Quase um mês após o agravamento da crise diplomática entre Brasil e Nicarágua, que resultou na expulsão de diplomatas dos dois países, um brasileiro foi impedido de entrar na Nicarágua ao tentar atravessar a fronteira que liga a Costa Rica ao país. Em entrevista ao Estadão, o publicitário Marcel Guariglia relatou que, durante uma expedição pela América Central, foi barrado ao tentar cruzar a fronteira nicaraguense.
No domingo, 1º, ao chegar à fronteira com sua equipe, Guariglia foi informado de que não tinha autorização para entrar no país e deveria aguardar um comunicado. “Nossa produção entrou em contato por telefone. Eles disseram: ‘Somos um território soberano e não devemos justificativas’”, relatou.
Guariglia, que atua com produção audiovisual há 22 anos, estava conduzindo uma expedição destinada a documentar iniciativas sustentáveis em 18 países das Américas, do extremo Sul, Ushuaia, ao extremo norte, Alasca. Ele pretendia registrar um projeto de economia circular em uma comunidade rural da Nicarágua, mas diante de advertências do governo local antes mesmo da viagem se realizar, sua equipe optou por desistir de qualquer gravação no país antes mesmo de cruzar a fronteira.
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Segundo o publicitário, a documentação necessária para atravessar as fronteiras foi preparada com antecedência. “Há um ano começamos a levantar os documentos para cada país”, explicou. “Três dias antes de cruzarmos a fronteira, fomos informados de que não poderíamos gravar”, conta. Ele acrescentou que antes disso, o governo nicaraguense havia entrado em contato com o projeto que seria filmado para confirmar se era verdadeiro o objetivo da expedição de Guariglia.
O relato surgem em meio a uma crescente tensão entre os dois governos. No início de agosto, o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, expulsou de Manágua o embaixador brasileiro Breno de Souza Dias. Valendo-se do princípio da reciprocidade, o governo Luiz Inácio Lula da Silva decidiu expulsar no dia 8 de agosto, a embaixadora da Nicarágua no Brasil, Fulvia Patricia Castro Matu.
A ordem da ditadura Ortega para expulsar o embaixador brasileiro foi uma retaliação pela ausência do diplomata brasileiro na celebração dos 45 anos da Revolução Sandinista. O gesto marcou o distanciamento entre Lula e Ortega, outrora próximos, uma relação tensionada pela perseguição a líderes católicos na Nicarágua. Com a vitória fraudada de Nicolás Maduro na Venezuela, os mandatários voltaram a trocar farpas — Ortega chegou a relembrar a Operação Lava Jato ao criticar Lula.
Guariglia relatou que procurou o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que o orientou a tratar diretamente com a Embaixada do Brasil na Nicarágua. No entanto, segundo ele, a embaixada afirmou que não poderia prestar assistência no caso.
Procurado pelo Estadão, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que a Nicarágua possui a prerrogativa soberana de Estado, que o reserva o direito de negar a entrada de estrangeiros, mesmo possuindo visto. De acordo com a pasta, a Embaixada não foi notificada pelo governo nicaraguense sobre o caso e o governo brasileiro não tem conhecimento de outros casos de brasileiros que tenham sido barrados na fronteira da Nicarágua recentemente.
Repressão a jornalistas
O publicitário acredita que o caráter da expedição, que aborda temas como sustentabilidade e direitos humanos, pode ter sido visto como uma ameaça pelo governo nicaraguense. “Eles interpretam uma produção dessa como uma ameaça em um país com um regime tão extremista”, afirmou.
O governo de Ortega endureceu a legislação e a repressão após os protestos de oposição em 2018 que deixaram mais de 300 mortos. Desde então, cerca de 5.500 ONGs foram fechadas sob a alegação de não reportarem sua situação financeira e seus bens foram confiscados. Ortega culpa parte dessas instituições, como aquelas
Guariglia já havia cruzado a fronteira da Nicarágua em 2017, quando foi proibido de entrar no país com drones — episódio que se repetiu nesta semana. Na época, o equipamento foi retido pelas autoridades, mas depois liberado sob a condição de que um oficial do governo acompanhasse a equipe durante a travessia do país. “Foi uma exceção da exceção”, lembrou Marcelo, destacando a rigidez das regras do país.
“Tem um aspecto caráter da nossa expedição e da nossa produção. Se gente estivesse cruzando só como como turista, sem uma quantidade de equipamentos, sem sermos interpretados como jornalistas, a gente acredita que talvez não tivesse esse problema, mas existe uma perseguição ali com jornalistas desde 2018″, diz o brasileiro.
Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol) 49 meios de comunicação foram fechados na Nicarágua e 263 jornalistas tiveram um exílio forçado desde abril de 2018. Na semana passada, a organização denunciou uma “intensificação e aumento das agressões seletivas contra jornalistas, ativistas, artistas, meios de comunicação, estudantes, clérigos, (e) opositores políticos”.
O governo do presidente Daniel Ortega deve “colocar fim ao uso arbitrário de mecanismos administrativos, legislativos, judiciais, financeiros e policiais que impedem o exercício da liberdade de expressão e outros direitos fundamentais”, declarou a SIP divulgar um relatório sobre a deterioração das liberdades no país da América Central.
A expedição está agora em um impasse logístico. Guariglia segue na Costa Rica, na capital, San José. Para seguir o plano original, a equipe precisaria cruzar a Nicarágua para chegar ao norte da América Central. Como alternativa, estão considerando transportar o veículo como carga terrestre e seguir de avião para Honduras. “Temos mais de 40 gravações agendadas daqui para frente”, explicou Marcelo.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos classificou a situação da Nicarágua como “um tema de preocupação internacional”, enquanto a ONG Repórteres Sem Fronteiras considera este cenário como “um filme de terror”.