A droga que sai do Brasil em direção à Europa é um dos principais pilares do financiamento de jihadistas e terroristas na África. Documentos da ONU obtidos pelo Estado com exclusividade mostram que 15% de cada 50 gastos na Europa com cocaína terminam com os jihadistas que controlam um 'pedágio' na região do Sahel.
Por décadas, a droga que saia da Colômbia era embarcada diretamente para a Europa, em navios ou aviões que chegavam à Espanha e Portugal. Mas desde que esses governos passaram a implementar um controle maior sobre as cargas e reforçar as fronteiras marítimas, o narcotráfico foi obrigado a buscar novas rotas. Segundo a Interpol, a rota da droga passa, pelo menos desde 2007, pelos portos brasileiros, com a droga colombiana. Santos e os portos do Nordeste seriam os mais utilizados. Em 2009, por exemplo, cerca de 10% de toda a droga que chegou à Europa de navio e 40% da que chegou à França usou o Brasil como rota, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). A caminho da Europa, porém, essa droga passaria pelo Norte da África e, lá, encontraria grupos dispostos a fazer a intermediação.
Entre os traficantes, a rota é conhecida como "Rodovia 10", numa referência ao paralelo 10. Se aos cartéis cabe fazer com que a droga chegue à costa oeste da África, cada vez mais cabe aos movimentos jihadistas que controlam a região a responsabilidade de garantir que os carregamentos transitem por terra - normalmente em pick-ups - até a costa do Mediterrâneo. A relação entre a droga sul-americana e o jihadismo é confirmada tanto pela Interpol quanto pela agência antidroga dos EUA, a DEA. A rota acabou colocando lado a lado improváveis parceiros. Segundo Michael Braun, ex-agente da DEA, cartéis sul-americanos passaram a pagar milhões aos islâmicos para garantir a passagem. Abdelmalek Sayeh, que foi o diretor do Escritório Nacional Argelino para a Luta contra a Droga, também confirmou a relação. Segundo ele, a droga hoje deixa "milhões de dólares para a Al-Qaeda". Para o Centro Africano de Estudos e Pesquisa sobre o Terrorismo, o que permitiu essa relação foi a ausência do controle do Estado sobre vastas áreas do território africano. Uma vez na Costa Oeste africana, a droga passa pelo Mali, Marrocos, Argélia e Líbia, de onde viaja para a Europa. Aviões que decolam de pistas clandestinas na Amazônia também viajam até a costa africana. A conexão é conhecida como "Air Cocaine".
continua após a publicidade Os lucros da droga chegam ao ponto de criar cenas inusitadas. Funcionários da ONU no Mali confirmaram ao Estado que basta sobrevoar o deserto ao norte do país para encontrar dezenas de aviões abandonados. São com esses jatos que a droga é levada até a região.
Muitas vezes, porém, esses aparelhos são abandonados nos locais por falta de combustível ou problemas técnico. Mas os lucros gerados pela venda dos carregamentos compensariam qualquer perda com as aeronaves. Lucros. Dinheiro, de fato, é o que move esses grupos. Um estudo feito há seis meses pela Comissão do Oeste da África sobre Drogas, liderada por Kofi Annan, indicou que o quilo de cocaína que sai do produtor valendo cerca de US$ 2,7 mil na América do Sul já chega à costa africana com um valor de US$ 13 mil. Durante seu transporte pelo Sahel, o valor salta para US$ 16 mil e, nas cidades costeiras do Mediterrâneo, o valor já é de US$ 24 mil. O mesmo quilo de cocaína é comercializado na Europa por US$ 40 mi. Um dos principais grupos que prestam esse "serviço" seria a AQMI, o Al Qaeda no Magreb Islâmico. O vasto deserto do Sahel e do Saara, além da pobreza extrema e falta de presença do estado, permitiu que o grupo passasse a controlar certas partes do território norte-africano. O Centro Africano de Estudos e Pesquisa sobre o Terrorismo indica que só no Norte da África a arrecadação já permite que o grupo terrorista acumule 100 milhões de euros, dinheiro usado para a compra de armas, planejamento de ataques em todo mundo e manutenção de bases em diversos países. Mas o dinheiro também serve para "comprar" a aliança de recrutas com salários e o pagamento de "heranças" a famílias de jovens que optaram por cometer atentados suicidas em nome do grupo. Segundo Mohamed Abdallahi Ould Taleb Abeidi, chefe da polícia da Mauritânia, confirma que a renda obtida pelo AQMI apenas em 2013 com o tráfico de drogas foi duas vezes superior ao que foi obtido com o pagamento de resgates para liberar estrangeiros sequestrados. Guerra. Diante dos lucros, não é por acaso que os confrontos entre o exército francês e islamistas no Mali nos últimos anos tem tido uma lógica que vai além do debate religioso ou político. No final de 2014, um dos principais homens das finanças dos narco-jihadistas, Ahmed El Timlemsi, foi morto em uma operação que envolveu as forças francesas e do governo do Mali. El Timlemsi era o principal financiador de grupos radicais na zona de Gao. O dinheiro, segundo a França, vinha em grande parte da cobrança de pedágio da droga. No Mali, outro barão da droga conhecido como Belaouar foi denunciado por suspeita de "adesão a um grupo terrorista". Além do comércio ilegal, ele financiava terroristas do grupo El Moulathamine. Segundo o Ministério da Defesa da França, ele teria se refugiado na Líbia. Para o especialista e antropólo francês, André Bourgeon, essas estruturas não estão montadas em personalidades. "As entidades narco-jihadistas não dependem de uma pessoa", alertou. "Quando há um assassinato, o grupo até sofre no início. Mas eles são estruturados para continuar a operar", declarou. Elite. Para a Comissão do Oeste da África sobre Drogas, não resta dúvidas de que a relação entre os cartéis sul-americanos e terroristas é uma realidade. "Em colaboração com parceiros locais, os cartéis de drogas conseguiram transformar a região em uma importante zona de trânsito da droga da América do Sul", indicou a entidade em um informe interno de julho de 2014. "Venezuela, Colômbia e Brasil são os principais país de partida da cocaína". A Comissão também confirma que o AQMI, o Movimento para a União e o Johad da África do Oeste (MUJAO) e o grupo Al-Murabitun estão implicados nesse comércio, assim como o Ansar al-Din. Mas a entidade liderada por Annan alerta que transformar o debate da droga na África em uma questão apenas do financiamento do terrorismo é abafar uma outra realidade: o envolvimento das elites políticas da região nesse contrabando e até dando via livre para que jihadistas possam fazer o transporte. "Se as redes criminosas puderam prosperar, é porque elas estiveram em parte controladas por membros da elite local e representantes do estado que puderam produzir do tráfico para se enriquecer ou como recurso político", alertou a Comissão. "Dar um acento sobre o narco-jihadismo pode ocultar o papel importante que tem membros do estado e a corrupção para implementar essa criminalidade organizada", alertou.