corre o risco de causar atrito entre aliados. O Ministério da Defesa da Ucrânia se recusou a comentar.
Problemas com o armamento militar são tão antigos quanto a própria Ucrânia pós-soviética, arrastada por décadas entre facções concorrentes com visões diferentes para a indústria de armas do país.
Após a independência da Ucrânia em 1991, o país arrecadou consideráveis quantias vendendo itens de seus extensos estoques de armas da era soviética. O arsenal do país diminuiu, especialmente durante o mandato do presidente Viktor Yanukovych, líder pró-russo da Ucrânia no início dos anos 2010. Nos anos seguintes à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, um acalorado debate eclodiu sobre até que ponto revitalizar sua indústria de armas.
Entretanto, as mudanças foram lentas e, quando a Rússia a invadiu no ano passado, a Ucrânia se viu desesperada por armas e munições. Seus líderes se esforçaram para encontrar armas onde pudessem. Fornecedores, muitos deles não confiáveis, inundaram a Ucrânia com ofertas, disse Havrylov.
Os documentos obtidos pelo jornal The New York Times, gerados por uma auditoria do governo este ano, mostraram que alguns dos contratos descumpridos mais caros são entre o Ministério da Defesa e empresas estatais ucranianas de armas que funcionam como intermediários independentes. Nos últimos meses, a pasta processou pelo menos duas dessas companhias, e a Ucrânia anunciou recentemente reformas destinadas a torná-las mais eficientes.
Também houve problemas de prazo com os equipamentos doados pelo Ocidente —a entrega de alguns deles foi tão imprevisível que prejudicou o planejamento da contraofensiva ucraniana.