'Domínio do Taleban parece ter acontecido rápido, mas foi planejado', diz escritor


Autor de livro recém-lançado sobre o conflito, jornalista Craig Whitlock diz que poder do Taleban era conhecido por líderes políticos e militares dos EUA, que omitiram informações intencionalmente do público

Por Renato Vasconcelos

A tomada de Cabul pelo Taleban neste domingo, 15, ápice do brutal avanço do grupo militante sobre territórios anteriormente dominados pelo governo afegão , em meio a retirada de tropas americanas do país, surpreendeu o mundo pela agilidade e facilidade com que os rebeldes derrotaram as forças de defesa afegãs, treinadas pelos últimos 20 anos por militares dos Estados Unidos e de seus aliados da Otan.

Apesar disso, a superioridade do grupo fundamentalista que governou o país até a invasão dos aliados, em 2001, não chegou a ser uma grande surpresa para as autoridades americanas, segundo o jornalista Craig Whitlock.

Autor do recém-lançado 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War' (ainda sem versão em português), Whitlock conversou com o Estadão na última sexta-feira, 13, e afirmou que o poder bélico do Taleban, bem como o despreparo das forças afegãs, eram de conhecimento dos EUA e seus aliados da Otan, e que a estrutura criada no país nos últimos 20 anos era insustentável no longo prazo.

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Soldados do Taleban durante patrulha na cidade de Kandahar; rebeldes tomaram a capital do país, Cabul, neste domingo, 15. Foto: AP Photo/Sidiqullah Khan

Confira a entrevista na íntegra:

Vimos um avanço impressionante do Taleban sobre áreas até então controladas pelo governo durante a semana. Como os rebeldes conseguiram organizar essa ofensiva tão rápido contra as forças afegãs, que por tanto tempo receberam recursos e treinamento dos EUA?

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Duas respostas rápidas para isso são que o Taleban é mais forte e mais inteligente do que nós pensávamos e se prepararam para este momento, e que as forças de defesa do Afeganistão são muito piores do que as pessoas sabiam.

Os EUA sabiam que o Taleban teria vantagens, mas nem por um momento imaginaram que o Exército e a polícia entregariam as armas e se renderiam tão rápido, quase sem oferecer resistência.O governo americano e seus aliados gastaram bilhões de dólares criando um Exército de mentira - no papel, devem haver 350 mil homens entre militares e polícia, mas na realidade há, talvez, metade disso.

Ao mesmo tempo, é evidente que o Taleban planejou este momento. O acordo para retirada das tropas americanas foi feito na administração Trump, e o grupo sabia que este dia estava chegando. Quando os americanos finalmente começaram a retirada, por volta de julho, eles aproveitaram o momento.

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Eles posicionaram seus homens ao redor de cidades-alvo, escolhendo cuidadosamente cidades fronteiriças primeiro, controlando tanto o comércio quanto o que entra e sai do país, e claramente já haviam feito planos para persuadir oficiais afegãos a mudarem de lado. O domínio do Taleban parece ter acontecido muito rápido, mas eles se planejaram para isso. É exatamente o desfecho que eles queriam. Não foi da noite para o dia.

No livro, você conta que os presidentes americanos do período e seus oficiais militares distorceram a verdade sobre a guerra para o público geral. O que o levou a essa afirmação?

Infelizmente há uma distância muito grande entre o que os líderes americanos disseram em público ao longo dos anos e a verdade. Nós obtivemos uma série de documentos públicos contendo depoimentos de uma série de autoridades, no qual elas admitiam que o que era dito em público era muito diferente do que era discutido internamente. Ao mesmo tempo em que os generais iam a público dizer que estavam vencendo a guerra, em mesas diplomáticas ou encontros reservados, eles diziam exatamente o oposto.

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Presidentes disseram estar colaborando com o treinamento e equipamento das forças de segurança afegãs, que elas estavam evoluindo, mas o que o livro mostra é que os militares americanos responsáveis pelo treinamento sabiam que os recrutas afegãos eram horríveis: não sabiam ler, não sabiam contar, desertavam o tempo todo, não tinham motivação, não recebiam bem e seus comandantes os agrediam brutalmente. E isso aconteceu nos governos Bush, Obama e Trump.

E qual a diferença entre os governos de George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump no quesito desinformação? Como podemos diferenciá-los neste aspecto?

Eu diria que há mais semelhanças do que diferenças entre eles. Nenhum líder quer admitir que está perdendo uma guerra. É algo embaraçoso e que pode tirá-lo do cargo, principalmente nos EUA, que supostamente têm as Forças Armadas mais poderosas do mundo. Como admitir que você está sendo derrotado por um adversário inferior como o Taleban?

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Ninguém estava disposto a admitir que o plano não estava dando certo. Então todos eles - Bush, Obama e Trump - continuaram a dizer que estavam fazendo progresso, mesmo que isso não correspondesse à verdade.

Biden finalmente iniciou a retirada - coisa que Trump queria fazer - e agora vê o país colapsando. O que Biden está passando é o que os outros três temiam passar. Por isso mantiveram a narrativa, apesar de não ser a verdade.

No começo, a guerra teve um apoio popular muito grande, após o 11 de setembro. Qual foi o momento da virada em que isso mudou?

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Eu acho que isso aconteceu gradualmente, a partir do governo Obama. Em 2014, houve uma cerimônia da Otan em Cabul, na qual Obama e seus generais declararam o fim da guerra - disseram que os combates haviam cessado e que tudo estava chegando ao fim.

Apesar dos discursos, o que houve foi uma espécie de ilusionismo. Enquanto diziam que a guerra acabou, mantinham as tropas no país. Neste ponto, percebemos que as pessoas cansaram de tudo.

Mas o que fez a guerra continuar por tanto tempo?

A primeira razão é a inércia. Era uma situação que já ocorria há tanto tempo que era necessário mais força para parar a guerra do que para mantê-la.

E ninguém quis admitir que estava errado. Ninguém queria assumir a responsabilidade. Não só os presidentes, mas também os oficiais militares e os representantes do Congresso, que apoiaram tudo irrestritamente.

Hoje, nos EUA, as pessoas querem saber o que deu errado e querem ter alguém a quem culpar. É isso que todos os líderes durante esses anos viram que iria acontecer, e preferiram não ser honestos com o público.

O jornalista Craig Whitlock, autor de 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War'. Foto: Divulgação

Qual a pressão sobre Biden neste momento em que a retirada das tropas já começou - tendo sido negociada no governo anterior, de Trump - em meio ao ressurgimento do Taleban? Qual consequência no âmbito interno terá a decisão de trazer as tropas de volta e permitir a volta dos rebeldes?

Não está claro o preço político que Joe Biden terá que pagar. As informações e as imagens que estão chegando do Afeganistão são terríveis, dos pontos de vista humano e político. Ao mesmo tempo, temos que considerar que a maioria dos americanos quer a saída das tropas do Afeganistão.

Há contestação sobre o plano de retirada liderado por Biden e menções de que ele poderia ter planejado uma maneira melhor, mas a ironia aqui é que tanto ele quanto Trump - duas figuras politicamente opostas - pensaram o assunto da mesma maneira, com a ideia de trazer as tropas de volta a todo custo.

O acordo negociado por Trump sequer foi bom. Basicamente ele disse que retiraria os militares, desde que o Taleban não os atingisse em sua saída - e a ironia é que as duas partes estão fazendo exatamente isso. Caso tivesse sido reeleito, ele teria feito o mesmo.

Qual era o cenário no Afeganistão em 2001 e qual o cenário no país agora? O que mudou após 20 anos de presença militar americana no país?

O cenário de 2001 tem diferenças óbvias de hoje, mas também guarda algumas semelhanças.Quase como o oposto do que está acontecendo agora, o Taleban começou a perder o controle. Em questão de dias [entre novembro e dezembro de 2001], os EUA e seus aliados tomaram uma série de cidades importantes, enquanto o Taleban recolheu suas armas e voltou para redutos ou atravessou a fronteira com o Paquistão.

Quando a poeira baixou, o grupo tinha ido embora e o que restou foi um arremedo de país, com condições deploráveis: faltava energia elétrica e comida e não existia governo. Foi nessas condições que os aliados tentaram preencher aquele vazio o mais rápido possível.

Os aliados gastaram bilhões de dólares na tentativa de construir o Afeganistão: criar uma democracia, garantir o cumprimento de Direitos Humanos, garantir educação… De alguma forma, esses objetivos foram alcançados e os níveis educacionais e econômicos melhoraram consideravelmente. A dúvida é se isso será jogado fora com o retorno do Taleban.

Podemos dizer que a presença dos EUA e seus aliados no Afeganistão por um período tão longo fragilizou as instituições, que não conseguem fazer seu trabalho sozinho?

Eu acho que uma das conclusões apresentadas no meu livro é que [a intervenção prolongada] não tinha como dar certo. Se sabia há 10 ou 15 anos que essa estratégia não iria funcionar. Que o governo afegão é excessivamente corrupto e que as forças de defesa são incompetentes. Em resumo, que não tinha como durar no longo prazo.

Mas há um exercício de imaginação que podemos fazer: Obama prometeu uma retirada total das tropas do Afeganistão em 2016. Ainda assim, ele permaneceu por temer que o governo afegão poderia colapsar. Eu acredito que se ele tivesse retirado as tropas naquele momento - quando o governo era mais forte em relação ao Taleban do que agora - as chances de continuidade seriam melhores.

Você faz parte da cobertura sobre o tema no The Washington Post. O que os repórteres em solo têm relatado sobre a situação no país?

É um cenário pessimista. O Taleban tem trabalhado sua imagem pública, mas a realidade “no front” ainda é de um movimento muito brutal e fundamentalista - particularmente com as mulheres. Eles têm uma visão muito ultrapassada sobre religião e sociedade.

Em termos de Direitos Humanos [uma volta do Taleban ao poder] vai ser um desastre. Há um temor principalmente em Cabul e outras cidades, porque a sociedade se modernizou. Vai haver um choque entre essa visão moderna e os preceitos do Taleban - que ainda adota práticas como cortar as mãos de pessoas como punição e proíbe mulheres de sair de casa e estudar.

Considerando o cenário de hoje, é certo dizer que os EUA perderam a guerra?

Sim, mas depende um pouco do que se considera como o objetivo americano. Se o objetivo era apenas derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, eles fizeram isso há muito tempo, por volta de 2002. Nessa perspectiva limitada, vencemos a guerra.

Mas se considerarmos que o objetivo é maior, com tudo que foi feito para transformar o Afeganistão em uma democracia funcional e impedir que o Taleban voltasse a tomar o controle do país, então os Estados Unidos perderam.

A tomada de Cabul pelo Taleban neste domingo, 15, ápice do brutal avanço do grupo militante sobre territórios anteriormente dominados pelo governo afegão , em meio a retirada de tropas americanas do país, surpreendeu o mundo pela agilidade e facilidade com que os rebeldes derrotaram as forças de defesa afegãs, treinadas pelos últimos 20 anos por militares dos Estados Unidos e de seus aliados da Otan.

Apesar disso, a superioridade do grupo fundamentalista que governou o país até a invasão dos aliados, em 2001, não chegou a ser uma grande surpresa para as autoridades americanas, segundo o jornalista Craig Whitlock.

Autor do recém-lançado 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War' (ainda sem versão em português), Whitlock conversou com o Estadão na última sexta-feira, 13, e afirmou que o poder bélico do Taleban, bem como o despreparo das forças afegãs, eram de conhecimento dos EUA e seus aliados da Otan, e que a estrutura criada no país nos últimos 20 anos era insustentável no longo prazo.

Soldados do Taleban durante patrulha na cidade de Kandahar; rebeldes tomaram a capital do país, Cabul, neste domingo, 15. Foto: AP Photo/Sidiqullah Khan

Confira a entrevista na íntegra:

Vimos um avanço impressionante do Taleban sobre áreas até então controladas pelo governo durante a semana. Como os rebeldes conseguiram organizar essa ofensiva tão rápido contra as forças afegãs, que por tanto tempo receberam recursos e treinamento dos EUA?

Duas respostas rápidas para isso são que o Taleban é mais forte e mais inteligente do que nós pensávamos e se prepararam para este momento, e que as forças de defesa do Afeganistão são muito piores do que as pessoas sabiam.

Os EUA sabiam que o Taleban teria vantagens, mas nem por um momento imaginaram que o Exército e a polícia entregariam as armas e se renderiam tão rápido, quase sem oferecer resistência.O governo americano e seus aliados gastaram bilhões de dólares criando um Exército de mentira - no papel, devem haver 350 mil homens entre militares e polícia, mas na realidade há, talvez, metade disso.

Ao mesmo tempo, é evidente que o Taleban planejou este momento. O acordo para retirada das tropas americanas foi feito na administração Trump, e o grupo sabia que este dia estava chegando. Quando os americanos finalmente começaram a retirada, por volta de julho, eles aproveitaram o momento.

Eles posicionaram seus homens ao redor de cidades-alvo, escolhendo cuidadosamente cidades fronteiriças primeiro, controlando tanto o comércio quanto o que entra e sai do país, e claramente já haviam feito planos para persuadir oficiais afegãos a mudarem de lado. O domínio do Taleban parece ter acontecido muito rápido, mas eles se planejaram para isso. É exatamente o desfecho que eles queriam. Não foi da noite para o dia.

No livro, você conta que os presidentes americanos do período e seus oficiais militares distorceram a verdade sobre a guerra para o público geral. O que o levou a essa afirmação?

Infelizmente há uma distância muito grande entre o que os líderes americanos disseram em público ao longo dos anos e a verdade. Nós obtivemos uma série de documentos públicos contendo depoimentos de uma série de autoridades, no qual elas admitiam que o que era dito em público era muito diferente do que era discutido internamente. Ao mesmo tempo em que os generais iam a público dizer que estavam vencendo a guerra, em mesas diplomáticas ou encontros reservados, eles diziam exatamente o oposto.

Presidentes disseram estar colaborando com o treinamento e equipamento das forças de segurança afegãs, que elas estavam evoluindo, mas o que o livro mostra é que os militares americanos responsáveis pelo treinamento sabiam que os recrutas afegãos eram horríveis: não sabiam ler, não sabiam contar, desertavam o tempo todo, não tinham motivação, não recebiam bem e seus comandantes os agrediam brutalmente. E isso aconteceu nos governos Bush, Obama e Trump.

E qual a diferença entre os governos de George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump no quesito desinformação? Como podemos diferenciá-los neste aspecto?

Eu diria que há mais semelhanças do que diferenças entre eles. Nenhum líder quer admitir que está perdendo uma guerra. É algo embaraçoso e que pode tirá-lo do cargo, principalmente nos EUA, que supostamente têm as Forças Armadas mais poderosas do mundo. Como admitir que você está sendo derrotado por um adversário inferior como o Taleban?

Ninguém estava disposto a admitir que o plano não estava dando certo. Então todos eles - Bush, Obama e Trump - continuaram a dizer que estavam fazendo progresso, mesmo que isso não correspondesse à verdade.

Biden finalmente iniciou a retirada - coisa que Trump queria fazer - e agora vê o país colapsando. O que Biden está passando é o que os outros três temiam passar. Por isso mantiveram a narrativa, apesar de não ser a verdade.

No começo, a guerra teve um apoio popular muito grande, após o 11 de setembro. Qual foi o momento da virada em que isso mudou?

Eu acho que isso aconteceu gradualmente, a partir do governo Obama. Em 2014, houve uma cerimônia da Otan em Cabul, na qual Obama e seus generais declararam o fim da guerra - disseram que os combates haviam cessado e que tudo estava chegando ao fim.

Apesar dos discursos, o que houve foi uma espécie de ilusionismo. Enquanto diziam que a guerra acabou, mantinham as tropas no país. Neste ponto, percebemos que as pessoas cansaram de tudo.

Mas o que fez a guerra continuar por tanto tempo?

A primeira razão é a inércia. Era uma situação que já ocorria há tanto tempo que era necessário mais força para parar a guerra do que para mantê-la.

E ninguém quis admitir que estava errado. Ninguém queria assumir a responsabilidade. Não só os presidentes, mas também os oficiais militares e os representantes do Congresso, que apoiaram tudo irrestritamente.

Hoje, nos EUA, as pessoas querem saber o que deu errado e querem ter alguém a quem culpar. É isso que todos os líderes durante esses anos viram que iria acontecer, e preferiram não ser honestos com o público.

O jornalista Craig Whitlock, autor de 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War'. Foto: Divulgação

Qual a pressão sobre Biden neste momento em que a retirada das tropas já começou - tendo sido negociada no governo anterior, de Trump - em meio ao ressurgimento do Taleban? Qual consequência no âmbito interno terá a decisão de trazer as tropas de volta e permitir a volta dos rebeldes?

Não está claro o preço político que Joe Biden terá que pagar. As informações e as imagens que estão chegando do Afeganistão são terríveis, dos pontos de vista humano e político. Ao mesmo tempo, temos que considerar que a maioria dos americanos quer a saída das tropas do Afeganistão.

Há contestação sobre o plano de retirada liderado por Biden e menções de que ele poderia ter planejado uma maneira melhor, mas a ironia aqui é que tanto ele quanto Trump - duas figuras politicamente opostas - pensaram o assunto da mesma maneira, com a ideia de trazer as tropas de volta a todo custo.

O acordo negociado por Trump sequer foi bom. Basicamente ele disse que retiraria os militares, desde que o Taleban não os atingisse em sua saída - e a ironia é que as duas partes estão fazendo exatamente isso. Caso tivesse sido reeleito, ele teria feito o mesmo.

Qual era o cenário no Afeganistão em 2001 e qual o cenário no país agora? O que mudou após 20 anos de presença militar americana no país?

O cenário de 2001 tem diferenças óbvias de hoje, mas também guarda algumas semelhanças.Quase como o oposto do que está acontecendo agora, o Taleban começou a perder o controle. Em questão de dias [entre novembro e dezembro de 2001], os EUA e seus aliados tomaram uma série de cidades importantes, enquanto o Taleban recolheu suas armas e voltou para redutos ou atravessou a fronteira com o Paquistão.

Quando a poeira baixou, o grupo tinha ido embora e o que restou foi um arremedo de país, com condições deploráveis: faltava energia elétrica e comida e não existia governo. Foi nessas condições que os aliados tentaram preencher aquele vazio o mais rápido possível.

Os aliados gastaram bilhões de dólares na tentativa de construir o Afeganistão: criar uma democracia, garantir o cumprimento de Direitos Humanos, garantir educação… De alguma forma, esses objetivos foram alcançados e os níveis educacionais e econômicos melhoraram consideravelmente. A dúvida é se isso será jogado fora com o retorno do Taleban.

Podemos dizer que a presença dos EUA e seus aliados no Afeganistão por um período tão longo fragilizou as instituições, que não conseguem fazer seu trabalho sozinho?

Eu acho que uma das conclusões apresentadas no meu livro é que [a intervenção prolongada] não tinha como dar certo. Se sabia há 10 ou 15 anos que essa estratégia não iria funcionar. Que o governo afegão é excessivamente corrupto e que as forças de defesa são incompetentes. Em resumo, que não tinha como durar no longo prazo.

Mas há um exercício de imaginação que podemos fazer: Obama prometeu uma retirada total das tropas do Afeganistão em 2016. Ainda assim, ele permaneceu por temer que o governo afegão poderia colapsar. Eu acredito que se ele tivesse retirado as tropas naquele momento - quando o governo era mais forte em relação ao Taleban do que agora - as chances de continuidade seriam melhores.

Você faz parte da cobertura sobre o tema no The Washington Post. O que os repórteres em solo têm relatado sobre a situação no país?

É um cenário pessimista. O Taleban tem trabalhado sua imagem pública, mas a realidade “no front” ainda é de um movimento muito brutal e fundamentalista - particularmente com as mulheres. Eles têm uma visão muito ultrapassada sobre religião e sociedade.

Em termos de Direitos Humanos [uma volta do Taleban ao poder] vai ser um desastre. Há um temor principalmente em Cabul e outras cidades, porque a sociedade se modernizou. Vai haver um choque entre essa visão moderna e os preceitos do Taleban - que ainda adota práticas como cortar as mãos de pessoas como punição e proíbe mulheres de sair de casa e estudar.

Considerando o cenário de hoje, é certo dizer que os EUA perderam a guerra?

Sim, mas depende um pouco do que se considera como o objetivo americano. Se o objetivo era apenas derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, eles fizeram isso há muito tempo, por volta de 2002. Nessa perspectiva limitada, vencemos a guerra.

Mas se considerarmos que o objetivo é maior, com tudo que foi feito para transformar o Afeganistão em uma democracia funcional e impedir que o Taleban voltasse a tomar o controle do país, então os Estados Unidos perderam.

A tomada de Cabul pelo Taleban neste domingo, 15, ápice do brutal avanço do grupo militante sobre territórios anteriormente dominados pelo governo afegão , em meio a retirada de tropas americanas do país, surpreendeu o mundo pela agilidade e facilidade com que os rebeldes derrotaram as forças de defesa afegãs, treinadas pelos últimos 20 anos por militares dos Estados Unidos e de seus aliados da Otan.

Apesar disso, a superioridade do grupo fundamentalista que governou o país até a invasão dos aliados, em 2001, não chegou a ser uma grande surpresa para as autoridades americanas, segundo o jornalista Craig Whitlock.

Autor do recém-lançado 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War' (ainda sem versão em português), Whitlock conversou com o Estadão na última sexta-feira, 13, e afirmou que o poder bélico do Taleban, bem como o despreparo das forças afegãs, eram de conhecimento dos EUA e seus aliados da Otan, e que a estrutura criada no país nos últimos 20 anos era insustentável no longo prazo.

Soldados do Taleban durante patrulha na cidade de Kandahar; rebeldes tomaram a capital do país, Cabul, neste domingo, 15. Foto: AP Photo/Sidiqullah Khan

Confira a entrevista na íntegra:

Vimos um avanço impressionante do Taleban sobre áreas até então controladas pelo governo durante a semana. Como os rebeldes conseguiram organizar essa ofensiva tão rápido contra as forças afegãs, que por tanto tempo receberam recursos e treinamento dos EUA?

Duas respostas rápidas para isso são que o Taleban é mais forte e mais inteligente do que nós pensávamos e se prepararam para este momento, e que as forças de defesa do Afeganistão são muito piores do que as pessoas sabiam.

Os EUA sabiam que o Taleban teria vantagens, mas nem por um momento imaginaram que o Exército e a polícia entregariam as armas e se renderiam tão rápido, quase sem oferecer resistência.O governo americano e seus aliados gastaram bilhões de dólares criando um Exército de mentira - no papel, devem haver 350 mil homens entre militares e polícia, mas na realidade há, talvez, metade disso.

Ao mesmo tempo, é evidente que o Taleban planejou este momento. O acordo para retirada das tropas americanas foi feito na administração Trump, e o grupo sabia que este dia estava chegando. Quando os americanos finalmente começaram a retirada, por volta de julho, eles aproveitaram o momento.

Eles posicionaram seus homens ao redor de cidades-alvo, escolhendo cuidadosamente cidades fronteiriças primeiro, controlando tanto o comércio quanto o que entra e sai do país, e claramente já haviam feito planos para persuadir oficiais afegãos a mudarem de lado. O domínio do Taleban parece ter acontecido muito rápido, mas eles se planejaram para isso. É exatamente o desfecho que eles queriam. Não foi da noite para o dia.

No livro, você conta que os presidentes americanos do período e seus oficiais militares distorceram a verdade sobre a guerra para o público geral. O que o levou a essa afirmação?

Infelizmente há uma distância muito grande entre o que os líderes americanos disseram em público ao longo dos anos e a verdade. Nós obtivemos uma série de documentos públicos contendo depoimentos de uma série de autoridades, no qual elas admitiam que o que era dito em público era muito diferente do que era discutido internamente. Ao mesmo tempo em que os generais iam a público dizer que estavam vencendo a guerra, em mesas diplomáticas ou encontros reservados, eles diziam exatamente o oposto.

Presidentes disseram estar colaborando com o treinamento e equipamento das forças de segurança afegãs, que elas estavam evoluindo, mas o que o livro mostra é que os militares americanos responsáveis pelo treinamento sabiam que os recrutas afegãos eram horríveis: não sabiam ler, não sabiam contar, desertavam o tempo todo, não tinham motivação, não recebiam bem e seus comandantes os agrediam brutalmente. E isso aconteceu nos governos Bush, Obama e Trump.

E qual a diferença entre os governos de George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump no quesito desinformação? Como podemos diferenciá-los neste aspecto?

Eu diria que há mais semelhanças do que diferenças entre eles. Nenhum líder quer admitir que está perdendo uma guerra. É algo embaraçoso e que pode tirá-lo do cargo, principalmente nos EUA, que supostamente têm as Forças Armadas mais poderosas do mundo. Como admitir que você está sendo derrotado por um adversário inferior como o Taleban?

Ninguém estava disposto a admitir que o plano não estava dando certo. Então todos eles - Bush, Obama e Trump - continuaram a dizer que estavam fazendo progresso, mesmo que isso não correspondesse à verdade.

Biden finalmente iniciou a retirada - coisa que Trump queria fazer - e agora vê o país colapsando. O que Biden está passando é o que os outros três temiam passar. Por isso mantiveram a narrativa, apesar de não ser a verdade.

No começo, a guerra teve um apoio popular muito grande, após o 11 de setembro. Qual foi o momento da virada em que isso mudou?

Eu acho que isso aconteceu gradualmente, a partir do governo Obama. Em 2014, houve uma cerimônia da Otan em Cabul, na qual Obama e seus generais declararam o fim da guerra - disseram que os combates haviam cessado e que tudo estava chegando ao fim.

Apesar dos discursos, o que houve foi uma espécie de ilusionismo. Enquanto diziam que a guerra acabou, mantinham as tropas no país. Neste ponto, percebemos que as pessoas cansaram de tudo.

Mas o que fez a guerra continuar por tanto tempo?

A primeira razão é a inércia. Era uma situação que já ocorria há tanto tempo que era necessário mais força para parar a guerra do que para mantê-la.

E ninguém quis admitir que estava errado. Ninguém queria assumir a responsabilidade. Não só os presidentes, mas também os oficiais militares e os representantes do Congresso, que apoiaram tudo irrestritamente.

Hoje, nos EUA, as pessoas querem saber o que deu errado e querem ter alguém a quem culpar. É isso que todos os líderes durante esses anos viram que iria acontecer, e preferiram não ser honestos com o público.

O jornalista Craig Whitlock, autor de 'The Afghanistan Papers: A Secret History of the War'. Foto: Divulgação

Qual a pressão sobre Biden neste momento em que a retirada das tropas já começou - tendo sido negociada no governo anterior, de Trump - em meio ao ressurgimento do Taleban? Qual consequência no âmbito interno terá a decisão de trazer as tropas de volta e permitir a volta dos rebeldes?

Não está claro o preço político que Joe Biden terá que pagar. As informações e as imagens que estão chegando do Afeganistão são terríveis, dos pontos de vista humano e político. Ao mesmo tempo, temos que considerar que a maioria dos americanos quer a saída das tropas do Afeganistão.

Há contestação sobre o plano de retirada liderado por Biden e menções de que ele poderia ter planejado uma maneira melhor, mas a ironia aqui é que tanto ele quanto Trump - duas figuras politicamente opostas - pensaram o assunto da mesma maneira, com a ideia de trazer as tropas de volta a todo custo.

O acordo negociado por Trump sequer foi bom. Basicamente ele disse que retiraria os militares, desde que o Taleban não os atingisse em sua saída - e a ironia é que as duas partes estão fazendo exatamente isso. Caso tivesse sido reeleito, ele teria feito o mesmo.

Qual era o cenário no Afeganistão em 2001 e qual o cenário no país agora? O que mudou após 20 anos de presença militar americana no país?

O cenário de 2001 tem diferenças óbvias de hoje, mas também guarda algumas semelhanças.Quase como o oposto do que está acontecendo agora, o Taleban começou a perder o controle. Em questão de dias [entre novembro e dezembro de 2001], os EUA e seus aliados tomaram uma série de cidades importantes, enquanto o Taleban recolheu suas armas e voltou para redutos ou atravessou a fronteira com o Paquistão.

Quando a poeira baixou, o grupo tinha ido embora e o que restou foi um arremedo de país, com condições deploráveis: faltava energia elétrica e comida e não existia governo. Foi nessas condições que os aliados tentaram preencher aquele vazio o mais rápido possível.

Os aliados gastaram bilhões de dólares na tentativa de construir o Afeganistão: criar uma democracia, garantir o cumprimento de Direitos Humanos, garantir educação… De alguma forma, esses objetivos foram alcançados e os níveis educacionais e econômicos melhoraram consideravelmente. A dúvida é se isso será jogado fora com o retorno do Taleban.

Podemos dizer que a presença dos EUA e seus aliados no Afeganistão por um período tão longo fragilizou as instituições, que não conseguem fazer seu trabalho sozinho?

Eu acho que uma das conclusões apresentadas no meu livro é que [a intervenção prolongada] não tinha como dar certo. Se sabia há 10 ou 15 anos que essa estratégia não iria funcionar. Que o governo afegão é excessivamente corrupto e que as forças de defesa são incompetentes. Em resumo, que não tinha como durar no longo prazo.

Mas há um exercício de imaginação que podemos fazer: Obama prometeu uma retirada total das tropas do Afeganistão em 2016. Ainda assim, ele permaneceu por temer que o governo afegão poderia colapsar. Eu acredito que se ele tivesse retirado as tropas naquele momento - quando o governo era mais forte em relação ao Taleban do que agora - as chances de continuidade seriam melhores.

Você faz parte da cobertura sobre o tema no The Washington Post. O que os repórteres em solo têm relatado sobre a situação no país?

É um cenário pessimista. O Taleban tem trabalhado sua imagem pública, mas a realidade “no front” ainda é de um movimento muito brutal e fundamentalista - particularmente com as mulheres. Eles têm uma visão muito ultrapassada sobre religião e sociedade.

Em termos de Direitos Humanos [uma volta do Taleban ao poder] vai ser um desastre. Há um temor principalmente em Cabul e outras cidades, porque a sociedade se modernizou. Vai haver um choque entre essa visão moderna e os preceitos do Taleban - que ainda adota práticas como cortar as mãos de pessoas como punição e proíbe mulheres de sair de casa e estudar.

Considerando o cenário de hoje, é certo dizer que os EUA perderam a guerra?

Sim, mas depende um pouco do que se considera como o objetivo americano. Se o objetivo era apenas derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, eles fizeram isso há muito tempo, por volta de 2002. Nessa perspectiva limitada, vencemos a guerra.

Mas se considerarmos que o objetivo é maior, com tudo que foi feito para transformar o Afeganistão em uma democracia funcional e impedir que o Taleban voltasse a tomar o controle do país, então os Estados Unidos perderam.

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