Em meio à guerra, Rússia está encolhendo. O Kremlin diz que a culpa é da ideologia ‘sem filhos’


Um novo projeto de lei contra a ‘propaganda sem filhos’ criminaliza a defesa da opção de não ter filhos. Isso pode afetar a TV, os filmes e as postagens nas redes sociais

Por Robyn Dixon e Natalia Abbakumova

No primeiro episódio da nova temporada do reality show russo “Mãe aos 16″, retratando adolescentes que enfrentam uma gravidez indesejada, ninguém acha que o aborto é uma opção. Embora Tanya não queira ter um filho com seu namorado, Nikita, que é irresponsável, nem ela nem sua mãe considerariam tal medida — mas, ao fim do episódio, tudo está resolvido, o bebê nasce e eles vivem felizes para sempre.

Em temporadas anteriores, quando era chamado de “Grávida aos 16″, alguns personagens pelo menos abordavam o tópico do aborto, mas tal sentimento agora não é apenas reprovado na Rússia: em breve será também ilegal.

Uma nova lei contra a “propaganda sem filhos” que criminaliza a disseminação de informações defendendo a escolha de não ter filhos passou por sua primeira leitura no parlamento. A natureza da “propaganda” não é explicitamente definida, o que significa que a lei poderia proibir anunciantes, produtores de cinema e TV, blogueiros e escritores de apresentar pessoas sem filhos como satisfeitas, ou famílias grandes como miseráveis, de acordo com grupos de direitos humanos e ativistas.

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião no Kremlin  Foto: Vyacheslav Prokofyev/AP

A lei se insere no contexto de uma crise demográfica russa de longa data, na qual as mortes geralmente superam os nascimentos e a população está diminuindo e envelhecendo. A solução para o presidente Vladimir Putin é o retorno ao que o Kremlin chama de “valores russos tradicionais”, incluindo encorajar as mulheres a terem famílias grandes.

Ele disse que a crise demográfica da Rússia o “assombra”, e a enquadra como um problema crítico de segurança nacional, pois a perspectiva de declínio populacional de longo prazo traz o risco de uma perda proporcional do poder russo.

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Proibição às queixas

A proibição da propaganda da opção de não ter filhos, que os analistas veem como candidata certa a se tornar lei, faz parte de uma ampla campanha das autoridades russas para pressionar as mulheres a darem à luz muitas crianças.

Daria Serenko, cofundadora do movimento Resistência Feminista à Guerra, que deixou a Rússia, disse que era um aviso às mulheres de que seus corpos, mentes e ações estavam sob o controle do estado.

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“Esta é uma situação em que o estado quer ter o monopólio do seu corpo, da sua voz, da sua vida privada, de tudo”, disse ela. Conforme as leis a respeito da propaganda da opção de não ter filhos e do aborto se multiplicam, as mulheres relutam em defender seus direitos por causa do risco de prisão.

“Há silêncio”, disse Daria. “Isso é tabu. As mulheres não falam sobre isso. Elas têm medo. As mulheres não querem procurar os tribunais porque sabem muito bem quais serão as consequências.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa no Kremlin  Foto: Serviço de imprensa do Kremlin / AP
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A proibição da propaganda da escolha de não ter filhos pode punir as mulheres que apenas postam a respeito das dificuldades que vivenciaram como mães, de acordo com o grupo russo de defesa dos direitos Primeiro Departamento. Eles alertaram que as empresas de contracepção poderiam enfrentar restrições de publicidade.

“Será impossível dizer ou escrever qualquer coisa que vise criar uma ‘imagem positiva da ausência de filhos e do desejo consciente de não ter filhos’”, escreveu o grupo em uma análise jurídica do projeto de lei. “A proibição da ‘propaganda da opção de não ter filhos’ ameaça não apenas aqueles que protegem os direitos das mulheres e meninas... mas a todos. Se o projeto de lei for adotado em sua forma atual, a frase ‘Como dar à luz quando há tanta pobreza na Rússia?’ será passível de punição.”

Quando o projeto de lei foi aprovado em sua primeira leitura, um dos maiores grupos de apoio à maternidade no VKontakte, a versão russa do Facebook, foi imediatamente dissolvido. O grupo, ironicamente intitulado Felicidade da Maternidade, tinha mais de 148.000 membros e era um fórum para as mães compartilharem seus problemas, medos e arrependimentos a respeito da maternidade, sem vergonha ou medo de julgamento.

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Algumas reclamaram da pobreza, dos apartamentos pequenos e do alto custo de ter filhos, ou da falta de liberdade de quem se sente sobrecarregada com o trabalho, a criação dos filhos e as expectativas dos maridos de que elas façam todo o trabalho doméstico.

A crise demográfica

Problemas como esses são provavelmente parte do motivo da taxa de natalidade consistentemente baixa que deixou Putin tão frustrado. O demógrafo russo independente Alexander Raksha estimou que as mortes russas superariam os nascimentos em 608 mil este ano, com um declínio populacional geral de cerca de 550 mil após a imigração de cerca de 60 mil pessoas.

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Em setembro, a agência estatística da Rússia relatou que o número de nascimentos no primeiro semestre do ano caiu para 599.600, o menor desde 1999.

O declínio populacional “é catastrófico para o futuro do país”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em julho. Putin pediu o renascimento de “tradições maravilhosas” do passado, quando as mães tinham de sete a oito filhos.

As autoridades russas adotaram uma abordagem cada vez mais intervencionista, restringindo o acesso ao aborto e reprimindo o que o Kremlin chama de “ideologias destrutivas” que alega-se serem importadas do Ocidente. A Rússia proibiu o que chama de “movimento” LGBTQ+ descrevendo-o como extremista. Cerca de 11 regiões proibiram equipes médicas, parceiros e outros de sugerir que mulheres façam abortos.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com líderes do ministério da Defesa, no Kremlin  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Ministros russos pediram que mulheres comecem famílias aos 18 anos, enquanto outros condenaram mulheres que buscaram educação superior antes de dar à luz.

Vários legisladores e figuras públicas pediram um imposto sobre a ausência de filhos — muito parecido com a medida do ditador soviético Josef Stalin. A ideia também foi elogiada pelo senador republicano JD Vance (Ohio), agora vice-presidente eleito, em uma entrevista de 2021, de acordo com a ABC News.

A televisão e a internet controlada pelo estado estão cheias de avisos públicos exaltando os benefícios de famílias grandes e da vida no campo. Um anúncio antiaborto mostra um jovem casal que recebe uma batida na porta à noite de sua futura filha, que se apresenta dizendo: “Eu sou sua felicidade”. A mulher a deixa entrar, apesar de seu namorado objetar que “não estamos planejando”. Ela responde: “Você não pode planejar a felicidade, pode?”

Em Moscou, mulheres registradas em clínicas estatais estão recebendo encaminhamentos para testes de fertilidade gratuitos por e-mail, o que levanta temores de que isso possa levar a ações intrusivas de acompanhamento ou monitoramento no futuro.

Uma ativista feminista russa que mora em uma cidade grande e que tem investigado esses esforços disse que os testes induzem ansiedade. “Para aqueles que entendem o que está acontecendo em termos de política, há um sentimento subjacente de que as mulheres devem dar à luz independentemente das circunstâncias, independentemente da guerra, independentemente de tudo”, disse ela.

Ela atende pelo apelido Aida nas redes sociais, e o Washington Post preservará seu nome por razões de segurança.

‘Dever enquanto mulher’

Outdoors anunciam linhas diretas para pessoas com medos ou dúvidas em relação à gravidez, e essas linhas são atendidas por defensores antiaborto. Aida ligou, se passando por uma estudante de 18 anos sem apartamento, esperando fazer um aborto e aterrorizada porque seu namorado estava lutando como soldado por tempo indeterminado na Ucrânia. Ela foi pressionada a ter o bebê em vez disso.

“Eles apenas me disseram coisas como: ‘Bem, se seu namorado morrer, não é o pior cenário, porque então você receberá dinheiro.’ Coisas realmente assustadoras, para ser sincera”, disse Aida.

Ela também se ofereceu disfarçada por um mês para trabalhar em um grupo antiaborto financiado pelo estado, Mulheres pela vida. O grupo pesquisou palavras-chave como aborto e nascimento nas redes sociais e, em seguida, entrou em bate-papos em grupo, oferecendo-se para ajudar as mulheres a contatá-los pessoalmente e pressionando-as a não fazer um aborto.

“Às vezes, elas manipulam, dizendo: ‘Seu dever como mulher é dar à luz’. Às vezes, elas mentem, fornecendo informações médicas falsas a respeito de como o feto está se desenvolvendo”, disse ela.

Daria, a feminista, descreveu a enxurrada de leis e propostas para aumentar a população como “uma imitação de atividade” por parte das autoridades que dificilmente teria sucesso — especialmente porque o enorme orçamento de guerra e segurança da Rússia, projetado para atingir 40% dos gastos em 2025, prejudicou os gastos sociais, programas para mulheres, escolas e serviços de saúde.

Putin disse em setembro ao Fórum das Mulheres Eurasianas em São Petersburgo, com a presença de mulheres de 126 países, que as mulheres russas continuavam sendo “guardiãs do lar e pilares de famílias grandes com muitos filhos”, mas ele insistiu que o governo estava criando as condições para que elas também tivessem sucesso em seus empregos.

“Sabemos que combinar esses papéis é um desafio, mas nossas mulheres lidam com isso e, apesar de serem confrontadas com cargas de trabalho rigorosas, conseguem permanecer mulheres bonitas, atenciosas e charmosas.”

Mas, para Aida, as proibições do governo projetadas para aumentar os nascimentos e dificultar a obtenção de abortos são sinais de um regime que vê os cidadãos como máquinas a serem usadas.

“Uma mulher é como uma incubadora que gera novos guerreiros, novas pessoas para serem exploradas, novas pessoas para o governo”, ela disse. “Vemos muito isso na propaganda e em outdoors que falam em como vamos dar à luz um soldado que vai proteger nossa terra.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No primeiro episódio da nova temporada do reality show russo “Mãe aos 16″, retratando adolescentes que enfrentam uma gravidez indesejada, ninguém acha que o aborto é uma opção. Embora Tanya não queira ter um filho com seu namorado, Nikita, que é irresponsável, nem ela nem sua mãe considerariam tal medida — mas, ao fim do episódio, tudo está resolvido, o bebê nasce e eles vivem felizes para sempre.

Em temporadas anteriores, quando era chamado de “Grávida aos 16″, alguns personagens pelo menos abordavam o tópico do aborto, mas tal sentimento agora não é apenas reprovado na Rússia: em breve será também ilegal.

Uma nova lei contra a “propaganda sem filhos” que criminaliza a disseminação de informações defendendo a escolha de não ter filhos passou por sua primeira leitura no parlamento. A natureza da “propaganda” não é explicitamente definida, o que significa que a lei poderia proibir anunciantes, produtores de cinema e TV, blogueiros e escritores de apresentar pessoas sem filhos como satisfeitas, ou famílias grandes como miseráveis, de acordo com grupos de direitos humanos e ativistas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião no Kremlin  Foto: Vyacheslav Prokofyev/AP

A lei se insere no contexto de uma crise demográfica russa de longa data, na qual as mortes geralmente superam os nascimentos e a população está diminuindo e envelhecendo. A solução para o presidente Vladimir Putin é o retorno ao que o Kremlin chama de “valores russos tradicionais”, incluindo encorajar as mulheres a terem famílias grandes.

Ele disse que a crise demográfica da Rússia o “assombra”, e a enquadra como um problema crítico de segurança nacional, pois a perspectiva de declínio populacional de longo prazo traz o risco de uma perda proporcional do poder russo.

Proibição às queixas

A proibição da propaganda da opção de não ter filhos, que os analistas veem como candidata certa a se tornar lei, faz parte de uma ampla campanha das autoridades russas para pressionar as mulheres a darem à luz muitas crianças.

Daria Serenko, cofundadora do movimento Resistência Feminista à Guerra, que deixou a Rússia, disse que era um aviso às mulheres de que seus corpos, mentes e ações estavam sob o controle do estado.

“Esta é uma situação em que o estado quer ter o monopólio do seu corpo, da sua voz, da sua vida privada, de tudo”, disse ela. Conforme as leis a respeito da propaganda da opção de não ter filhos e do aborto se multiplicam, as mulheres relutam em defender seus direitos por causa do risco de prisão.

“Há silêncio”, disse Daria. “Isso é tabu. As mulheres não falam sobre isso. Elas têm medo. As mulheres não querem procurar os tribunais porque sabem muito bem quais serão as consequências.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa no Kremlin  Foto: Serviço de imprensa do Kremlin / AP

A proibição da propaganda da escolha de não ter filhos pode punir as mulheres que apenas postam a respeito das dificuldades que vivenciaram como mães, de acordo com o grupo russo de defesa dos direitos Primeiro Departamento. Eles alertaram que as empresas de contracepção poderiam enfrentar restrições de publicidade.

“Será impossível dizer ou escrever qualquer coisa que vise criar uma ‘imagem positiva da ausência de filhos e do desejo consciente de não ter filhos’”, escreveu o grupo em uma análise jurídica do projeto de lei. “A proibição da ‘propaganda da opção de não ter filhos’ ameaça não apenas aqueles que protegem os direitos das mulheres e meninas... mas a todos. Se o projeto de lei for adotado em sua forma atual, a frase ‘Como dar à luz quando há tanta pobreza na Rússia?’ será passível de punição.”

Quando o projeto de lei foi aprovado em sua primeira leitura, um dos maiores grupos de apoio à maternidade no VKontakte, a versão russa do Facebook, foi imediatamente dissolvido. O grupo, ironicamente intitulado Felicidade da Maternidade, tinha mais de 148.000 membros e era um fórum para as mães compartilharem seus problemas, medos e arrependimentos a respeito da maternidade, sem vergonha ou medo de julgamento.

Algumas reclamaram da pobreza, dos apartamentos pequenos e do alto custo de ter filhos, ou da falta de liberdade de quem se sente sobrecarregada com o trabalho, a criação dos filhos e as expectativas dos maridos de que elas façam todo o trabalho doméstico.

A crise demográfica

Problemas como esses são provavelmente parte do motivo da taxa de natalidade consistentemente baixa que deixou Putin tão frustrado. O demógrafo russo independente Alexander Raksha estimou que as mortes russas superariam os nascimentos em 608 mil este ano, com um declínio populacional geral de cerca de 550 mil após a imigração de cerca de 60 mil pessoas.

Em setembro, a agência estatística da Rússia relatou que o número de nascimentos no primeiro semestre do ano caiu para 599.600, o menor desde 1999.

O declínio populacional “é catastrófico para o futuro do país”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em julho. Putin pediu o renascimento de “tradições maravilhosas” do passado, quando as mães tinham de sete a oito filhos.

As autoridades russas adotaram uma abordagem cada vez mais intervencionista, restringindo o acesso ao aborto e reprimindo o que o Kremlin chama de “ideologias destrutivas” que alega-se serem importadas do Ocidente. A Rússia proibiu o que chama de “movimento” LGBTQ+ descrevendo-o como extremista. Cerca de 11 regiões proibiram equipes médicas, parceiros e outros de sugerir que mulheres façam abortos.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com líderes do ministério da Defesa, no Kremlin  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Ministros russos pediram que mulheres comecem famílias aos 18 anos, enquanto outros condenaram mulheres que buscaram educação superior antes de dar à luz.

Vários legisladores e figuras públicas pediram um imposto sobre a ausência de filhos — muito parecido com a medida do ditador soviético Josef Stalin. A ideia também foi elogiada pelo senador republicano JD Vance (Ohio), agora vice-presidente eleito, em uma entrevista de 2021, de acordo com a ABC News.

A televisão e a internet controlada pelo estado estão cheias de avisos públicos exaltando os benefícios de famílias grandes e da vida no campo. Um anúncio antiaborto mostra um jovem casal que recebe uma batida na porta à noite de sua futura filha, que se apresenta dizendo: “Eu sou sua felicidade”. A mulher a deixa entrar, apesar de seu namorado objetar que “não estamos planejando”. Ela responde: “Você não pode planejar a felicidade, pode?”

Em Moscou, mulheres registradas em clínicas estatais estão recebendo encaminhamentos para testes de fertilidade gratuitos por e-mail, o que levanta temores de que isso possa levar a ações intrusivas de acompanhamento ou monitoramento no futuro.

Uma ativista feminista russa que mora em uma cidade grande e que tem investigado esses esforços disse que os testes induzem ansiedade. “Para aqueles que entendem o que está acontecendo em termos de política, há um sentimento subjacente de que as mulheres devem dar à luz independentemente das circunstâncias, independentemente da guerra, independentemente de tudo”, disse ela.

Ela atende pelo apelido Aida nas redes sociais, e o Washington Post preservará seu nome por razões de segurança.

‘Dever enquanto mulher’

Outdoors anunciam linhas diretas para pessoas com medos ou dúvidas em relação à gravidez, e essas linhas são atendidas por defensores antiaborto. Aida ligou, se passando por uma estudante de 18 anos sem apartamento, esperando fazer um aborto e aterrorizada porque seu namorado estava lutando como soldado por tempo indeterminado na Ucrânia. Ela foi pressionada a ter o bebê em vez disso.

“Eles apenas me disseram coisas como: ‘Bem, se seu namorado morrer, não é o pior cenário, porque então você receberá dinheiro.’ Coisas realmente assustadoras, para ser sincera”, disse Aida.

Ela também se ofereceu disfarçada por um mês para trabalhar em um grupo antiaborto financiado pelo estado, Mulheres pela vida. O grupo pesquisou palavras-chave como aborto e nascimento nas redes sociais e, em seguida, entrou em bate-papos em grupo, oferecendo-se para ajudar as mulheres a contatá-los pessoalmente e pressionando-as a não fazer um aborto.

“Às vezes, elas manipulam, dizendo: ‘Seu dever como mulher é dar à luz’. Às vezes, elas mentem, fornecendo informações médicas falsas a respeito de como o feto está se desenvolvendo”, disse ela.

Daria, a feminista, descreveu a enxurrada de leis e propostas para aumentar a população como “uma imitação de atividade” por parte das autoridades que dificilmente teria sucesso — especialmente porque o enorme orçamento de guerra e segurança da Rússia, projetado para atingir 40% dos gastos em 2025, prejudicou os gastos sociais, programas para mulheres, escolas e serviços de saúde.

Putin disse em setembro ao Fórum das Mulheres Eurasianas em São Petersburgo, com a presença de mulheres de 126 países, que as mulheres russas continuavam sendo “guardiãs do lar e pilares de famílias grandes com muitos filhos”, mas ele insistiu que o governo estava criando as condições para que elas também tivessem sucesso em seus empregos.

“Sabemos que combinar esses papéis é um desafio, mas nossas mulheres lidam com isso e, apesar de serem confrontadas com cargas de trabalho rigorosas, conseguem permanecer mulheres bonitas, atenciosas e charmosas.”

Mas, para Aida, as proibições do governo projetadas para aumentar os nascimentos e dificultar a obtenção de abortos são sinais de um regime que vê os cidadãos como máquinas a serem usadas.

“Uma mulher é como uma incubadora que gera novos guerreiros, novas pessoas para serem exploradas, novas pessoas para o governo”, ela disse. “Vemos muito isso na propaganda e em outdoors que falam em como vamos dar à luz um soldado que vai proteger nossa terra.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No primeiro episódio da nova temporada do reality show russo “Mãe aos 16″, retratando adolescentes que enfrentam uma gravidez indesejada, ninguém acha que o aborto é uma opção. Embora Tanya não queira ter um filho com seu namorado, Nikita, que é irresponsável, nem ela nem sua mãe considerariam tal medida — mas, ao fim do episódio, tudo está resolvido, o bebê nasce e eles vivem felizes para sempre.

Em temporadas anteriores, quando era chamado de “Grávida aos 16″, alguns personagens pelo menos abordavam o tópico do aborto, mas tal sentimento agora não é apenas reprovado na Rússia: em breve será também ilegal.

Uma nova lei contra a “propaganda sem filhos” que criminaliza a disseminação de informações defendendo a escolha de não ter filhos passou por sua primeira leitura no parlamento. A natureza da “propaganda” não é explicitamente definida, o que significa que a lei poderia proibir anunciantes, produtores de cinema e TV, blogueiros e escritores de apresentar pessoas sem filhos como satisfeitas, ou famílias grandes como miseráveis, de acordo com grupos de direitos humanos e ativistas.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião no Kremlin  Foto: Vyacheslav Prokofyev/AP

A lei se insere no contexto de uma crise demográfica russa de longa data, na qual as mortes geralmente superam os nascimentos e a população está diminuindo e envelhecendo. A solução para o presidente Vladimir Putin é o retorno ao que o Kremlin chama de “valores russos tradicionais”, incluindo encorajar as mulheres a terem famílias grandes.

Ele disse que a crise demográfica da Rússia o “assombra”, e a enquadra como um problema crítico de segurança nacional, pois a perspectiva de declínio populacional de longo prazo traz o risco de uma perda proporcional do poder russo.

Proibição às queixas

A proibição da propaganda da opção de não ter filhos, que os analistas veem como candidata certa a se tornar lei, faz parte de uma ampla campanha das autoridades russas para pressionar as mulheres a darem à luz muitas crianças.

Daria Serenko, cofundadora do movimento Resistência Feminista à Guerra, que deixou a Rússia, disse que era um aviso às mulheres de que seus corpos, mentes e ações estavam sob o controle do estado.

“Esta é uma situação em que o estado quer ter o monopólio do seu corpo, da sua voz, da sua vida privada, de tudo”, disse ela. Conforme as leis a respeito da propaganda da opção de não ter filhos e do aborto se multiplicam, as mulheres relutam em defender seus direitos por causa do risco de prisão.

“Há silêncio”, disse Daria. “Isso é tabu. As mulheres não falam sobre isso. Elas têm medo. As mulheres não querem procurar os tribunais porque sabem muito bem quais serão as consequências.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa no Kremlin  Foto: Serviço de imprensa do Kremlin / AP

A proibição da propaganda da escolha de não ter filhos pode punir as mulheres que apenas postam a respeito das dificuldades que vivenciaram como mães, de acordo com o grupo russo de defesa dos direitos Primeiro Departamento. Eles alertaram que as empresas de contracepção poderiam enfrentar restrições de publicidade.

“Será impossível dizer ou escrever qualquer coisa que vise criar uma ‘imagem positiva da ausência de filhos e do desejo consciente de não ter filhos’”, escreveu o grupo em uma análise jurídica do projeto de lei. “A proibição da ‘propaganda da opção de não ter filhos’ ameaça não apenas aqueles que protegem os direitos das mulheres e meninas... mas a todos. Se o projeto de lei for adotado em sua forma atual, a frase ‘Como dar à luz quando há tanta pobreza na Rússia?’ será passível de punição.”

Quando o projeto de lei foi aprovado em sua primeira leitura, um dos maiores grupos de apoio à maternidade no VKontakte, a versão russa do Facebook, foi imediatamente dissolvido. O grupo, ironicamente intitulado Felicidade da Maternidade, tinha mais de 148.000 membros e era um fórum para as mães compartilharem seus problemas, medos e arrependimentos a respeito da maternidade, sem vergonha ou medo de julgamento.

Algumas reclamaram da pobreza, dos apartamentos pequenos e do alto custo de ter filhos, ou da falta de liberdade de quem se sente sobrecarregada com o trabalho, a criação dos filhos e as expectativas dos maridos de que elas façam todo o trabalho doméstico.

A crise demográfica

Problemas como esses são provavelmente parte do motivo da taxa de natalidade consistentemente baixa que deixou Putin tão frustrado. O demógrafo russo independente Alexander Raksha estimou que as mortes russas superariam os nascimentos em 608 mil este ano, com um declínio populacional geral de cerca de 550 mil após a imigração de cerca de 60 mil pessoas.

Em setembro, a agência estatística da Rússia relatou que o número de nascimentos no primeiro semestre do ano caiu para 599.600, o menor desde 1999.

O declínio populacional “é catastrófico para o futuro do país”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em julho. Putin pediu o renascimento de “tradições maravilhosas” do passado, quando as mães tinham de sete a oito filhos.

As autoridades russas adotaram uma abordagem cada vez mais intervencionista, restringindo o acesso ao aborto e reprimindo o que o Kremlin chama de “ideologias destrutivas” que alega-se serem importadas do Ocidente. A Rússia proibiu o que chama de “movimento” LGBTQ+ descrevendo-o como extremista. Cerca de 11 regiões proibiram equipes médicas, parceiros e outros de sugerir que mulheres façam abortos.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião com líderes do ministério da Defesa, no Kremlin  Foto: Gavriil Grigorov/AP

Ministros russos pediram que mulheres comecem famílias aos 18 anos, enquanto outros condenaram mulheres que buscaram educação superior antes de dar à luz.

Vários legisladores e figuras públicas pediram um imposto sobre a ausência de filhos — muito parecido com a medida do ditador soviético Josef Stalin. A ideia também foi elogiada pelo senador republicano JD Vance (Ohio), agora vice-presidente eleito, em uma entrevista de 2021, de acordo com a ABC News.

A televisão e a internet controlada pelo estado estão cheias de avisos públicos exaltando os benefícios de famílias grandes e da vida no campo. Um anúncio antiaborto mostra um jovem casal que recebe uma batida na porta à noite de sua futura filha, que se apresenta dizendo: “Eu sou sua felicidade”. A mulher a deixa entrar, apesar de seu namorado objetar que “não estamos planejando”. Ela responde: “Você não pode planejar a felicidade, pode?”

Em Moscou, mulheres registradas em clínicas estatais estão recebendo encaminhamentos para testes de fertilidade gratuitos por e-mail, o que levanta temores de que isso possa levar a ações intrusivas de acompanhamento ou monitoramento no futuro.

Uma ativista feminista russa que mora em uma cidade grande e que tem investigado esses esforços disse que os testes induzem ansiedade. “Para aqueles que entendem o que está acontecendo em termos de política, há um sentimento subjacente de que as mulheres devem dar à luz independentemente das circunstâncias, independentemente da guerra, independentemente de tudo”, disse ela.

Ela atende pelo apelido Aida nas redes sociais, e o Washington Post preservará seu nome por razões de segurança.

‘Dever enquanto mulher’

Outdoors anunciam linhas diretas para pessoas com medos ou dúvidas em relação à gravidez, e essas linhas são atendidas por defensores antiaborto. Aida ligou, se passando por uma estudante de 18 anos sem apartamento, esperando fazer um aborto e aterrorizada porque seu namorado estava lutando como soldado por tempo indeterminado na Ucrânia. Ela foi pressionada a ter o bebê em vez disso.

“Eles apenas me disseram coisas como: ‘Bem, se seu namorado morrer, não é o pior cenário, porque então você receberá dinheiro.’ Coisas realmente assustadoras, para ser sincera”, disse Aida.

Ela também se ofereceu disfarçada por um mês para trabalhar em um grupo antiaborto financiado pelo estado, Mulheres pela vida. O grupo pesquisou palavras-chave como aborto e nascimento nas redes sociais e, em seguida, entrou em bate-papos em grupo, oferecendo-se para ajudar as mulheres a contatá-los pessoalmente e pressionando-as a não fazer um aborto.

“Às vezes, elas manipulam, dizendo: ‘Seu dever como mulher é dar à luz’. Às vezes, elas mentem, fornecendo informações médicas falsas a respeito de como o feto está se desenvolvendo”, disse ela.

Daria, a feminista, descreveu a enxurrada de leis e propostas para aumentar a população como “uma imitação de atividade” por parte das autoridades que dificilmente teria sucesso — especialmente porque o enorme orçamento de guerra e segurança da Rússia, projetado para atingir 40% dos gastos em 2025, prejudicou os gastos sociais, programas para mulheres, escolas e serviços de saúde.

Putin disse em setembro ao Fórum das Mulheres Eurasianas em São Petersburgo, com a presença de mulheres de 126 países, que as mulheres russas continuavam sendo “guardiãs do lar e pilares de famílias grandes com muitos filhos”, mas ele insistiu que o governo estava criando as condições para que elas também tivessem sucesso em seus empregos.

“Sabemos que combinar esses papéis é um desafio, mas nossas mulheres lidam com isso e, apesar de serem confrontadas com cargas de trabalho rigorosas, conseguem permanecer mulheres bonitas, atenciosas e charmosas.”

Mas, para Aida, as proibições do governo projetadas para aumentar os nascimentos e dificultar a obtenção de abortos são sinais de um regime que vê os cidadãos como máquinas a serem usadas.

“Uma mulher é como uma incubadora que gera novos guerreiros, novas pessoas para serem exploradas, novas pessoas para o governo”, ela disse. “Vemos muito isso na propaganda e em outdoors que falam em como vamos dar à luz um soldado que vai proteger nossa terra.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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