Jornalistas do veículo El Faro de El Salvador entraram nesta quarta-feira, 30, com uma ação em uma corte dos Estados Unidos contra a empresa isralenese NSO Group, fabricante do spyware Pegasus, que tem sido utilizado por vários governos autocráticos para vigiar jornalistas e ativistas. Ao menos 22 jornalistas do veículo tiveram seus telefones infectados desde o início do governo de Nayib Bukele, que preside o país sob um estado de exceção que já dura oito meses.
Entre os telefones espionados estava o de Julia Gavarrete, repórter do El Faro que chega ao Brasil esta semana para participar do Festival Piauí de Jornalismo. Em entrevista exclusiva ao Estadão, Gavarrete relatou os desafios de atuar sob um regime que ameaça prender jornalistas que reportam sobre as gangues e a política de guerra às drogas e espiona jornalistas que investiga o governo.
Em mais um sinal de endurecimento da política de sua política de repressão, Bukele anunciou na última semana um cerco completo às grandes cidades para “prender terroristas”. Desde o início, o estado de exceção no país já prendeu mais de 58 mil pessoas e gerou condenação internacional. Em meio a este cenário, o trabalho jornalístico se tornou uma atividade de risco, relata a jornalista. Confira trechos da entrevista:
Neste mês de novembro, o estado de exceção em El Salvador completou oito meses, embora a aprovação inicial pela Assembleia Nacional falasse em apenas um mês. Como tem sido a atuação jornalística durante o governo de Nayib Bukele?
É um cenário muito complexo porque não estamos apenas tentando contar histórias de uma El Salvador que sofre violência social por parte das gangues - o que já era algo que em muitas ocasiões era complexo porque não podíamos ir a comunidades onde havia controle de gangues, por exemplo - mas agora estamos diante de um governo que está controlando a narrativa através de uma série de elementos e recursos que lhes permitem impor suas próprias informações, à sua própria maneira.
Nós, do jornalismo independente, continuamos tentando fazer nosso trabalho mesmo quando há ameaças ou ataques até nas redes sociais, algo que talvez possa ser comparado ao que vocês experimentaram com o fenômeno Bolsonaro no Brasil. Mas há também uma série de assédios que estão aumentando, por exemplo, o El Faro está sendo acusado pelo próprio governo de crimes muito específicos, como lavagem de dinheiro. Existe uma espécie de rastreamento dos jornalistas. E estamos no meio de tudo isso tentando fazer jornalismo.
Estamos trabalhando nos sentindo encurralados, especialmente porque o governo também está criando um cenário legal no qual ele faz reformas e cria leis que levam a qualquer jornalista que escreva sobre gangues a parar na prisão por 15 anos. É a chamada lei da mordaça, e entre outras legislações como as reformas das leis de telecomunicações ou outros tipos de leis que além de tudo legalizam a espionagem por parte do Estado. Há muitas peças que estão simplesmente sendo movidas para manter o jornalismo sob constante ameaça e sob constante ataque.
Você e outros 21 colegas do El Faro foram alvos do Pegasus, que é um spyware que a própria empresa fabricante diz vender apenas para governos. Como isso aconteceu?
O Pegasus talvez tenha sido um dos fatos mais contundentes dos ataques aos jornalistas. Este programa não tem sido usado só contra nós, mas também contra ativistas e defensores dos direitos humanos. Para mim, o que torna este um dos ataques mais perigosos ao jornalismo é a capacidade do Pegasus de controlar e monitorar uma pessoa. Todos os movimentos que esta pessoa registra com seu celular estão sendo transferidos diretamente para aqueles que estão por trás desta espionagem. Podem ver as trocas de mensagens entre jornalistas e fontes ou o que fazemos e falamos com nossas próprias famílias ou toda a informação que pode ir de uma fotografia a um lugar que frequentamos.
Este tipo de ataque não só coloca o jornalismo em risco, porque estamos falando de um programa que foi até mesmo utilizado contra jornalistas que foram assassinados, mas também estamos falando de como este programa tem a capacidade de tirar informações de outras pessoas que estão em contato conosco.
E como vocês descobriram a espionagem? Porque a principal característica do Pegasus é justamente passar despercebido pelo dono do aparelho, não é necessário uma autorização para que ele se instale…
Dentro do El Faro eu fui a primeira a receber um “positivo” para este programa quando ele foi descoberto há mais de um ano, em setembro de 2021. Começou com uma amiga que trabalha para a revista GatoEncerrado. Ela me contou que seu celular apresentava alguns problemas técnicos e comentei que também estava tendo os mesmos problemas. Ela então fez uma análise com técnicos especializados que apontou a presença do Pegasus e logo em seguida fui eu.
Foi uma surpresa. Sabemos que há uma série de ataques presentes, mas nunca imaginaríamos que existia um programa com essa capacidade operando em um país como El Salvador. Parecia inalcançável saber que um programa tão caro poderia estar operando em El Salvador.
E como tem sido o seu trabalho depois deste episódio de espionagem?
Continuamos a fazer análises contínuas de nossos dispositivos e aparentemente eles estão livres do Pegasus. Estou neste momento em Berlim fazendo parte de um programa de segurança digital dirigido pelo Repórteres Sem Fronteiras e me candidatei precisamente porque havia acabado de detectar que eles estavam me espionando com o Pegasus. Candidatei-me cerca de dois meses depois, no ano passado, com a ideia de que não sabemos se isto vai continuar, se eles vão ser capazes de usar este tipo de programa de espionagem contra nós legalmente em algum momento. Então, o que posso fazer é tentar me treinar para evitar os riscos, a fim de evitar que as informações que eu lido, não apenas minhas informações de trabalho, mas minhas informações pessoais, corram o risco de serem capturadas.
Bukele anunciou que vai tentar a reeleição, indo contra a Constituição do país, mas que foi permitido pela Suprema Corte. Você tem esperanças de que haja alguma mudança com as eleições de 2024 ou este já é um sinal negativo para o futuro?
Acho que o próximo ano será muito pesado. O governo de Bukele passa todos os dias fazendo propaganda. Parece que seu governo já está em campanha eleitoral. Isso o torna muito forte, e sabemos que já para o próximo ano ele vai nessa direção de manter sua campanha de propaganda muito forte e muito ativa. Ele criou seu próprio jornal diário e colocou muitos recursos no canal estatal para controlar a narrativa. Ele também estudou muito bem as redes sociais, que mensagens ele tem que transmitir e onde ele tem que ir.
Nós jornalistas não somos apenas inimigos do presidente, somos inimigos do povo, porque essa é a narrativa que Bukele quer passar. Então, mudar a percepção do povo é um trabalho que ainda temos que fazer e está se tornando cada vez mais difícil porque mesmo quando são apresentadas provas, mesmo quando são realizadas mais investigações para demonstrar a corrupção e o desvio de fundos dentro do governo de Bukele, as pessoas não demonstram nenhuma mudança substancial.
Acredito que o cenário para El Salvador vai ser muito complicado, porque a tudo isso ainda se soma ao risco de uma crise econômica que é só questão de tempo para chegar. O governo tem tomado dinheiro emprestado desde a pandemia e depois investido milhões em uma política monetária onde o bitcoin é usado como moeda oficial. No final, sabemos que colocar dinheiro público em bitcoins é praticamente dar um tiro no próprio pé e piorar a complexa situação financeira que El Salvador já tem.
O problema é que esta situação financeira é uma bomba relógio. Estamos entrando em uma panela de pressão e, talvez, não seja no próximo ano porque ele está tentando se reeleger, mas acredito que a curto prazo isto pode explodir muito forte. Em algum momento, El Salvador poderá entrar em colapso.