Em uma selva nas fronteiras de Mianmar, as tropas suavam durante o treinamento básico. Eles aprenderam a carregar um rifle, puxar o pino de uma granada de mão e montar uma bomba incendiária.
Esses cadetes não são membros do exército de Mianmar, que tomou o poder no mês passado e rapidamente impôs a brutalidade do campo de batalha à população do país. São um corpo eclético de estudantes, ativistas e trabalhadores comuns que acreditam que lutar é a única maneira de derrotar uma das Forças Armadas mais implacáveis do mundo.
"Vejo os militares como animais selvagens que não conseguem pensar e são brutais com suas armas", disse uma mulher de Yangon, a maior cidade de Mianmar, que agora estava na floresta para uma semana de treinamento. Como outros que se juntaram à luta armada, ela não queria que seu nome fosse publicado por medo de que o Tatmadaw, como é conhecido o exército de Mianmar, a encontrasse.
"Temos que atacá-los de volta", disse ela. "Isso soa agressivo, mas acredito que temos que nos defender".
Após semanas de protestos pacíficos, a linha de frente da resistência de Mianmar ao golpe de 1º de fevereiro está se mobilizando em uma espécie de força de guerrilha. Nas cidades, os manifestantes construíram barricadas para proteger os bairros de incursões militares e aprenderam a fazer bombas de fumaça na internet. Nas florestas, eles estão treinando técnicas básicas de guerra e planejando sabotar instalações militares.
A ousadia e o desespero dessa nova frente lembram a radicalização de uma geração anterior de ativistas pela democracia em Mianmar, que trocavam tratados de filosofia política por armas. Como no passado, a oposição de linha dura é uma resposta defensiva ao crescente reinado de terror dos militares. O Tatmadaw reprimiu manifestantes pacíficos e espectadores desarmados, matando pelo menos 275 pessoas desde o golpe, de acordo com um grupo de monitoramento.
Outras formas de resistência continuaram em Mianmar. Uma campanha de desobediência civil em massa paralisou a economia, com uma greve nacional deixando as cidades sem atividade comercial. Em atos criativos de desafio, os manifestantes alinharam fileiras de bichos de pelúcia e guindastes de origami como substitutos dos manifestantes que poderiam ser baleados.
Mas há um crescente reconhecimento de que tais esforços podem não ser suficientes, que o Tatmadaw precisa ser combatido em seus próprios termos. Na semana passada, remanescentes do parlamento deposto, que se consideram o governo legítimo, disseram que uma "revolução" era necessária para salvar o país. Eles pediram a formação de um exército federal que respeite vários grupos étnicos, não apenas a maioria Bamar.
"Se a diplomacia falhar, se as mortes continuarem, o povo de Mianmar será forçado a se defender", disse Sasa, um porta-voz do parlamento deposto que está fugindo após ter sido acusado de alta traição.
Qualquer movimento desse tipo terá que enfrentar um exército que governou Mianmar pela força por 60 anos e lutou contra dezenas de insurgências por ainda mais tempo. A sede de sangue do Tatmadaw é notória. O general Min Aung Hlaing, chefe do exército que liderou o golpe, ordenou repetidamente o extermínio de aldeias inteiras, mais assustadoramente a limpeza étnica dos muçulmanos Rohingya.
O país tremeu quando o Tatmadaw trouxe sua máquina de guerra às cidades, prendendo os líderes civis de Mianmar no mês passado e apagando uma década de reformas políticas e econômicas.
Desde então, dezenas de jovens manifestantes foram executados com um tiros na cabeça. As forças de segurança dispararam contra as casas ao acaso, deixando as famílias encolhidas nos quartos dos fundos. Na terça-feira, uma menina de 7 anos sentada em casa no colo de seu pai foi baleada na cidade de Mandalay, no que parecia ser uma morte colateral. (Centenas de manifestantes foram libertados na quarta-feira, após semanas de detenção.)
O Tatmadaw está zombando das regras internacionais de guerra. As forças de segurança dispararam contra ambulâncias e torturaram detidos. Dada a brutalidade, membros da linha de frente da democracia em Mianmar dizem que não há escolha a não ser pegar em armas.
Quase todos os dias nas zonas de conflito de concreto de Yangon, Ko Soe Win Naing, um marinheiro de 26 anos, se prepara para a guerra: uma câmera GoPro afixada em seu capacete, uma balaclava sobre a cabeça, frascos de gás lacrimogêneo nos bolsos do colete, uma espada embainhada nas costas e uma máscara de gás pronta. Sua arma de escolha é um fogo de artifício transformado em uma espécie de granada.
Soe Win Naing não vai para casa há semanas, parte de um grupo itinerante que tenta proteger os bairros de saqueadores das forças de segurança. Ele não apóia, entretanto, entrar na selva para treinar para lutar contra os militares. "Embora estejamos trabalhando pela coisa certa, tornei-me como um fugitivo", disse ele. "Mas mesmo se eu for morto, vou lutar até o fim."
Os combatentes da linha de frente empilharam sacos de areia e construíram barricadas de bambu, que defendem com bombas incendiárias caseiras. As crianças também se juntaram, vestindo pijamas para parecerem inofensivas enquanto viajam para seus postos de batalha.
"Eu não tenho medo", disse Ko Moe Min Latt, de 15 anos, membro de uma linha defensiva que mal chega a 5 metros de altura.
A imagem de resistência em Mianmar, antes conhecida como Birmânia, costuma ser envolvida por uma aura de não violência. Em 1988, os alunos discutiam teoria política em sala de aula e marchavam pela democracia nas ruas. Em 2007, monges budistas deixaram seus votos de mendicância e caminharam descalços em uma dissidência silenciosa.
A líder civil deposta da nação, Aung San Suu Kyi, recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua campanha contra os generais que a prenderam por 15 anos. (O prêmio foi manchado por sua defesa da limpeza étnica dos Rohingya.)
Mas a maioria das lutas em Mianmar envolveu armas e estilingues. Na periferia montanhosa do país, grupos armados étnicos lutam pela autonomia há décadas. Depois que soldados mataram centenas de manifestantes em 1988, milhares de estudantes e ativistas fugiram para as florestas e formaram grupos armados que lutaram ao lado de insurgências étnicas.
Ultimamente, suas táticas se estenderam à guerra de informação. Na quarta-feira, manifestantes anti-golpe disseram ter lançado ataques de hackers a dois bancos ligados a militares.
Para a nova geração, a decisão de lutar nasce do desejo de proteger o que o país conquistou na última década. Mianmar já foi um dos países mais isolados do planeta, pois uma junta militar xenófoba e economicamente inepta separou o país da comunidade internacional. Em seguida, vieram as tentativas de reformas políticas, uma ligação com o mundo e oportunidades de empregos no setor privado.
A noção de que Mianmar pode retornar a um passado assustador galvanizou alguns manifestantes. Uma jovem, que está prestes a iniciar o treinamento militar na selva disse que se lembrava de se amontoar quando criança com sua família e ouvir secretamente as transmissões de rádio da BBC, um ato que antes poderia levar à prisão.
"Decidi arriscar minha vida e lutar de qualquer maneira possível", disse ela. "Se nos opusermos em uníssono em todo o país, faremos com que os militares tenham noites sem dormir e vidas inseguras, assim como fizeram conosco."
As forças de segurança, ela continuou, estão seguindo ordens e não têm um propósito maior. "Temos nossa fé política, temos nossos sonhos", disse ela. "Esta é a luta em que temos que usar nossos cérebros e nossos corpos."
Se qualquer rebelião armada tiver sucesso, precisará do apoio das insurgências étnicas que há muito tempo estão em guerra com o Tatmadaw. Na semana passada, o Exército da Independência Kachin, que representa os Kachin do norte de Mianmar, lançou um ataque surpresa contra o Tatmadaw.
Na quinta-feira, cinco soldados do Tatmadaw foram mortos pelo Karen National Liberation Army, que luta pela etnia Karen. No ano passado, centenas de soldados do Tatmadaw morreram enquanto lutavam contra outra insurgência étnica no oeste do Estado de Rakhine.
"Se grupos armados étnicos lançarem ofensivas, isso pode ajudar a aliviar a pressão sobre os manifestantes nas cidades", disse Padoh Saw Hser Bwe, secretário-geral da União Nacional Karen.
Com as brigadas mais notórias do Tatmadaw agora estacionadas nas cidades, focadas em manifestantes anti-golpe em vez da guerra civil étnica, a matança militar continua inabalável.
Na segunda-feira em Mandalay, Ko Tun Tun Aung,de 14 anos, saiu de sua casa para pegar um pote de água. Uma bala perfurou seu peito, matando-o instantaneamente, de acordo com seus parentes. Pelo menos sete outras pessoas também foram mortas a tiros no mesmo bairro naquele dia. Dois eram de equipes de resgate.
Ko Thet Aung, um rapaz de 23 anos que atua na linha de frente, é do mesmo bairro de Mandalay onde ocorreram os assassinatos. Por três semanas, ele comandou barricadas e se esquivou de tiros.
"Quanto mais eles reprimem, mais estamos motivados para revidar", disse ele. "Somos da Geração Z, mas eu nos chamaria de Gen-P - Geração da Proteção. Vou morrer protegendo meu país na linha de frente."