Eleição na Argentina: Peronismo é de esquerda ou de direita? Entenda esse movimento político


Quase 50 anos após a morte de Juan Domingo Perón, peronismo continua a ser peça-chave do tabuleiro político argentino; saiba por quê

Por Juliano Galisi
Atualização:

O termo “peronismo” domina há décadas a política na Argentina e, desde que Juan Domingo Perón chegou ao poder no país, em meados do século 20, tem sido um dos fenômenos mais complexos de um país que está longe de ser conhecido pela simplicidade.

A influência de Perón na Argentina é tão grande e tão antiga que o movimento cresceu de uma forma que abrigou figuras tão ideologicamente distintas como Carlos Menem e Cristina Kirchner. O próprio caudilho, quando no poder, por vezes acenava à esquerda, outras à direita, mas sempre dentro de um discurso populista, marcado pela capacidade de mobilização das massas.

O representante peronista nas eleições deste ano não deixa de ser um reflexo desse frankestein político que se tornou o movimento criado por Perón. Ministro da Economia, Sergio Massa disputa a eleição com o apoio da ala esquerda peronista, mas ele próprio é um estranho nesse ninho. Com posições mais ao centro, rompeu no passado com Cristina e chegou a disputar eleições com uma plataforma de tolerância zero contra a violência urbana.

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Cartaz do ministro da Economia e candidato à presidência pelo peronismo Sergio Massa em Buenos Aires.  Foto: JUAN MABROMATA / AFP

Veja abaixo o que é o peronismo, como surgiu e por que tem sido um termo inescapável para discutir a política argentina.

As origens

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O peronismo começou com o militar Juan Domingo Perón, do Partido Justicialista, eleito presidente pela primeira vez em 1946, reeleito em 1951 e derrubado pelo golpe de 1955. Voltou do exílio para a Casa Rosada, após vencer as eleições de 1973, mas morreu no ano seguinte. O peronismo, por outro lado, ainda mobiliza a Argentina (pelo apoio ou rejeição), até hoje.

Na primeira passagem pela presidência, Perón foi capaz de construir uma sólida base popular a partir da relação com os sindicados. Enquanto Eva Perón, com quem foi casado de 1945 a 1952, conquistava os setores menos politizados com as obras sociais que renderam o apelido de “Dama da Esperança”.

Manifestantes exibem foto dos ex-presidentes Juan Domingo Perón e Eva Perón, no Dia da Lealdade, que relembra os protestos massivos em apoio a Peron na década de 1940.  Foto: AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS
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Essa origem de viés populista mostra como o peronismo é mais uma forma de fazer política, do que uma ideologia já que ao longo dessas oito décadas eles assumiram diferentes nomes, partidos e programas.

“O peronismo é uma cultura política. É uma forma específica de construção, organização, liderança e mobilização. Todos esses aspectos, no peronismo, tomam características muito próprias da experiência histórica da Argentina”, diz Matheus de Oliveira Pereira, doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (PUC-SP, UNESP, UNICAMP).

Matheus elenca dois fatores práticos para entender o fenômeno peronista. A “intensa capacidade de mobilização popular” é um deles. Além disso, há um aspecto que o distingue de outros agrupamentos políticos: a capilaridade territorial. “Ele tem essa capacidade de ramificação. Ele chega lá na ponta, nos municípios de interior”, ressalta o internacionalista.

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As bases sociais peronistas

A origem do peronismo “remonta ao surgimento do proletariado urbano como novo ator político”, diz Matheus de Oliveira. “Essas massas, ao não encontrarem representação no sistema vigente, passam a canalizar suas forças por meio de figuras como Vargas, aqui no Brasil, Lázaro Cárdenas, no México, e, na Argentina, o Perón”, afirma Pereira.

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Além do proletariado urbano, o peronismo esteve associado às bases sindicais. Para Matheus, é importante frisar que a ascensão de líderes como Perón se deve, em certa medida, pela própria falência do sistema político até então praticado. “Esses movimentos [populistas], por vezes, são retratados como anomalias. Na verdade, parte significativa do problema habitava nos modelos tradicionais, que eram as democracias só de fachada”, destaca Oliveira.

“O governo peronista foi o primeiro na história da Argentina com uma política social”, diz o internacionalista Vinicius Rodrigues Vieira, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Berkeley, Califórnia, e doutor pela Universidade de Oxford.

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Movimento amplo

Segundo Vinicius, o termo peronista, por si só, “não é muito preciso”. Para Vieira, o movimento, originalmente, tinha um programa melhor delimitado; com o passar do tempo, porém, o movimento “se desenvolveu de maneira muito ampla”.

No início, o programa peronista tinha como foco as políticas redistributivas e a justiça social. Com o tempo, entretanto, diferentes fundamentos foram sendo assimilados. “É aquilo que denominamos, na ciência política, de movimento catch-all, ‘pega-tudo’. Tem segmentos de direita, e, hoje em dia, é predominantemente associado à esquerda, muito por conta da influência dos Kirchner”, pondera Vinicius.

Por se tratar de um movimento difuso, de tantas segmentações e mutações ao longo dos anos, a enominação entre esquerda e direita, ao se falar de peronismo, não é precisa. Não é possível, só com base nesses termos, captar a sua essência e seus fundamentos. “O peronismo não é necessariamente de direita ou de esquerda, ele é popular, e movimentos populares podem tender para diferentes aspectos. A metamorfose do peronismo, ao longo das décadas, é, propriamente, uma de suas características”, afirma Matheus de Oliveira.

O peronismo apresenta profundas transformações ao longo do século 20, tanto nos ideais quanto nas bases de apoio. Diferenças cruciais devem ser assinaladas até mesmo entre os mandatos do próprio Juan Domingo Perón. Em cada uma de suas gestões, o presidente se deparou com contextos específicos.

A metamorfose, qualifica Matheus, se deu “ao sabor das circunstâncias”, por meio das quais setores muito diferentes entre si foram incorporados ao movimento. É por isso que, embora tenha origem na base sindical, o peronismo tenha chegado a agregar até mesmo setores significativos da burguesia industrial. “Para se ter uma ideia, você tinha, ali no peronismo, grupos que eram profundamente anticomunistas, e havia, ao mesmo tempo, setores que defendiam a luta armada em prol do socialismo”, diz o internacionalista.

De Menem a Kirchner

O peronismo continua a influenciar em muito as disputas políticas da Argentina. A característica mais marcante do movimento continua a ser a metamorfose. Há muitas dissidências políticas que se denominam como peronistas e esses grupos, a todo instante, entram em embate - por mais que, supostamente, pertençam ao mesmo campo.

De 1989 a 1999, a Argentina foi presidida por Carlos Menem, do Partido Justicialista. Embora fosse peronista, Menem seguiu a tendência da década e governou com uma cartilha mais liberal, com abertura comercial e privatização de empresas. Para conter a inflação, naquela época, o governo equiparou o peso ao dólar, e tentou dolarizar a economia — ideia defendida hoje por Javier Milei.

Naquele momento, Menem conseguiu de fato conter a inflação, mas em 2001, depois que ele já tinha deixado a presidência, a demanda por dólares era maior que a capacidade argentina de emitir a moeda americana. E o país afundou em uma das maiores crises da sua história sob o governo Fernando de la Rúa, que deixou a Casa Rosada de helicóptero.

Foi depois dessa crise que o chamado kirchnerismo chegou ao poder na Argentina e, até hoje, se mantém como umas das vertentes mais influentes dentro do peronismo.

Eleito em 2003, Néstor Kirchner conseguiu conter a crise angariou popularidade suficiente para que Cristina, sua esposa, o sucedesse na presidência. Sob o governo de Cristina, o kirchnerismo enfrentou suas primeiras crises. Em 2008, produtores rurais se opuseram à criação de um novo imposto e organizaram uma greve. O projeto para a criação do tributo terminou derrotado no Senado do país.

“Os setores agrário e bancário”, pondera Matheus de Oliveira, “são grupos de forte oposição ao kirchnerismo”. E o kirchnerismo, por sua vez, é fortemente hostil ao setor financeiro, buscando, segundo Oliveira, uma aproximação com o “peronismo original, por meio de uma autonomia política”.

Presidente Alberto Fernandez participa de sessão de abertura do ano legislativo ao lado da vice Cristina Kirchner e de Sergio Massa, na época presidente da Câmara. Foto: REUTERS/Matias Baglietto

Futuro do peronismo

Javier Milei surge numa janela histórica específica. Pela primeira vez em muito tempo, um político fora do Partido Justicialista angariou apoio das camadas mais pobres da população. A presente situação econômica do país, segundo Vieira, é “a primeira oportunidade em que uma hiperinflação foi gerada sob domínio peronista”. No momento, quem encara o problema é o candidato governista. “O Massa está tentando fazer o impossível, que é equilibrar o peronismo num contexto de crise muito severa”, diz Matheus de Oliveira.

Para os próximos anos, destaca Vinicius Vieira, deve-se observar “qual será a sobrevida do peronismo”. E, para Matheus, os embates internos do movimento não devem terminar após as eleições gerais. “É uma disputa de poder interna dentro do movimento, na qual se discute qual será a direção a ser adotada pelo peronismo no presente e no futuro próximo”, diz Oliveira.

O termo “peronismo” domina há décadas a política na Argentina e, desde que Juan Domingo Perón chegou ao poder no país, em meados do século 20, tem sido um dos fenômenos mais complexos de um país que está longe de ser conhecido pela simplicidade.

A influência de Perón na Argentina é tão grande e tão antiga que o movimento cresceu de uma forma que abrigou figuras tão ideologicamente distintas como Carlos Menem e Cristina Kirchner. O próprio caudilho, quando no poder, por vezes acenava à esquerda, outras à direita, mas sempre dentro de um discurso populista, marcado pela capacidade de mobilização das massas.

O representante peronista nas eleições deste ano não deixa de ser um reflexo desse frankestein político que se tornou o movimento criado por Perón. Ministro da Economia, Sergio Massa disputa a eleição com o apoio da ala esquerda peronista, mas ele próprio é um estranho nesse ninho. Com posições mais ao centro, rompeu no passado com Cristina e chegou a disputar eleições com uma plataforma de tolerância zero contra a violência urbana.

Cartaz do ministro da Economia e candidato à presidência pelo peronismo Sergio Massa em Buenos Aires.  Foto: JUAN MABROMATA / AFP

Veja abaixo o que é o peronismo, como surgiu e por que tem sido um termo inescapável para discutir a política argentina.

As origens

O peronismo começou com o militar Juan Domingo Perón, do Partido Justicialista, eleito presidente pela primeira vez em 1946, reeleito em 1951 e derrubado pelo golpe de 1955. Voltou do exílio para a Casa Rosada, após vencer as eleições de 1973, mas morreu no ano seguinte. O peronismo, por outro lado, ainda mobiliza a Argentina (pelo apoio ou rejeição), até hoje.

Na primeira passagem pela presidência, Perón foi capaz de construir uma sólida base popular a partir da relação com os sindicados. Enquanto Eva Perón, com quem foi casado de 1945 a 1952, conquistava os setores menos politizados com as obras sociais que renderam o apelido de “Dama da Esperança”.

Manifestantes exibem foto dos ex-presidentes Juan Domingo Perón e Eva Perón, no Dia da Lealdade, que relembra os protestos massivos em apoio a Peron na década de 1940.  Foto: AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS

Essa origem de viés populista mostra como o peronismo é mais uma forma de fazer política, do que uma ideologia já que ao longo dessas oito décadas eles assumiram diferentes nomes, partidos e programas.

“O peronismo é uma cultura política. É uma forma específica de construção, organização, liderança e mobilização. Todos esses aspectos, no peronismo, tomam características muito próprias da experiência histórica da Argentina”, diz Matheus de Oliveira Pereira, doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (PUC-SP, UNESP, UNICAMP).

Matheus elenca dois fatores práticos para entender o fenômeno peronista. A “intensa capacidade de mobilização popular” é um deles. Além disso, há um aspecto que o distingue de outros agrupamentos políticos: a capilaridade territorial. “Ele tem essa capacidade de ramificação. Ele chega lá na ponta, nos municípios de interior”, ressalta o internacionalista.

As bases sociais peronistas

A origem do peronismo “remonta ao surgimento do proletariado urbano como novo ator político”, diz Matheus de Oliveira. “Essas massas, ao não encontrarem representação no sistema vigente, passam a canalizar suas forças por meio de figuras como Vargas, aqui no Brasil, Lázaro Cárdenas, no México, e, na Argentina, o Perón”, afirma Pereira.

Além do proletariado urbano, o peronismo esteve associado às bases sindicais. Para Matheus, é importante frisar que a ascensão de líderes como Perón se deve, em certa medida, pela própria falência do sistema político até então praticado. “Esses movimentos [populistas], por vezes, são retratados como anomalias. Na verdade, parte significativa do problema habitava nos modelos tradicionais, que eram as democracias só de fachada”, destaca Oliveira.

“O governo peronista foi o primeiro na história da Argentina com uma política social”, diz o internacionalista Vinicius Rodrigues Vieira, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Berkeley, Califórnia, e doutor pela Universidade de Oxford.

Movimento amplo

Segundo Vinicius, o termo peronista, por si só, “não é muito preciso”. Para Vieira, o movimento, originalmente, tinha um programa melhor delimitado; com o passar do tempo, porém, o movimento “se desenvolveu de maneira muito ampla”.

No início, o programa peronista tinha como foco as políticas redistributivas e a justiça social. Com o tempo, entretanto, diferentes fundamentos foram sendo assimilados. “É aquilo que denominamos, na ciência política, de movimento catch-all, ‘pega-tudo’. Tem segmentos de direita, e, hoje em dia, é predominantemente associado à esquerda, muito por conta da influência dos Kirchner”, pondera Vinicius.

Por se tratar de um movimento difuso, de tantas segmentações e mutações ao longo dos anos, a enominação entre esquerda e direita, ao se falar de peronismo, não é precisa. Não é possível, só com base nesses termos, captar a sua essência e seus fundamentos. “O peronismo não é necessariamente de direita ou de esquerda, ele é popular, e movimentos populares podem tender para diferentes aspectos. A metamorfose do peronismo, ao longo das décadas, é, propriamente, uma de suas características”, afirma Matheus de Oliveira.

O peronismo apresenta profundas transformações ao longo do século 20, tanto nos ideais quanto nas bases de apoio. Diferenças cruciais devem ser assinaladas até mesmo entre os mandatos do próprio Juan Domingo Perón. Em cada uma de suas gestões, o presidente se deparou com contextos específicos.

A metamorfose, qualifica Matheus, se deu “ao sabor das circunstâncias”, por meio das quais setores muito diferentes entre si foram incorporados ao movimento. É por isso que, embora tenha origem na base sindical, o peronismo tenha chegado a agregar até mesmo setores significativos da burguesia industrial. “Para se ter uma ideia, você tinha, ali no peronismo, grupos que eram profundamente anticomunistas, e havia, ao mesmo tempo, setores que defendiam a luta armada em prol do socialismo”, diz o internacionalista.

De Menem a Kirchner

O peronismo continua a influenciar em muito as disputas políticas da Argentina. A característica mais marcante do movimento continua a ser a metamorfose. Há muitas dissidências políticas que se denominam como peronistas e esses grupos, a todo instante, entram em embate - por mais que, supostamente, pertençam ao mesmo campo.

De 1989 a 1999, a Argentina foi presidida por Carlos Menem, do Partido Justicialista. Embora fosse peronista, Menem seguiu a tendência da década e governou com uma cartilha mais liberal, com abertura comercial e privatização de empresas. Para conter a inflação, naquela época, o governo equiparou o peso ao dólar, e tentou dolarizar a economia — ideia defendida hoje por Javier Milei.

Naquele momento, Menem conseguiu de fato conter a inflação, mas em 2001, depois que ele já tinha deixado a presidência, a demanda por dólares era maior que a capacidade argentina de emitir a moeda americana. E o país afundou em uma das maiores crises da sua história sob o governo Fernando de la Rúa, que deixou a Casa Rosada de helicóptero.

Foi depois dessa crise que o chamado kirchnerismo chegou ao poder na Argentina e, até hoje, se mantém como umas das vertentes mais influentes dentro do peronismo.

Eleito em 2003, Néstor Kirchner conseguiu conter a crise angariou popularidade suficiente para que Cristina, sua esposa, o sucedesse na presidência. Sob o governo de Cristina, o kirchnerismo enfrentou suas primeiras crises. Em 2008, produtores rurais se opuseram à criação de um novo imposto e organizaram uma greve. O projeto para a criação do tributo terminou derrotado no Senado do país.

“Os setores agrário e bancário”, pondera Matheus de Oliveira, “são grupos de forte oposição ao kirchnerismo”. E o kirchnerismo, por sua vez, é fortemente hostil ao setor financeiro, buscando, segundo Oliveira, uma aproximação com o “peronismo original, por meio de uma autonomia política”.

Presidente Alberto Fernandez participa de sessão de abertura do ano legislativo ao lado da vice Cristina Kirchner e de Sergio Massa, na época presidente da Câmara. Foto: REUTERS/Matias Baglietto

Futuro do peronismo

Javier Milei surge numa janela histórica específica. Pela primeira vez em muito tempo, um político fora do Partido Justicialista angariou apoio das camadas mais pobres da população. A presente situação econômica do país, segundo Vieira, é “a primeira oportunidade em que uma hiperinflação foi gerada sob domínio peronista”. No momento, quem encara o problema é o candidato governista. “O Massa está tentando fazer o impossível, que é equilibrar o peronismo num contexto de crise muito severa”, diz Matheus de Oliveira.

Para os próximos anos, destaca Vinicius Vieira, deve-se observar “qual será a sobrevida do peronismo”. E, para Matheus, os embates internos do movimento não devem terminar após as eleições gerais. “É uma disputa de poder interna dentro do movimento, na qual se discute qual será a direção a ser adotada pelo peronismo no presente e no futuro próximo”, diz Oliveira.

O termo “peronismo” domina há décadas a política na Argentina e, desde que Juan Domingo Perón chegou ao poder no país, em meados do século 20, tem sido um dos fenômenos mais complexos de um país que está longe de ser conhecido pela simplicidade.

A influência de Perón na Argentina é tão grande e tão antiga que o movimento cresceu de uma forma que abrigou figuras tão ideologicamente distintas como Carlos Menem e Cristina Kirchner. O próprio caudilho, quando no poder, por vezes acenava à esquerda, outras à direita, mas sempre dentro de um discurso populista, marcado pela capacidade de mobilização das massas.

O representante peronista nas eleições deste ano não deixa de ser um reflexo desse frankestein político que se tornou o movimento criado por Perón. Ministro da Economia, Sergio Massa disputa a eleição com o apoio da ala esquerda peronista, mas ele próprio é um estranho nesse ninho. Com posições mais ao centro, rompeu no passado com Cristina e chegou a disputar eleições com uma plataforma de tolerância zero contra a violência urbana.

Cartaz do ministro da Economia e candidato à presidência pelo peronismo Sergio Massa em Buenos Aires.  Foto: JUAN MABROMATA / AFP

Veja abaixo o que é o peronismo, como surgiu e por que tem sido um termo inescapável para discutir a política argentina.

As origens

O peronismo começou com o militar Juan Domingo Perón, do Partido Justicialista, eleito presidente pela primeira vez em 1946, reeleito em 1951 e derrubado pelo golpe de 1955. Voltou do exílio para a Casa Rosada, após vencer as eleições de 1973, mas morreu no ano seguinte. O peronismo, por outro lado, ainda mobiliza a Argentina (pelo apoio ou rejeição), até hoje.

Na primeira passagem pela presidência, Perón foi capaz de construir uma sólida base popular a partir da relação com os sindicados. Enquanto Eva Perón, com quem foi casado de 1945 a 1952, conquistava os setores menos politizados com as obras sociais que renderam o apelido de “Dama da Esperança”.

Manifestantes exibem foto dos ex-presidentes Juan Domingo Perón e Eva Perón, no Dia da Lealdade, que relembra os protestos massivos em apoio a Peron na década de 1940.  Foto: AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS

Essa origem de viés populista mostra como o peronismo é mais uma forma de fazer política, do que uma ideologia já que ao longo dessas oito décadas eles assumiram diferentes nomes, partidos e programas.

“O peronismo é uma cultura política. É uma forma específica de construção, organização, liderança e mobilização. Todos esses aspectos, no peronismo, tomam características muito próprias da experiência histórica da Argentina”, diz Matheus de Oliveira Pereira, doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (PUC-SP, UNESP, UNICAMP).

Matheus elenca dois fatores práticos para entender o fenômeno peronista. A “intensa capacidade de mobilização popular” é um deles. Além disso, há um aspecto que o distingue de outros agrupamentos políticos: a capilaridade territorial. “Ele tem essa capacidade de ramificação. Ele chega lá na ponta, nos municípios de interior”, ressalta o internacionalista.

As bases sociais peronistas

A origem do peronismo “remonta ao surgimento do proletariado urbano como novo ator político”, diz Matheus de Oliveira. “Essas massas, ao não encontrarem representação no sistema vigente, passam a canalizar suas forças por meio de figuras como Vargas, aqui no Brasil, Lázaro Cárdenas, no México, e, na Argentina, o Perón”, afirma Pereira.

Além do proletariado urbano, o peronismo esteve associado às bases sindicais. Para Matheus, é importante frisar que a ascensão de líderes como Perón se deve, em certa medida, pela própria falência do sistema político até então praticado. “Esses movimentos [populistas], por vezes, são retratados como anomalias. Na verdade, parte significativa do problema habitava nos modelos tradicionais, que eram as democracias só de fachada”, destaca Oliveira.

“O governo peronista foi o primeiro na história da Argentina com uma política social”, diz o internacionalista Vinicius Rodrigues Vieira, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Berkeley, Califórnia, e doutor pela Universidade de Oxford.

Movimento amplo

Segundo Vinicius, o termo peronista, por si só, “não é muito preciso”. Para Vieira, o movimento, originalmente, tinha um programa melhor delimitado; com o passar do tempo, porém, o movimento “se desenvolveu de maneira muito ampla”.

No início, o programa peronista tinha como foco as políticas redistributivas e a justiça social. Com o tempo, entretanto, diferentes fundamentos foram sendo assimilados. “É aquilo que denominamos, na ciência política, de movimento catch-all, ‘pega-tudo’. Tem segmentos de direita, e, hoje em dia, é predominantemente associado à esquerda, muito por conta da influência dos Kirchner”, pondera Vinicius.

Por se tratar de um movimento difuso, de tantas segmentações e mutações ao longo dos anos, a enominação entre esquerda e direita, ao se falar de peronismo, não é precisa. Não é possível, só com base nesses termos, captar a sua essência e seus fundamentos. “O peronismo não é necessariamente de direita ou de esquerda, ele é popular, e movimentos populares podem tender para diferentes aspectos. A metamorfose do peronismo, ao longo das décadas, é, propriamente, uma de suas características”, afirma Matheus de Oliveira.

O peronismo apresenta profundas transformações ao longo do século 20, tanto nos ideais quanto nas bases de apoio. Diferenças cruciais devem ser assinaladas até mesmo entre os mandatos do próprio Juan Domingo Perón. Em cada uma de suas gestões, o presidente se deparou com contextos específicos.

A metamorfose, qualifica Matheus, se deu “ao sabor das circunstâncias”, por meio das quais setores muito diferentes entre si foram incorporados ao movimento. É por isso que, embora tenha origem na base sindical, o peronismo tenha chegado a agregar até mesmo setores significativos da burguesia industrial. “Para se ter uma ideia, você tinha, ali no peronismo, grupos que eram profundamente anticomunistas, e havia, ao mesmo tempo, setores que defendiam a luta armada em prol do socialismo”, diz o internacionalista.

De Menem a Kirchner

O peronismo continua a influenciar em muito as disputas políticas da Argentina. A característica mais marcante do movimento continua a ser a metamorfose. Há muitas dissidências políticas que se denominam como peronistas e esses grupos, a todo instante, entram em embate - por mais que, supostamente, pertençam ao mesmo campo.

De 1989 a 1999, a Argentina foi presidida por Carlos Menem, do Partido Justicialista. Embora fosse peronista, Menem seguiu a tendência da década e governou com uma cartilha mais liberal, com abertura comercial e privatização de empresas. Para conter a inflação, naquela época, o governo equiparou o peso ao dólar, e tentou dolarizar a economia — ideia defendida hoje por Javier Milei.

Naquele momento, Menem conseguiu de fato conter a inflação, mas em 2001, depois que ele já tinha deixado a presidência, a demanda por dólares era maior que a capacidade argentina de emitir a moeda americana. E o país afundou em uma das maiores crises da sua história sob o governo Fernando de la Rúa, que deixou a Casa Rosada de helicóptero.

Foi depois dessa crise que o chamado kirchnerismo chegou ao poder na Argentina e, até hoje, se mantém como umas das vertentes mais influentes dentro do peronismo.

Eleito em 2003, Néstor Kirchner conseguiu conter a crise angariou popularidade suficiente para que Cristina, sua esposa, o sucedesse na presidência. Sob o governo de Cristina, o kirchnerismo enfrentou suas primeiras crises. Em 2008, produtores rurais se opuseram à criação de um novo imposto e organizaram uma greve. O projeto para a criação do tributo terminou derrotado no Senado do país.

“Os setores agrário e bancário”, pondera Matheus de Oliveira, “são grupos de forte oposição ao kirchnerismo”. E o kirchnerismo, por sua vez, é fortemente hostil ao setor financeiro, buscando, segundo Oliveira, uma aproximação com o “peronismo original, por meio de uma autonomia política”.

Presidente Alberto Fernandez participa de sessão de abertura do ano legislativo ao lado da vice Cristina Kirchner e de Sergio Massa, na época presidente da Câmara. Foto: REUTERS/Matias Baglietto

Futuro do peronismo

Javier Milei surge numa janela histórica específica. Pela primeira vez em muito tempo, um político fora do Partido Justicialista angariou apoio das camadas mais pobres da população. A presente situação econômica do país, segundo Vieira, é “a primeira oportunidade em que uma hiperinflação foi gerada sob domínio peronista”. No momento, quem encara o problema é o candidato governista. “O Massa está tentando fazer o impossível, que é equilibrar o peronismo num contexto de crise muito severa”, diz Matheus de Oliveira.

Para os próximos anos, destaca Vinicius Vieira, deve-se observar “qual será a sobrevida do peronismo”. E, para Matheus, os embates internos do movimento não devem terminar após as eleições gerais. “É uma disputa de poder interna dentro do movimento, na qual se discute qual será a direção a ser adotada pelo peronismo no presente e no futuro próximo”, diz Oliveira.

O termo “peronismo” domina há décadas a política na Argentina e, desde que Juan Domingo Perón chegou ao poder no país, em meados do século 20, tem sido um dos fenômenos mais complexos de um país que está longe de ser conhecido pela simplicidade.

A influência de Perón na Argentina é tão grande e tão antiga que o movimento cresceu de uma forma que abrigou figuras tão ideologicamente distintas como Carlos Menem e Cristina Kirchner. O próprio caudilho, quando no poder, por vezes acenava à esquerda, outras à direita, mas sempre dentro de um discurso populista, marcado pela capacidade de mobilização das massas.

O representante peronista nas eleições deste ano não deixa de ser um reflexo desse frankestein político que se tornou o movimento criado por Perón. Ministro da Economia, Sergio Massa disputa a eleição com o apoio da ala esquerda peronista, mas ele próprio é um estranho nesse ninho. Com posições mais ao centro, rompeu no passado com Cristina e chegou a disputar eleições com uma plataforma de tolerância zero contra a violência urbana.

Cartaz do ministro da Economia e candidato à presidência pelo peronismo Sergio Massa em Buenos Aires.  Foto: JUAN MABROMATA / AFP

Veja abaixo o que é o peronismo, como surgiu e por que tem sido um termo inescapável para discutir a política argentina.

As origens

O peronismo começou com o militar Juan Domingo Perón, do Partido Justicialista, eleito presidente pela primeira vez em 1946, reeleito em 1951 e derrubado pelo golpe de 1955. Voltou do exílio para a Casa Rosada, após vencer as eleições de 1973, mas morreu no ano seguinte. O peronismo, por outro lado, ainda mobiliza a Argentina (pelo apoio ou rejeição), até hoje.

Na primeira passagem pela presidência, Perón foi capaz de construir uma sólida base popular a partir da relação com os sindicados. Enquanto Eva Perón, com quem foi casado de 1945 a 1952, conquistava os setores menos politizados com as obras sociais que renderam o apelido de “Dama da Esperança”.

Manifestantes exibem foto dos ex-presidentes Juan Domingo Perón e Eva Perón, no Dia da Lealdade, que relembra os protestos massivos em apoio a Peron na década de 1940.  Foto: AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS

Essa origem de viés populista mostra como o peronismo é mais uma forma de fazer política, do que uma ideologia já que ao longo dessas oito décadas eles assumiram diferentes nomes, partidos e programas.

“O peronismo é uma cultura política. É uma forma específica de construção, organização, liderança e mobilização. Todos esses aspectos, no peronismo, tomam características muito próprias da experiência histórica da Argentina”, diz Matheus de Oliveira Pereira, doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (PUC-SP, UNESP, UNICAMP).

Matheus elenca dois fatores práticos para entender o fenômeno peronista. A “intensa capacidade de mobilização popular” é um deles. Além disso, há um aspecto que o distingue de outros agrupamentos políticos: a capilaridade territorial. “Ele tem essa capacidade de ramificação. Ele chega lá na ponta, nos municípios de interior”, ressalta o internacionalista.

As bases sociais peronistas

A origem do peronismo “remonta ao surgimento do proletariado urbano como novo ator político”, diz Matheus de Oliveira. “Essas massas, ao não encontrarem representação no sistema vigente, passam a canalizar suas forças por meio de figuras como Vargas, aqui no Brasil, Lázaro Cárdenas, no México, e, na Argentina, o Perón”, afirma Pereira.

Além do proletariado urbano, o peronismo esteve associado às bases sindicais. Para Matheus, é importante frisar que a ascensão de líderes como Perón se deve, em certa medida, pela própria falência do sistema político até então praticado. “Esses movimentos [populistas], por vezes, são retratados como anomalias. Na verdade, parte significativa do problema habitava nos modelos tradicionais, que eram as democracias só de fachada”, destaca Oliveira.

“O governo peronista foi o primeiro na história da Argentina com uma política social”, diz o internacionalista Vinicius Rodrigues Vieira, mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Berkeley, Califórnia, e doutor pela Universidade de Oxford.

Movimento amplo

Segundo Vinicius, o termo peronista, por si só, “não é muito preciso”. Para Vieira, o movimento, originalmente, tinha um programa melhor delimitado; com o passar do tempo, porém, o movimento “se desenvolveu de maneira muito ampla”.

No início, o programa peronista tinha como foco as políticas redistributivas e a justiça social. Com o tempo, entretanto, diferentes fundamentos foram sendo assimilados. “É aquilo que denominamos, na ciência política, de movimento catch-all, ‘pega-tudo’. Tem segmentos de direita, e, hoje em dia, é predominantemente associado à esquerda, muito por conta da influência dos Kirchner”, pondera Vinicius.

Por se tratar de um movimento difuso, de tantas segmentações e mutações ao longo dos anos, a enominação entre esquerda e direita, ao se falar de peronismo, não é precisa. Não é possível, só com base nesses termos, captar a sua essência e seus fundamentos. “O peronismo não é necessariamente de direita ou de esquerda, ele é popular, e movimentos populares podem tender para diferentes aspectos. A metamorfose do peronismo, ao longo das décadas, é, propriamente, uma de suas características”, afirma Matheus de Oliveira.

O peronismo apresenta profundas transformações ao longo do século 20, tanto nos ideais quanto nas bases de apoio. Diferenças cruciais devem ser assinaladas até mesmo entre os mandatos do próprio Juan Domingo Perón. Em cada uma de suas gestões, o presidente se deparou com contextos específicos.

A metamorfose, qualifica Matheus, se deu “ao sabor das circunstâncias”, por meio das quais setores muito diferentes entre si foram incorporados ao movimento. É por isso que, embora tenha origem na base sindical, o peronismo tenha chegado a agregar até mesmo setores significativos da burguesia industrial. “Para se ter uma ideia, você tinha, ali no peronismo, grupos que eram profundamente anticomunistas, e havia, ao mesmo tempo, setores que defendiam a luta armada em prol do socialismo”, diz o internacionalista.

De Menem a Kirchner

O peronismo continua a influenciar em muito as disputas políticas da Argentina. A característica mais marcante do movimento continua a ser a metamorfose. Há muitas dissidências políticas que se denominam como peronistas e esses grupos, a todo instante, entram em embate - por mais que, supostamente, pertençam ao mesmo campo.

De 1989 a 1999, a Argentina foi presidida por Carlos Menem, do Partido Justicialista. Embora fosse peronista, Menem seguiu a tendência da década e governou com uma cartilha mais liberal, com abertura comercial e privatização de empresas. Para conter a inflação, naquela época, o governo equiparou o peso ao dólar, e tentou dolarizar a economia — ideia defendida hoje por Javier Milei.

Naquele momento, Menem conseguiu de fato conter a inflação, mas em 2001, depois que ele já tinha deixado a presidência, a demanda por dólares era maior que a capacidade argentina de emitir a moeda americana. E o país afundou em uma das maiores crises da sua história sob o governo Fernando de la Rúa, que deixou a Casa Rosada de helicóptero.

Foi depois dessa crise que o chamado kirchnerismo chegou ao poder na Argentina e, até hoje, se mantém como umas das vertentes mais influentes dentro do peronismo.

Eleito em 2003, Néstor Kirchner conseguiu conter a crise angariou popularidade suficiente para que Cristina, sua esposa, o sucedesse na presidência. Sob o governo de Cristina, o kirchnerismo enfrentou suas primeiras crises. Em 2008, produtores rurais se opuseram à criação de um novo imposto e organizaram uma greve. O projeto para a criação do tributo terminou derrotado no Senado do país.

“Os setores agrário e bancário”, pondera Matheus de Oliveira, “são grupos de forte oposição ao kirchnerismo”. E o kirchnerismo, por sua vez, é fortemente hostil ao setor financeiro, buscando, segundo Oliveira, uma aproximação com o “peronismo original, por meio de uma autonomia política”.

Presidente Alberto Fernandez participa de sessão de abertura do ano legislativo ao lado da vice Cristina Kirchner e de Sergio Massa, na época presidente da Câmara. Foto: REUTERS/Matias Baglietto

Futuro do peronismo

Javier Milei surge numa janela histórica específica. Pela primeira vez em muito tempo, um político fora do Partido Justicialista angariou apoio das camadas mais pobres da população. A presente situação econômica do país, segundo Vieira, é “a primeira oportunidade em que uma hiperinflação foi gerada sob domínio peronista”. No momento, quem encara o problema é o candidato governista. “O Massa está tentando fazer o impossível, que é equilibrar o peronismo num contexto de crise muito severa”, diz Matheus de Oliveira.

Para os próximos anos, destaca Vinicius Vieira, deve-se observar “qual será a sobrevida do peronismo”. E, para Matheus, os embates internos do movimento não devem terminar após as eleições gerais. “É uma disputa de poder interna dentro do movimento, na qual se discute qual será a direção a ser adotada pelo peronismo no presente e no futuro próximo”, diz Oliveira.

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