Opinião|Eleição no Irã expõe tensão entre sociedade civil vibrante contra Estado repressor


Morte do presidente gera incertezas sobre eleição presidencial, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio

A morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi, em 20 de maio, por acidente de helicóptero, vai tumultuar o processo sucessório da Presidência da República e do líder supremo Ali Khamenei, de 83 anos (Raisi era seu provável sucessor), mas não deverá alterar as linhas básicas do regime.

Dois fatores devem continuar a ditar os rumos da República Islâmica: a relação, historicamente conflituosa, entre o presidente e o líder supremo; e o envolvimento do Irã nos conflitos do Oriente Médio, em especial com Estados Unidos, Israel e seus proxies.

continua após a publicidade

Desde a proclamação do Governo Revolucionário Provisório, em 5 de fevereiro de 1979, a rivalidade central do sistema político iraniano reside na difícil relação entre o presidente da República, eleito pelo povo, e o líder supremo, escolhido pela hierarquia religiosa – inicialmente Khomeini, ungido pelo carisma divino da Revolução em 1979 e, dez anos depois, Khamenei.

Imagem mostra o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, após depositar o voto na eleição presidencial em Teerã nesta sexta-feira, 28. País escolhe novo presidente após morte de Ebrahim Raisi Foto: Vahid Salemi/AP

Nas ocasiões em que o presidente eleito tinha forte apoio popular e adotava medidas liberalizantes, a rivalidade entre os dois líderes se agravava. Isso ocorreu já no primeiro governo, liderado por Bazargan (indicado primeiro-ministro por Khomeini), e prosseguiu com presidentes conhecidos pelo perfil reformista, como Rafsanjani, Khatami e Rouhani.

continua após a publicidade

Em contraste, presidentes eleitos em pleitos manipulados pela hierarquia religiosa, como Ahmadinejad e Raisi, mantinham relação mais amistosa com o líder supremo. No caso de Raisi, a lealdade a Khamenei foi tão acentuada, a ponto de ficar conhecido como “Yes Man” e até ser cogitado para sucedê-lo.

Os presidentes reformistas tiveram mandatos com o seguinte perfil: defesa das liberdades civis, políticas e das instituições democráticas; limitação dos monopólios e abertura da economia; maior inserção na comunidade internacional; relações amistosas com o Ocidente; limites ao poder político e econômico do Estado paralelo, principalmente dos IRGC (Iranian Revolutionary Guards Corps) e do líder supremo.

continua após a publicidade

Essas propostas reformistas avançaram de forma muito limitada, em clima de visível tensão com a teocracia do líder supremo e o militarismo dos IRGC. Nos mandatos dos três líderes reformistas acima indicados, a abertura ao mundo era um projeto comum, mas em grande medida fracassado.

Rafsanjani se tornou presidente dez anos após a vitória da Revolução e governou por oito anos (1989-1997). Foi sucedido por Khatami, que assumiu após esmagadora vitória eleitoral, combateu o poder do Estado paralelo e foi por ele antagonizado, defendeu a liberdade de imprensa, os intelectuais e pregou o pluralismo religioso.

Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, procurou combater o militarismo do regime (IRGC), o extremismo religioso e valorizou quadros técnicos que passaram a ocupar posições de relevo no governo. Em 2015, teve o grande mérito de concluir, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha (P5+1), a negociação do controvertido programa nuclear iraniano, com a assinatura do JCPA- Joint Comprehensive Plan of Action.

continua após a publicidade

Apesar das limitadas conquistas concretas desses três líderes, o regime tinha avanços e não se fechava inteiramente. Essa percepção começou a se desfazer nos mandatos de dois líderes autoritários, avessos à inserção internacional do país e eleitos em pleitos com sérias acusações de fraude – Ahmadinejad e Raisi.

Ahmadinejad, derrotado em pleito anterior por Rafsanjani, foi eleito com o apoio irrestrito de Khamenei e da Guarda Revolucionária. Seu mandato acirrou as tensões do Irã com o Ocidente, o programa nuclear avançou independente dos controles da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e as sanções agravaram as condições de vida da população iraniana. As manifestações de protesto se agigantaram e a repressão se tornou ainda mais violenta.

continua após a publicidade

A eleição de Raisi, contestada como a de Ahmadinejad, rompeu de forma mais ostensiva com a tradicional rivalidade entre o presidente e o líder supremo. Dos cinco Presidentes ao longo dos mais de trinta anos do mandato de Khamenei, Raisi foi sem dúvida o mais leal, o Yes Man cotado para sucedê-lo. Seu currículo traz marcas de implacável perseguição a ativistas, mulheres e opositores do regime. Em contraste com Rouhani, que procurava colocar limites ao protagonismo do governo paralelo – comandado por Khamenei e com o respaldo militar dos Guardas Revolucionários (IRGC) -, Raisi assumiu o papel de refém desses dois atores.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje. O Irã da época da revolução era um país de 34 milhões de habitantes, metade vivendo no campo, que tinha como amálgamas o fervor religioso, a esperança de liberdade e a fé no líder supremo. O Irã de hoje é uma sociedade muito mais complexa e insatisfeita, de quase 90 milhões de pessoas, 75% urbana, ampla predominância de jovens, acelerado crescimento de universitários, inclusive de mulheres.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje

continua após a publicidade

Se a sociedade revelou essa gigantesca transformação, o sistema político continuou fechado, dominado por uma hierarquia religiosa avessa a mudanças. Assim, é impactante o contraste entre, por um lado, uma sociedade dinâmica, vibrante, e, por outro, um Estado fechado, imobilizado. O resultado tem sido de milhões de manifestantes nas ruas e bárbara repressão.

Apesar da instabilidade inerente a essa antinomia – sociedade vibrante versus Estado repressor – as perspectivas de mudança do regime são remotas. Aos surtos liberalizantes de líderes reformistas como Rafsanjani, Khatami e Rouhani, se opõem presidentes autoritários, como Ahmadinejad e Raisi, abençoados pelo líder supremo Khamenei e protegidos pelas armas da Guarda Revolucionária.

A morte de Raisi gera incertezas derivadas da próxima eleição para presidente da República, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho, o aiatolá Mojtaba. Além de preferido do líder supremo, sempre foi próximo e aliado dos guardas revolucionários, ou seja, tem o firme apoio dos dois pilares do regime – clerical e militar.

Assim, apesar de robustos protestos populares, o quadro doméstico tende a consolidar o regime. Eventuais mudanças de rumo deverão depender sobretudo da política externa iraniana em relação ao conflito entre Israel e Hamas e à guerra entre Ucrânia e Rússia, aspectos a serem examinados na segunda parte deste artigo.

A morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi, em 20 de maio, por acidente de helicóptero, vai tumultuar o processo sucessório da Presidência da República e do líder supremo Ali Khamenei, de 83 anos (Raisi era seu provável sucessor), mas não deverá alterar as linhas básicas do regime.

Dois fatores devem continuar a ditar os rumos da República Islâmica: a relação, historicamente conflituosa, entre o presidente e o líder supremo; e o envolvimento do Irã nos conflitos do Oriente Médio, em especial com Estados Unidos, Israel e seus proxies.

Desde a proclamação do Governo Revolucionário Provisório, em 5 de fevereiro de 1979, a rivalidade central do sistema político iraniano reside na difícil relação entre o presidente da República, eleito pelo povo, e o líder supremo, escolhido pela hierarquia religiosa – inicialmente Khomeini, ungido pelo carisma divino da Revolução em 1979 e, dez anos depois, Khamenei.

Imagem mostra o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, após depositar o voto na eleição presidencial em Teerã nesta sexta-feira, 28. País escolhe novo presidente após morte de Ebrahim Raisi Foto: Vahid Salemi/AP

Nas ocasiões em que o presidente eleito tinha forte apoio popular e adotava medidas liberalizantes, a rivalidade entre os dois líderes se agravava. Isso ocorreu já no primeiro governo, liderado por Bazargan (indicado primeiro-ministro por Khomeini), e prosseguiu com presidentes conhecidos pelo perfil reformista, como Rafsanjani, Khatami e Rouhani.

Em contraste, presidentes eleitos em pleitos manipulados pela hierarquia religiosa, como Ahmadinejad e Raisi, mantinham relação mais amistosa com o líder supremo. No caso de Raisi, a lealdade a Khamenei foi tão acentuada, a ponto de ficar conhecido como “Yes Man” e até ser cogitado para sucedê-lo.

Os presidentes reformistas tiveram mandatos com o seguinte perfil: defesa das liberdades civis, políticas e das instituições democráticas; limitação dos monopólios e abertura da economia; maior inserção na comunidade internacional; relações amistosas com o Ocidente; limites ao poder político e econômico do Estado paralelo, principalmente dos IRGC (Iranian Revolutionary Guards Corps) e do líder supremo.

Essas propostas reformistas avançaram de forma muito limitada, em clima de visível tensão com a teocracia do líder supremo e o militarismo dos IRGC. Nos mandatos dos três líderes reformistas acima indicados, a abertura ao mundo era um projeto comum, mas em grande medida fracassado.

Rafsanjani se tornou presidente dez anos após a vitória da Revolução e governou por oito anos (1989-1997). Foi sucedido por Khatami, que assumiu após esmagadora vitória eleitoral, combateu o poder do Estado paralelo e foi por ele antagonizado, defendeu a liberdade de imprensa, os intelectuais e pregou o pluralismo religioso.

Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, procurou combater o militarismo do regime (IRGC), o extremismo religioso e valorizou quadros técnicos que passaram a ocupar posições de relevo no governo. Em 2015, teve o grande mérito de concluir, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha (P5+1), a negociação do controvertido programa nuclear iraniano, com a assinatura do JCPA- Joint Comprehensive Plan of Action.

Apesar das limitadas conquistas concretas desses três líderes, o regime tinha avanços e não se fechava inteiramente. Essa percepção começou a se desfazer nos mandatos de dois líderes autoritários, avessos à inserção internacional do país e eleitos em pleitos com sérias acusações de fraude – Ahmadinejad e Raisi.

Ahmadinejad, derrotado em pleito anterior por Rafsanjani, foi eleito com o apoio irrestrito de Khamenei e da Guarda Revolucionária. Seu mandato acirrou as tensões do Irã com o Ocidente, o programa nuclear avançou independente dos controles da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e as sanções agravaram as condições de vida da população iraniana. As manifestações de protesto se agigantaram e a repressão se tornou ainda mais violenta.

A eleição de Raisi, contestada como a de Ahmadinejad, rompeu de forma mais ostensiva com a tradicional rivalidade entre o presidente e o líder supremo. Dos cinco Presidentes ao longo dos mais de trinta anos do mandato de Khamenei, Raisi foi sem dúvida o mais leal, o Yes Man cotado para sucedê-lo. Seu currículo traz marcas de implacável perseguição a ativistas, mulheres e opositores do regime. Em contraste com Rouhani, que procurava colocar limites ao protagonismo do governo paralelo – comandado por Khamenei e com o respaldo militar dos Guardas Revolucionários (IRGC) -, Raisi assumiu o papel de refém desses dois atores.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje. O Irã da época da revolução era um país de 34 milhões de habitantes, metade vivendo no campo, que tinha como amálgamas o fervor religioso, a esperança de liberdade e a fé no líder supremo. O Irã de hoje é uma sociedade muito mais complexa e insatisfeita, de quase 90 milhões de pessoas, 75% urbana, ampla predominância de jovens, acelerado crescimento de universitários, inclusive de mulheres.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje

Se a sociedade revelou essa gigantesca transformação, o sistema político continuou fechado, dominado por uma hierarquia religiosa avessa a mudanças. Assim, é impactante o contraste entre, por um lado, uma sociedade dinâmica, vibrante, e, por outro, um Estado fechado, imobilizado. O resultado tem sido de milhões de manifestantes nas ruas e bárbara repressão.

Apesar da instabilidade inerente a essa antinomia – sociedade vibrante versus Estado repressor – as perspectivas de mudança do regime são remotas. Aos surtos liberalizantes de líderes reformistas como Rafsanjani, Khatami e Rouhani, se opõem presidentes autoritários, como Ahmadinejad e Raisi, abençoados pelo líder supremo Khamenei e protegidos pelas armas da Guarda Revolucionária.

A morte de Raisi gera incertezas derivadas da próxima eleição para presidente da República, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho, o aiatolá Mojtaba. Além de preferido do líder supremo, sempre foi próximo e aliado dos guardas revolucionários, ou seja, tem o firme apoio dos dois pilares do regime – clerical e militar.

Assim, apesar de robustos protestos populares, o quadro doméstico tende a consolidar o regime. Eventuais mudanças de rumo deverão depender sobretudo da política externa iraniana em relação ao conflito entre Israel e Hamas e à guerra entre Ucrânia e Rússia, aspectos a serem examinados na segunda parte deste artigo.

A morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi, em 20 de maio, por acidente de helicóptero, vai tumultuar o processo sucessório da Presidência da República e do líder supremo Ali Khamenei, de 83 anos (Raisi era seu provável sucessor), mas não deverá alterar as linhas básicas do regime.

Dois fatores devem continuar a ditar os rumos da República Islâmica: a relação, historicamente conflituosa, entre o presidente e o líder supremo; e o envolvimento do Irã nos conflitos do Oriente Médio, em especial com Estados Unidos, Israel e seus proxies.

Desde a proclamação do Governo Revolucionário Provisório, em 5 de fevereiro de 1979, a rivalidade central do sistema político iraniano reside na difícil relação entre o presidente da República, eleito pelo povo, e o líder supremo, escolhido pela hierarquia religiosa – inicialmente Khomeini, ungido pelo carisma divino da Revolução em 1979 e, dez anos depois, Khamenei.

Imagem mostra o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, após depositar o voto na eleição presidencial em Teerã nesta sexta-feira, 28. País escolhe novo presidente após morte de Ebrahim Raisi Foto: Vahid Salemi/AP

Nas ocasiões em que o presidente eleito tinha forte apoio popular e adotava medidas liberalizantes, a rivalidade entre os dois líderes se agravava. Isso ocorreu já no primeiro governo, liderado por Bazargan (indicado primeiro-ministro por Khomeini), e prosseguiu com presidentes conhecidos pelo perfil reformista, como Rafsanjani, Khatami e Rouhani.

Em contraste, presidentes eleitos em pleitos manipulados pela hierarquia religiosa, como Ahmadinejad e Raisi, mantinham relação mais amistosa com o líder supremo. No caso de Raisi, a lealdade a Khamenei foi tão acentuada, a ponto de ficar conhecido como “Yes Man” e até ser cogitado para sucedê-lo.

Os presidentes reformistas tiveram mandatos com o seguinte perfil: defesa das liberdades civis, políticas e das instituições democráticas; limitação dos monopólios e abertura da economia; maior inserção na comunidade internacional; relações amistosas com o Ocidente; limites ao poder político e econômico do Estado paralelo, principalmente dos IRGC (Iranian Revolutionary Guards Corps) e do líder supremo.

Essas propostas reformistas avançaram de forma muito limitada, em clima de visível tensão com a teocracia do líder supremo e o militarismo dos IRGC. Nos mandatos dos três líderes reformistas acima indicados, a abertura ao mundo era um projeto comum, mas em grande medida fracassado.

Rafsanjani se tornou presidente dez anos após a vitória da Revolução e governou por oito anos (1989-1997). Foi sucedido por Khatami, que assumiu após esmagadora vitória eleitoral, combateu o poder do Estado paralelo e foi por ele antagonizado, defendeu a liberdade de imprensa, os intelectuais e pregou o pluralismo religioso.

Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, procurou combater o militarismo do regime (IRGC), o extremismo religioso e valorizou quadros técnicos que passaram a ocupar posições de relevo no governo. Em 2015, teve o grande mérito de concluir, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha (P5+1), a negociação do controvertido programa nuclear iraniano, com a assinatura do JCPA- Joint Comprehensive Plan of Action.

Apesar das limitadas conquistas concretas desses três líderes, o regime tinha avanços e não se fechava inteiramente. Essa percepção começou a se desfazer nos mandatos de dois líderes autoritários, avessos à inserção internacional do país e eleitos em pleitos com sérias acusações de fraude – Ahmadinejad e Raisi.

Ahmadinejad, derrotado em pleito anterior por Rafsanjani, foi eleito com o apoio irrestrito de Khamenei e da Guarda Revolucionária. Seu mandato acirrou as tensões do Irã com o Ocidente, o programa nuclear avançou independente dos controles da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e as sanções agravaram as condições de vida da população iraniana. As manifestações de protesto se agigantaram e a repressão se tornou ainda mais violenta.

A eleição de Raisi, contestada como a de Ahmadinejad, rompeu de forma mais ostensiva com a tradicional rivalidade entre o presidente e o líder supremo. Dos cinco Presidentes ao longo dos mais de trinta anos do mandato de Khamenei, Raisi foi sem dúvida o mais leal, o Yes Man cotado para sucedê-lo. Seu currículo traz marcas de implacável perseguição a ativistas, mulheres e opositores do regime. Em contraste com Rouhani, que procurava colocar limites ao protagonismo do governo paralelo – comandado por Khamenei e com o respaldo militar dos Guardas Revolucionários (IRGC) -, Raisi assumiu o papel de refém desses dois atores.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje. O Irã da época da revolução era um país de 34 milhões de habitantes, metade vivendo no campo, que tinha como amálgamas o fervor religioso, a esperança de liberdade e a fé no líder supremo. O Irã de hoje é uma sociedade muito mais complexa e insatisfeita, de quase 90 milhões de pessoas, 75% urbana, ampla predominância de jovens, acelerado crescimento de universitários, inclusive de mulheres.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje

Se a sociedade revelou essa gigantesca transformação, o sistema político continuou fechado, dominado por uma hierarquia religiosa avessa a mudanças. Assim, é impactante o contraste entre, por um lado, uma sociedade dinâmica, vibrante, e, por outro, um Estado fechado, imobilizado. O resultado tem sido de milhões de manifestantes nas ruas e bárbara repressão.

Apesar da instabilidade inerente a essa antinomia – sociedade vibrante versus Estado repressor – as perspectivas de mudança do regime são remotas. Aos surtos liberalizantes de líderes reformistas como Rafsanjani, Khatami e Rouhani, se opõem presidentes autoritários, como Ahmadinejad e Raisi, abençoados pelo líder supremo Khamenei e protegidos pelas armas da Guarda Revolucionária.

A morte de Raisi gera incertezas derivadas da próxima eleição para presidente da República, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho, o aiatolá Mojtaba. Além de preferido do líder supremo, sempre foi próximo e aliado dos guardas revolucionários, ou seja, tem o firme apoio dos dois pilares do regime – clerical e militar.

Assim, apesar de robustos protestos populares, o quadro doméstico tende a consolidar o regime. Eventuais mudanças de rumo deverão depender sobretudo da política externa iraniana em relação ao conflito entre Israel e Hamas e à guerra entre Ucrânia e Rússia, aspectos a serem examinados na segunda parte deste artigo.

A morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi, em 20 de maio, por acidente de helicóptero, vai tumultuar o processo sucessório da Presidência da República e do líder supremo Ali Khamenei, de 83 anos (Raisi era seu provável sucessor), mas não deverá alterar as linhas básicas do regime.

Dois fatores devem continuar a ditar os rumos da República Islâmica: a relação, historicamente conflituosa, entre o presidente e o líder supremo; e o envolvimento do Irã nos conflitos do Oriente Médio, em especial com Estados Unidos, Israel e seus proxies.

Desde a proclamação do Governo Revolucionário Provisório, em 5 de fevereiro de 1979, a rivalidade central do sistema político iraniano reside na difícil relação entre o presidente da República, eleito pelo povo, e o líder supremo, escolhido pela hierarquia religiosa – inicialmente Khomeini, ungido pelo carisma divino da Revolução em 1979 e, dez anos depois, Khamenei.

Imagem mostra o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, após depositar o voto na eleição presidencial em Teerã nesta sexta-feira, 28. País escolhe novo presidente após morte de Ebrahim Raisi Foto: Vahid Salemi/AP

Nas ocasiões em que o presidente eleito tinha forte apoio popular e adotava medidas liberalizantes, a rivalidade entre os dois líderes se agravava. Isso ocorreu já no primeiro governo, liderado por Bazargan (indicado primeiro-ministro por Khomeini), e prosseguiu com presidentes conhecidos pelo perfil reformista, como Rafsanjani, Khatami e Rouhani.

Em contraste, presidentes eleitos em pleitos manipulados pela hierarquia religiosa, como Ahmadinejad e Raisi, mantinham relação mais amistosa com o líder supremo. No caso de Raisi, a lealdade a Khamenei foi tão acentuada, a ponto de ficar conhecido como “Yes Man” e até ser cogitado para sucedê-lo.

Os presidentes reformistas tiveram mandatos com o seguinte perfil: defesa das liberdades civis, políticas e das instituições democráticas; limitação dos monopólios e abertura da economia; maior inserção na comunidade internacional; relações amistosas com o Ocidente; limites ao poder político e econômico do Estado paralelo, principalmente dos IRGC (Iranian Revolutionary Guards Corps) e do líder supremo.

Essas propostas reformistas avançaram de forma muito limitada, em clima de visível tensão com a teocracia do líder supremo e o militarismo dos IRGC. Nos mandatos dos três líderes reformistas acima indicados, a abertura ao mundo era um projeto comum, mas em grande medida fracassado.

Rafsanjani se tornou presidente dez anos após a vitória da Revolução e governou por oito anos (1989-1997). Foi sucedido por Khatami, que assumiu após esmagadora vitória eleitoral, combateu o poder do Estado paralelo e foi por ele antagonizado, defendeu a liberdade de imprensa, os intelectuais e pregou o pluralismo religioso.

Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, procurou combater o militarismo do regime (IRGC), o extremismo religioso e valorizou quadros técnicos que passaram a ocupar posições de relevo no governo. Em 2015, teve o grande mérito de concluir, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha (P5+1), a negociação do controvertido programa nuclear iraniano, com a assinatura do JCPA- Joint Comprehensive Plan of Action.

Apesar das limitadas conquistas concretas desses três líderes, o regime tinha avanços e não se fechava inteiramente. Essa percepção começou a se desfazer nos mandatos de dois líderes autoritários, avessos à inserção internacional do país e eleitos em pleitos com sérias acusações de fraude – Ahmadinejad e Raisi.

Ahmadinejad, derrotado em pleito anterior por Rafsanjani, foi eleito com o apoio irrestrito de Khamenei e da Guarda Revolucionária. Seu mandato acirrou as tensões do Irã com o Ocidente, o programa nuclear avançou independente dos controles da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e as sanções agravaram as condições de vida da população iraniana. As manifestações de protesto se agigantaram e a repressão se tornou ainda mais violenta.

A eleição de Raisi, contestada como a de Ahmadinejad, rompeu de forma mais ostensiva com a tradicional rivalidade entre o presidente e o líder supremo. Dos cinco Presidentes ao longo dos mais de trinta anos do mandato de Khamenei, Raisi foi sem dúvida o mais leal, o Yes Man cotado para sucedê-lo. Seu currículo traz marcas de implacável perseguição a ativistas, mulheres e opositores do regime. Em contraste com Rouhani, que procurava colocar limites ao protagonismo do governo paralelo – comandado por Khamenei e com o respaldo militar dos Guardas Revolucionários (IRGC) -, Raisi assumiu o papel de refém desses dois atores.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje. O Irã da época da revolução era um país de 34 milhões de habitantes, metade vivendo no campo, que tinha como amálgamas o fervor religioso, a esperança de liberdade e a fé no líder supremo. O Irã de hoje é uma sociedade muito mais complexa e insatisfeita, de quase 90 milhões de pessoas, 75% urbana, ampla predominância de jovens, acelerado crescimento de universitários, inclusive de mulheres.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje

Se a sociedade revelou essa gigantesca transformação, o sistema político continuou fechado, dominado por uma hierarquia religiosa avessa a mudanças. Assim, é impactante o contraste entre, por um lado, uma sociedade dinâmica, vibrante, e, por outro, um Estado fechado, imobilizado. O resultado tem sido de milhões de manifestantes nas ruas e bárbara repressão.

Apesar da instabilidade inerente a essa antinomia – sociedade vibrante versus Estado repressor – as perspectivas de mudança do regime são remotas. Aos surtos liberalizantes de líderes reformistas como Rafsanjani, Khatami e Rouhani, se opõem presidentes autoritários, como Ahmadinejad e Raisi, abençoados pelo líder supremo Khamenei e protegidos pelas armas da Guarda Revolucionária.

A morte de Raisi gera incertezas derivadas da próxima eleição para presidente da República, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho, o aiatolá Mojtaba. Além de preferido do líder supremo, sempre foi próximo e aliado dos guardas revolucionários, ou seja, tem o firme apoio dos dois pilares do regime – clerical e militar.

Assim, apesar de robustos protestos populares, o quadro doméstico tende a consolidar o regime. Eventuais mudanças de rumo deverão depender sobretudo da política externa iraniana em relação ao conflito entre Israel e Hamas e à guerra entre Ucrânia e Rússia, aspectos a serem examinados na segunda parte deste artigo.

A morte do presidente iraniano Ebrahim Raisi, em 20 de maio, por acidente de helicóptero, vai tumultuar o processo sucessório da Presidência da República e do líder supremo Ali Khamenei, de 83 anos (Raisi era seu provável sucessor), mas não deverá alterar as linhas básicas do regime.

Dois fatores devem continuar a ditar os rumos da República Islâmica: a relação, historicamente conflituosa, entre o presidente e o líder supremo; e o envolvimento do Irã nos conflitos do Oriente Médio, em especial com Estados Unidos, Israel e seus proxies.

Desde a proclamação do Governo Revolucionário Provisório, em 5 de fevereiro de 1979, a rivalidade central do sistema político iraniano reside na difícil relação entre o presidente da República, eleito pelo povo, e o líder supremo, escolhido pela hierarquia religiosa – inicialmente Khomeini, ungido pelo carisma divino da Revolução em 1979 e, dez anos depois, Khamenei.

Imagem mostra o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, após depositar o voto na eleição presidencial em Teerã nesta sexta-feira, 28. País escolhe novo presidente após morte de Ebrahim Raisi Foto: Vahid Salemi/AP

Nas ocasiões em que o presidente eleito tinha forte apoio popular e adotava medidas liberalizantes, a rivalidade entre os dois líderes se agravava. Isso ocorreu já no primeiro governo, liderado por Bazargan (indicado primeiro-ministro por Khomeini), e prosseguiu com presidentes conhecidos pelo perfil reformista, como Rafsanjani, Khatami e Rouhani.

Em contraste, presidentes eleitos em pleitos manipulados pela hierarquia religiosa, como Ahmadinejad e Raisi, mantinham relação mais amistosa com o líder supremo. No caso de Raisi, a lealdade a Khamenei foi tão acentuada, a ponto de ficar conhecido como “Yes Man” e até ser cogitado para sucedê-lo.

Os presidentes reformistas tiveram mandatos com o seguinte perfil: defesa das liberdades civis, políticas e das instituições democráticas; limitação dos monopólios e abertura da economia; maior inserção na comunidade internacional; relações amistosas com o Ocidente; limites ao poder político e econômico do Estado paralelo, principalmente dos IRGC (Iranian Revolutionary Guards Corps) e do líder supremo.

Essas propostas reformistas avançaram de forma muito limitada, em clima de visível tensão com a teocracia do líder supremo e o militarismo dos IRGC. Nos mandatos dos três líderes reformistas acima indicados, a abertura ao mundo era um projeto comum, mas em grande medida fracassado.

Rafsanjani se tornou presidente dez anos após a vitória da Revolução e governou por oito anos (1989-1997). Foi sucedido por Khatami, que assumiu após esmagadora vitória eleitoral, combateu o poder do Estado paralelo e foi por ele antagonizado, defendeu a liberdade de imprensa, os intelectuais e pregou o pluralismo religioso.

Rouhani, eleito em 2013 e reeleito em 2017, procurou combater o militarismo do regime (IRGC), o extremismo religioso e valorizou quadros técnicos que passaram a ocupar posições de relevo no governo. Em 2015, teve o grande mérito de concluir, com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha (P5+1), a negociação do controvertido programa nuclear iraniano, com a assinatura do JCPA- Joint Comprehensive Plan of Action.

Apesar das limitadas conquistas concretas desses três líderes, o regime tinha avanços e não se fechava inteiramente. Essa percepção começou a se desfazer nos mandatos de dois líderes autoritários, avessos à inserção internacional do país e eleitos em pleitos com sérias acusações de fraude – Ahmadinejad e Raisi.

Ahmadinejad, derrotado em pleito anterior por Rafsanjani, foi eleito com o apoio irrestrito de Khamenei e da Guarda Revolucionária. Seu mandato acirrou as tensões do Irã com o Ocidente, o programa nuclear avançou independente dos controles da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e as sanções agravaram as condições de vida da população iraniana. As manifestações de protesto se agigantaram e a repressão se tornou ainda mais violenta.

A eleição de Raisi, contestada como a de Ahmadinejad, rompeu de forma mais ostensiva com a tradicional rivalidade entre o presidente e o líder supremo. Dos cinco Presidentes ao longo dos mais de trinta anos do mandato de Khamenei, Raisi foi sem dúvida o mais leal, o Yes Man cotado para sucedê-lo. Seu currículo traz marcas de implacável perseguição a ativistas, mulheres e opositores do regime. Em contraste com Rouhani, que procurava colocar limites ao protagonismo do governo paralelo – comandado por Khamenei e com o respaldo militar dos Guardas Revolucionários (IRGC) -, Raisi assumiu o papel de refém desses dois atores.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje. O Irã da época da revolução era um país de 34 milhões de habitantes, metade vivendo no campo, que tinha como amálgamas o fervor religioso, a esperança de liberdade e a fé no líder supremo. O Irã de hoje é uma sociedade muito mais complexa e insatisfeita, de quase 90 milhões de pessoas, 75% urbana, ampla predominância de jovens, acelerado crescimento de universitários, inclusive de mulheres.

O conflito doméstico entre presidente e líder supremo reflete a conhecida rivalidade Estado versus sociedade civil, seriamente agravada pelo contraste entre o Irã da revolução e o de hoje

Se a sociedade revelou essa gigantesca transformação, o sistema político continuou fechado, dominado por uma hierarquia religiosa avessa a mudanças. Assim, é impactante o contraste entre, por um lado, uma sociedade dinâmica, vibrante, e, por outro, um Estado fechado, imobilizado. O resultado tem sido de milhões de manifestantes nas ruas e bárbara repressão.

Apesar da instabilidade inerente a essa antinomia – sociedade vibrante versus Estado repressor – as perspectivas de mudança do regime são remotas. Aos surtos liberalizantes de líderes reformistas como Rafsanjani, Khatami e Rouhani, se opõem presidentes autoritários, como Ahmadinejad e Raisi, abençoados pelo líder supremo Khamenei e protegidos pelas armas da Guarda Revolucionária.

A morte de Raisi gera incertezas derivadas da próxima eleição para presidente da República, acelera a sucessão de Khamenei e aumenta as chances de que o escolhido seja seu filho, o aiatolá Mojtaba. Além de preferido do líder supremo, sempre foi próximo e aliado dos guardas revolucionários, ou seja, tem o firme apoio dos dois pilares do regime – clerical e militar.

Assim, apesar de robustos protestos populares, o quadro doméstico tende a consolidar o regime. Eventuais mudanças de rumo deverão depender sobretudo da política externa iraniana em relação ao conflito entre Israel e Hamas e à guerra entre Ucrânia e Rússia, aspectos a serem examinados na segunda parte deste artigo.

Opinião por Sergio Abreu e Lima Florêncio

é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.