Hong Kong, uma das cidades mais arrojadas da Ásia, está tomada atualmente por um pessimismo profundo.
O mercado de ações está com o tanque na reserva, o valor dos imóveis despencou e a emigração alimenta uma fuga de cérebros. Alguns dos restaurantes, spas e shopping centers mais badalados frequentados pelos moradores ficam do outro lado da fronteira, na cidade chinesa de Shenzhen.
“Para mim é triste afirmar, mas Hong Kong acabou”, afirmou Stephen Roach, economista e ex-presidente do Morgan Stanley Asia, em um recente comentário publicado pelo Financial Times.
O governo precisa ressuscitar a economia de Hong Kong e promover sua imagem global, mas em vez disso coloca foco principalmente em segurança nacional. Na terça-feira, Pequim movimentou-se com velocidade incomum para aprovar um novo pacote de leis atualizadas de segurança destinadas a refrear a influência estrangeira e o dissenso com penas como prisão perpétua por traição e outros crimes. A legislação poderia dissuadir ainda mais empresas estrangeiras, cuja presença já diminui, de investir em Hong Kong.
O mal estar que permeia Hong Kong é em parte consequência de seu status de ponte entre a China e o Ocidente, com o crescimento da cidade prejudicado pela economia titubeante da China continental e as tensões do país com os Estados Unidos.
Mas no centro dos problemas de Hong Kong há uma crise de identidade, conforme as autoridades municipais, apoiadas por Pequim, afastam do Ocidente a cidade independente no passado e aceitam a cultura política autoritária e o fervor nacionalista da China do presidente Xi Jinping.
“As pessoas estão muito infelizes por todo tipo de motivo”, afirmou a política Emily Lau, uma antiga defensora da democracia e ex-legisladora, que atualmente apresenta um programa de entrevistas no YouTube. “Evidentemente, as autoridades não admitirão em público, mas acho que elas conhecem bem a questão.”
Leia mais
Pequim tinha prometido a Hong Kong, uma ex-colônia britânica, manter um grau de autonomia após ser devolvida para o controle chinês, em 1997, com liberdades inexistentes na China continental. Mas após manifestações antigoverno massivas tomarem as ruas da cidade por meses em 2019, Pequim impôs uma abrangente lei de segurança nacional sobre Hong Kong em 2020, que as autoridades usaram para esmagar a oposição pró-democracia ferozmente.
Segundo a narrativa do Partido Comunista Chinês, os protestos foram impulsionados por forças ocidentais buscando minar a soberania chinesa. O líder da cidade apoiado por Pequim, John Lee, um ex-policial, define Hong Kong como uma cidade ainda cercada por forças subversivas estrangeiras.
Lee afirma que as novas leis de segurança eliminarão essas ameaças e serão “a fundação mais forte para a prosperidade e a estabilidade de Hong Kong”.
Lee e as autoridades chinesas argumentam que essas leis eram necessárias havia muito. A Lei Básica, como é chamada a mini-Constituição da cidade, determina que Hong Kong retenha seu próprio sistema político e econômico por 50 anos, mas também exige que a municipalidade, sob o Artigo 23, aprove suas próprias leis de segurança. O governo tentou aplicar o Artigo 23 pela primeira vez em 2003, mas recuou após centenas de milhares de moradores tomarem as ruas em protesto temendo que a legislação pudesse limitar liberdades civis.
Com as leis de segurança instaladas, afirmam agora as autoridades, o governo pode colocar foco em outras necessidades, como ressuscitar a economia.
Mas é incerto se Hong Kong é capaz de manter o dinamismo e a vitalidade que orientaram sua prosperidade num momento em que o controle de Pequim é tão manifesto. As novas regras também levantam dúvidas a respeito da maneira que os limites mudaram.
“Xi Jinping sabe que o Artigo 23 prejudicará a reputação de Hong Kong enquanto centro financeiro”, afirmou o analista de política chinesa Willy Lam, da Fundação Jamestown, em Washington. “Ele sabe que Pequim precisa de Hong Kong para o investimento estrangeiro, o câmbio de divisas estrangeiras e as listagens em mercados de ações. Mas ele é um líder totalmente ideológico. É muito mais importante para ele demonstrar seu poder, usar a força e emascular toda a oposição em Hong Kong.”
Quem visita Hong Kong hoje e vasculha além da superfície encontra uma cidade com uma cultura política vastamente diferente da expressão vibrante e certas vezes estridente que existia antes da atual opressão.
Agora críticos do governo e legisladores de oposição mofam na prisão. O magnata das comunicações pró-democracia Jimmy Lai aguarda julgamento acusado de violar a segurança nacional. Organizações de imprensa independentes foram forçadas a fechar. Servidores civis e professores de escolas públicas estão tendo de fazer juramentos de lealdade e ser aprovados em testes de segurança nacional.
Nem os esportes escapam da política nesse novo ambiente. No mês passado, um alarido de indignação circulou em Hong Kong após o astro do futebol Lionel Messi ficar no banco, em razão de uma contusão, durante uma partida amistosa contra um time de futebol local. O governo tinha promovido a partida do Inter Miami, para a qual muitos ingressos de centenas de dólares tinham sido vendidos, como uma maneira de ajudar a gerar animação na cidade.
Mas quando Messi ficou fora, decepcionando os fãs, a imprensa estatal e as autoridades chinesas sugeriram que o jogador tinha sido usado pelos EUA em uma conspiração destinada a causar embaraço a Hong Kong. Posteriormente, Messi postou um vídeo em redes sociais negando as alegações e professando sua afeição à China, um vídeo que alguns usuários de internet classificaram como um vídeo de refém.
Uma das vozes mais estridentes a criticar Messi foi Regina Ip, conselheira-sênior do governo de Hong Kong e legisladora pró-Pequim de longa data. “O povo de Hong Kong odeia Messi, o Inter Miami e a mão negra por trás deles pela desfeita deliberada e calculada a Hong Kong”, escreveu ela no X, anteriormente conhecido como Twitter.
A controvérsia em torno de Messi foi um exemplo evidente de uma atmosfera oficial crescentemente irritadiça — e esse caso não foi nenhuma exceção.
Ip também criticou Roach, o economista, por seu comentário “Hong Kong acabou” no Financial Times, afirmando que ele ignorou as causas reais das agruras econômicas do polo financeiro, que ela atribuiu a políticas americanas como as elevações nas taxas de juros federais. Outras autoridades graduadas acusaram Roach de disseminar alarmismo.
Em resposta às críticas, Roach escreveu um comentário no South China Morning Post, um jornal de Hong Kong, argumentando que falta à cidade dinamismo para superar o controle político cada vez mais rígido de Pequim, mencionando as tensões geopolíticas com os EUA e ressaltando o declínio prolongado do ritmo de crescimento econômico da China.
“A energia e o otimismo desenfreado que no passado foram a característica mais notória de Hong Kong, seu ativo mais importante, foram enfraquecidos”, escreveu Roach.
Autoridades da cidade criticam frequentemente governos estrangeiros, diplomatas e a imprensa por qualquer crítica às políticas de Hong Kong. Nem vozes do establishment de Hong Kong são poupadas de reprimendas.
Quando um legislador pró-Pequim reclamou que policiais estavam emitindo multas demais, Lee o censurou pelo que qualificou como um ato de “resistência branda”.
As autoridades têm usado esse termo para descrever desafios subliminares e passivos contra o governo. De acordo com Lee, esses desafios incluem queixas de que Hong Kong coloca foco demais sobre segurança nacional.
O Artigo 23 é destinado a extirpar essa “resistência branda”, afirmaram as autoridades, assim como a suprir espaços indefinidos na lei de segurança nacional que a China impôs diretamente. As leis definem cinco violações: traição, insurreição, sabotagem, interferência externa e roubo de segredos de Estado e espionagem.
Juristas e grupos comerciais afirmam que a terminologia ampla e frequentemente vaga das leis cria possíveis riscos para empresas que operam em Hong Kong ou pensam em investir na cidade. O governo teve dificuldades este mês para negar relatos de que considera o banimento do Facebook e do YouTube parte da legislação.
“Um fluxo irrestrito de informações é crucial para a cidade manter seu status de centro financeiro asiático”, afirmou Wang Xiangwei, professor associado de jornalismo da Universidade Batista de Hong Kong, em um editorial publicado na segunda-feira pelo South China Morning Post, onde ele trabalhou no passado como editor-chefe.
A incerteza fez algumas empresas estrangeiras começarem a agir em Hong Kong da mesma forma que na China continental. Os executivos começaram a usar telefones descartáveis e limitar o acesso de empregados a bases de dados globais de suas corporações.
Mark Lee, nascido em Hong Kong, afirmou que quanto mais sua cidade lembra a China continental, mais ele sente vontade de emigrar para o exterior. O personal trainer de 36 disse que, nos últimos anos, cerca de um quarto das 200 pessoas que participavam de seu grupo de WhatsApp para organizar corridas e sessões de exercícios tinha deixado Hong Kong. Ele é relutante em relação à ideia de ter um filho porque se preocupa com o sistema de educação pública de Hong Kong, onde matérias sobre segurança nacional são obrigatórias. “Quando Hong Kong não for mais minha cidade, eu terei de partir”, afirmou Lee. Essas mudanças, acrescentou ele, parecem uma “morte por mil cortes”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO