Em Israel, o pior para a democracia ainda está por vir; leia a análise


Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos

Por Adam Shinar

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

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Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

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Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

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Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

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Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

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Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

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Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

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