Em que Boric e Lula discordam? Venezuela, Ucrânia e condenação a ditaduras são alguns temas


Visita coincide com momento de tensão regional por eleições contestadas na Venezuela. Governo chileno adota posição mais firme com a ditadura, expondo diferenças entre a ‘velha’ e a ‘nova’ esquerda

Por Jéssica Petrovna

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarca neste domingo, 4, para o Chile. A visita de Estado tem o objetivo de diversificar parcerias, mas o encontro com Gabriel Boric coincide com a tensão na América do Sul, que se segue às eleições na Venezuela e expõe divisões dentro da esquerda na região.

O chileno, expoente do novo progressismo, adota posição mais firme com a ditadura de Nicolás Maduro. Enquanto o brasileiro mostrou que ainda tem dificuldade em condenar seus aliados de longa data e atualizar a sua política externa a um mundo radicalmente diferente do que encontrou nos governos Lula 1 e 2.

“Boric representa uma nova geração que começou na política no pós-Guerra Fria”, aponta o cientista político Mauricio Santoro, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. “Ele leva para a política externa uma preocupação muito grande com a democracia e os direitos humanos. Representa outro tipo de esquerda, outro tipo de liderança progressista”.

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Em contraste, Lula traz a visão de mundo que ele tinha quando foi eleito pela primeira vez, há duas décadas, afirma o analista. O problema é que o mundo mudou, assim como a Venezuela.

“No passado, embora Hugo Chávez tenha tomado decisões autoritárias e enfraquecido as instituições, ainda se podia dizer que era um governo democrático. Lula ainda tem visão daquela Venezuela. Se recusou a ver o nível de brutalidade no país, se recusou a ver como o regime se tornou autoritário, como houve um colapso na economia, com 8 milhões de imigrantes”, aponta Santoro.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão
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Exemplo disso foi a declaração de que não há nada de “grave” ou “anormal” na contestada eleição da Venezuela, sugerindo que a oposição deveria recorrer à Justiça para questionar os resultados.

Foi justamente o que Nicolás Maduro fez — pedir ao Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela a auditoria das eleições. Acontece que a corte é dominada pelo chavismo, que forçou aposentadorias antecipadas e aumentou o número de juízes para assumir o controle sobre a Justiça, que nunca emite decisões contrárias à ditadura. Foi o que se viu com a inabilitação da líder opositora María Corina Machado.

Alinhado com a Colômbia de Gustavo Petro e o México de Andrés Manuel López Obrador, presidentes da esquerda mais próximos do chavismo, o Brasil tem se limitado a cobrar a divulgação das atas, que comprovariam o resultado das eleições. Isso não aconteceu até agora, passada uma semana da votação.

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“Por mais que o posicionamento oficial da diplomacia brasileira esteja mais próximo do pragmatismo ao exigir as atas de votação antes de reconhecer o resultado o presidente demonstrou mais de uma vez um compromisso com o regime chavista e uma crença na democracia do país que só podem ser justificados como uma amizade pessoal entre Lula e Maduro”, escreveu o jornalista e doutor em Relações Internacionais Daniel Buarque em artigo para o Interesse Nacional publicado no Estadão.

Gabriel Boric, por outro lado, disse que os resultados apresentados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela são difíceis de acreditar — o órgão é controlado pelo chavismo e deu vitória a Nicolás Maduro enquanto a oposição afirma ter provas de fraude. Em mensagem contundente, ele exigiu transparência no processo, com verificação de observadores internacionais e independentes. “Do Chile, não reconheceremos nenhum resultado que não seja verificável”, alertou.

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A advertência pública colocou o Chile na lista de países sul-americanos com missões diplomáticas expulsas da Venezuela. Boric rebateu que a expulsão demonstra “profunda intolerância à divergência, essencial numa democracia”. Ele explicou que sua posição sobres as eleições foi motivada por convicção e pelo aprendizado da história chilena, referindo-se à ditadura de Augusto Pinochet, e pediu que a vontade dos venezuelanos seja respeitada pelo bem de toda América Latina.

Como mostrou o Estadão o Chile ficou de fora da nota conjunta de Brasil, Colômbia e México, que pediu apuração imparcial da eleição, porque as relações com a Venezuela se deterioram após os comentários de Boric.

“Houve vários momentos em que América Latina se dividiu de maneira muito profunda sobre como lidar com a Venezuela”, lembra Maurício Santoro. Ele destaca que essas diferenças costumavam ser entre os governos conservadores, mais duros com o regime, e os de esquerda, que se apresentavam como defensores do chavismo ou pelo menos evitavam fazer críticas.

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Agora, no entanto, essas divisões têm ultrapassado o espectro ideológico. “Há um isolamento maior da Venezuela na América Latina, que não é mais limitado ao embate esquerda versus direita na região”, afirma.

Histórico de tensões sobre a Venezuela

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Essa não foi a primeira vez que Santiago adotou uma postura mais firme que Brasília com relação à Caracas. Lula recebeu Maduro com pompas para o encontro de líderes sul-americanos que promoveu no ano passado. Como parte do esforço para reabilitar o aliado de longa data, ele criticou as sanções americanas e disse que a Venezuela seria vítima de uma “narrativa”.

Ao fazer coro à versão do regime para a crise, que espalhou quase 8 milhões de imigrantes e refugiados venezuelanos pela região, Lula causou incômodo entre os líderes presentes em Brasília. A declaração foi criticada pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, da centro-direita, e Gabriel Boric.

“Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse”, pontuou o chileno na época. “Não é uma narrativa, é uma realidade, é séria e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara.”

Lula então dobrou a aposta: “Não é possível que não tenha o mínimo de democracia na Venezuela”, disse. “O chavismo disputou 29 eleições e perdeu duas.”

Presidente Lula se encontra com Nicolás Maduro em reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) Foto: @nicolasmaduro Via Instagram

“Havia ali o interesse do presidente em fazer um gesto de desagravo a Maduro depois que Bolsonaro rompeu as relações diplomáticas com a Venezuela. E havia também uma expectativa otimista de Lula e (do assessor especial) Celso Amorim de que era possível convencê-lo a fazer um acordo”, avalia Santoro.

O acordo de fato existiu, mas nunca foi cumprido. Depois de prometer que permitiria eleições competitivas com observação internacional, o chavismo impediu a candidatura da líder opositora María Corina Machado, perseguiu a oposição e barrou observadores, num processo que culminou nas eleições contestadas, sob acusação de fraude.

“Maduro não tinha a intenção de cumprir esses acordos. Ele estava apenas ganhando tempo enquanto se preparava para o confronto com a oposição. E houve por parte do presidente Lula um erro de avaliação, que não acontece só com a Venezuela, tem acontecido também com a Rússia”, afirma Maurício Santoro.

Guerra na Ucrânia

A guerra é, inclusive, outro ponto de divergência entre Lula e Boric. Ele condena a agressão russa enquanto Lula tentou se apresentar como um mediador, mas passou a ser visto como pró-Moscou por declarações que irritaram Kiev e seus aliados da Otan.

Essa diferença ficou evidente quando Boric defendeu uma resolução mais contundente da cúpula entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). “Hoje é a Ucrânia e amanhã pode ser qualquer um de nós. Não importa se gostamos ou não do presidente de outro país. O importante é o respeito ao direito internacional, que foi claramente violado aqui por uma parte que é a invasora, a Rússia”, disse.

Lula discordou da cobrança, que atribuiu à falta de experiência do chileno — Boric tem 38 anos e foi eleito como presidente mais jovem na história do país. “Possivelmente, a falta de costume de participar dessas reuniões faz com que um jovem seja mais sequioso, mais apressado, mas as coisas acontecem assim”, atestou.

Boric minimizou dizendo que não se sentia ofendido pela declaração, mas reafirmou que considera a guerra na Ucrânia uma “agressão inaceitável”. Contrariando a pressão de Moscou, que busca alianças na América Latina para contornar o isolamento imposto por Estados Unidos e Europa, o chileno tem se mantido firme ao condenar a invasão.

Presidente do Chile, Gabriel Boric, na cúpula de líderes sul-americanos em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Ao contrário de Lula, ele aceitou o convite da Ucrânia e participou da Cúpula para Paz, na Suíça. Gabriel Boric estava entre os líderes escolhidos para apresentar a declaração final do encontro que reuniu representantes de 90 países. “Essa Cúpula não ó sobre Otan. Não é sobre ideias políticas de esquerda ou de direita, não se trata de países do Sul ou do Norte. É sobre respeito ao direito internacional e aos direitos humanos como princípios fundamentais”, declarou.

O Brasil participou apenas como observador e ficou entre os 12 países que não assinaram a declaração final em defesa da integridade territorial da Ucrânia. A justificativa do governo brasileiro foi que a ausência da Rússia impossibilitava as negociações para paz. “Porque não é possível você ter uma briga entre dois e achar que se reunindo só com um, resolve o problema”, disse Lula, que estava em viagem na Europa, mas evitou passar pela Suíça.

O petista já disse que o presidente ucraniano Volodmir Zelenski seria tão responsável pela guerra quanto o russo Vladimir Putin e que “quando um não quer, dois não brigam”. Ele também foi criticado ao sugerir que Estados Unidos e União Europeia estariam fomentando a guerra com o fornecimento de armas para a defesa da Ucrânia.

Gabriel Boric, por outro lado, tem deixado claro que só há um lado culpado pelo conflito. “Para que haja paz, é preciso identificar quem é o responsável pelo início da guerra”, afirmou em entrevista ao The Washington Post em setembro. “Quem violou a integridade territorial e o direito internacional de um país livre? Foi a Rússia.”

Defesa da democracia

Na mesma entrevista, ele enfatizou a condenação às ditaduras na vizinhança. “Não tem como eu me manter firme contra as ditaduras na América Latina dos anos 1970 e não dizer nada sobre o que está acontecendo agora na Nicarágua. É inconsistente”.

Essa é justamente a inconsistência de Lula. O presidente brasileiro foi eleito com o discurso de defesa da democracia e vítima de uma tentativa de golpe por apoiadores do adversário Jair Bolsonaro, que invadiram Brasília no 8 de janeiro. Apesar disso, tem dificuldade em condenar as ditaduras de antigos aliados do PT.

“Essas contradições são ainda mais profundas pelo momento histórico que o Brasil está vivendo. Lula foi eleito com diferença mínima porque um grupo muito expressivo de eleitores de centro votaram nele por temer uma guinada autoritária sob Bolsonaro. São eleitores que não necessariamente concordam com a agenda de esquerda, que estavam preocupados com a democracia e estão muito descontentes com o posicionamento da política externa”, conclui Santoro.

No caso da Nicarágua, por exemplo, o governo Lula defende o que chama de “posição construtiva”. O Brasil chegou a manifestar no Conselho de Direitos Humanos da ONU a preocupação com as violações no País. Mas se recusou a aderir à declaração conjunta de 55 países —incluindo Chile e Colômbia — que condenava crimes cometidos pelo ditador Daniel Ortega.

A lista de violações, segundo relatório das Nações Unidas, inclui execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, estupros, tortura, privação de nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarca neste domingo, 4, para o Chile. A visita de Estado tem o objetivo de diversificar parcerias, mas o encontro com Gabriel Boric coincide com a tensão na América do Sul, que se segue às eleições na Venezuela e expõe divisões dentro da esquerda na região.

O chileno, expoente do novo progressismo, adota posição mais firme com a ditadura de Nicolás Maduro. Enquanto o brasileiro mostrou que ainda tem dificuldade em condenar seus aliados de longa data e atualizar a sua política externa a um mundo radicalmente diferente do que encontrou nos governos Lula 1 e 2.

“Boric representa uma nova geração que começou na política no pós-Guerra Fria”, aponta o cientista político Mauricio Santoro, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. “Ele leva para a política externa uma preocupação muito grande com a democracia e os direitos humanos. Representa outro tipo de esquerda, outro tipo de liderança progressista”.

Em contraste, Lula traz a visão de mundo que ele tinha quando foi eleito pela primeira vez, há duas décadas, afirma o analista. O problema é que o mundo mudou, assim como a Venezuela.

“No passado, embora Hugo Chávez tenha tomado decisões autoritárias e enfraquecido as instituições, ainda se podia dizer que era um governo democrático. Lula ainda tem visão daquela Venezuela. Se recusou a ver o nível de brutalidade no país, se recusou a ver como o regime se tornou autoritário, como houve um colapso na economia, com 8 milhões de imigrantes”, aponta Santoro.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Exemplo disso foi a declaração de que não há nada de “grave” ou “anormal” na contestada eleição da Venezuela, sugerindo que a oposição deveria recorrer à Justiça para questionar os resultados.

Foi justamente o que Nicolás Maduro fez — pedir ao Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela a auditoria das eleições. Acontece que a corte é dominada pelo chavismo, que forçou aposentadorias antecipadas e aumentou o número de juízes para assumir o controle sobre a Justiça, que nunca emite decisões contrárias à ditadura. Foi o que se viu com a inabilitação da líder opositora María Corina Machado.

Alinhado com a Colômbia de Gustavo Petro e o México de Andrés Manuel López Obrador, presidentes da esquerda mais próximos do chavismo, o Brasil tem se limitado a cobrar a divulgação das atas, que comprovariam o resultado das eleições. Isso não aconteceu até agora, passada uma semana da votação.

“Por mais que o posicionamento oficial da diplomacia brasileira esteja mais próximo do pragmatismo ao exigir as atas de votação antes de reconhecer o resultado o presidente demonstrou mais de uma vez um compromisso com o regime chavista e uma crença na democracia do país que só podem ser justificados como uma amizade pessoal entre Lula e Maduro”, escreveu o jornalista e doutor em Relações Internacionais Daniel Buarque em artigo para o Interesse Nacional publicado no Estadão.

Gabriel Boric, por outro lado, disse que os resultados apresentados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela são difíceis de acreditar — o órgão é controlado pelo chavismo e deu vitória a Nicolás Maduro enquanto a oposição afirma ter provas de fraude. Em mensagem contundente, ele exigiu transparência no processo, com verificação de observadores internacionais e independentes. “Do Chile, não reconheceremos nenhum resultado que não seja verificável”, alertou.

A advertência pública colocou o Chile na lista de países sul-americanos com missões diplomáticas expulsas da Venezuela. Boric rebateu que a expulsão demonstra “profunda intolerância à divergência, essencial numa democracia”. Ele explicou que sua posição sobres as eleições foi motivada por convicção e pelo aprendizado da história chilena, referindo-se à ditadura de Augusto Pinochet, e pediu que a vontade dos venezuelanos seja respeitada pelo bem de toda América Latina.

Como mostrou o Estadão o Chile ficou de fora da nota conjunta de Brasil, Colômbia e México, que pediu apuração imparcial da eleição, porque as relações com a Venezuela se deterioram após os comentários de Boric.

“Houve vários momentos em que América Latina se dividiu de maneira muito profunda sobre como lidar com a Venezuela”, lembra Maurício Santoro. Ele destaca que essas diferenças costumavam ser entre os governos conservadores, mais duros com o regime, e os de esquerda, que se apresentavam como defensores do chavismo ou pelo menos evitavam fazer críticas.

Agora, no entanto, essas divisões têm ultrapassado o espectro ideológico. “Há um isolamento maior da Venezuela na América Latina, que não é mais limitado ao embate esquerda versus direita na região”, afirma.

Histórico de tensões sobre a Venezuela

Essa não foi a primeira vez que Santiago adotou uma postura mais firme que Brasília com relação à Caracas. Lula recebeu Maduro com pompas para o encontro de líderes sul-americanos que promoveu no ano passado. Como parte do esforço para reabilitar o aliado de longa data, ele criticou as sanções americanas e disse que a Venezuela seria vítima de uma “narrativa”.

Ao fazer coro à versão do regime para a crise, que espalhou quase 8 milhões de imigrantes e refugiados venezuelanos pela região, Lula causou incômodo entre os líderes presentes em Brasília. A declaração foi criticada pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, da centro-direita, e Gabriel Boric.

“Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse”, pontuou o chileno na época. “Não é uma narrativa, é uma realidade, é séria e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara.”

Lula então dobrou a aposta: “Não é possível que não tenha o mínimo de democracia na Venezuela”, disse. “O chavismo disputou 29 eleições e perdeu duas.”

Presidente Lula se encontra com Nicolás Maduro em reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) Foto: @nicolasmaduro Via Instagram

“Havia ali o interesse do presidente em fazer um gesto de desagravo a Maduro depois que Bolsonaro rompeu as relações diplomáticas com a Venezuela. E havia também uma expectativa otimista de Lula e (do assessor especial) Celso Amorim de que era possível convencê-lo a fazer um acordo”, avalia Santoro.

O acordo de fato existiu, mas nunca foi cumprido. Depois de prometer que permitiria eleições competitivas com observação internacional, o chavismo impediu a candidatura da líder opositora María Corina Machado, perseguiu a oposição e barrou observadores, num processo que culminou nas eleições contestadas, sob acusação de fraude.

“Maduro não tinha a intenção de cumprir esses acordos. Ele estava apenas ganhando tempo enquanto se preparava para o confronto com a oposição. E houve por parte do presidente Lula um erro de avaliação, que não acontece só com a Venezuela, tem acontecido também com a Rússia”, afirma Maurício Santoro.

Guerra na Ucrânia

A guerra é, inclusive, outro ponto de divergência entre Lula e Boric. Ele condena a agressão russa enquanto Lula tentou se apresentar como um mediador, mas passou a ser visto como pró-Moscou por declarações que irritaram Kiev e seus aliados da Otan.

Essa diferença ficou evidente quando Boric defendeu uma resolução mais contundente da cúpula entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). “Hoje é a Ucrânia e amanhã pode ser qualquer um de nós. Não importa se gostamos ou não do presidente de outro país. O importante é o respeito ao direito internacional, que foi claramente violado aqui por uma parte que é a invasora, a Rússia”, disse.

Lula discordou da cobrança, que atribuiu à falta de experiência do chileno — Boric tem 38 anos e foi eleito como presidente mais jovem na história do país. “Possivelmente, a falta de costume de participar dessas reuniões faz com que um jovem seja mais sequioso, mais apressado, mas as coisas acontecem assim”, atestou.

Boric minimizou dizendo que não se sentia ofendido pela declaração, mas reafirmou que considera a guerra na Ucrânia uma “agressão inaceitável”. Contrariando a pressão de Moscou, que busca alianças na América Latina para contornar o isolamento imposto por Estados Unidos e Europa, o chileno tem se mantido firme ao condenar a invasão.

Presidente do Chile, Gabriel Boric, na cúpula de líderes sul-americanos em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Ao contrário de Lula, ele aceitou o convite da Ucrânia e participou da Cúpula para Paz, na Suíça. Gabriel Boric estava entre os líderes escolhidos para apresentar a declaração final do encontro que reuniu representantes de 90 países. “Essa Cúpula não ó sobre Otan. Não é sobre ideias políticas de esquerda ou de direita, não se trata de países do Sul ou do Norte. É sobre respeito ao direito internacional e aos direitos humanos como princípios fundamentais”, declarou.

O Brasil participou apenas como observador e ficou entre os 12 países que não assinaram a declaração final em defesa da integridade territorial da Ucrânia. A justificativa do governo brasileiro foi que a ausência da Rússia impossibilitava as negociações para paz. “Porque não é possível você ter uma briga entre dois e achar que se reunindo só com um, resolve o problema”, disse Lula, que estava em viagem na Europa, mas evitou passar pela Suíça.

O petista já disse que o presidente ucraniano Volodmir Zelenski seria tão responsável pela guerra quanto o russo Vladimir Putin e que “quando um não quer, dois não brigam”. Ele também foi criticado ao sugerir que Estados Unidos e União Europeia estariam fomentando a guerra com o fornecimento de armas para a defesa da Ucrânia.

Gabriel Boric, por outro lado, tem deixado claro que só há um lado culpado pelo conflito. “Para que haja paz, é preciso identificar quem é o responsável pelo início da guerra”, afirmou em entrevista ao The Washington Post em setembro. “Quem violou a integridade territorial e o direito internacional de um país livre? Foi a Rússia.”

Defesa da democracia

Na mesma entrevista, ele enfatizou a condenação às ditaduras na vizinhança. “Não tem como eu me manter firme contra as ditaduras na América Latina dos anos 1970 e não dizer nada sobre o que está acontecendo agora na Nicarágua. É inconsistente”.

Essa é justamente a inconsistência de Lula. O presidente brasileiro foi eleito com o discurso de defesa da democracia e vítima de uma tentativa de golpe por apoiadores do adversário Jair Bolsonaro, que invadiram Brasília no 8 de janeiro. Apesar disso, tem dificuldade em condenar as ditaduras de antigos aliados do PT.

“Essas contradições são ainda mais profundas pelo momento histórico que o Brasil está vivendo. Lula foi eleito com diferença mínima porque um grupo muito expressivo de eleitores de centro votaram nele por temer uma guinada autoritária sob Bolsonaro. São eleitores que não necessariamente concordam com a agenda de esquerda, que estavam preocupados com a democracia e estão muito descontentes com o posicionamento da política externa”, conclui Santoro.

No caso da Nicarágua, por exemplo, o governo Lula defende o que chama de “posição construtiva”. O Brasil chegou a manifestar no Conselho de Direitos Humanos da ONU a preocupação com as violações no País. Mas se recusou a aderir à declaração conjunta de 55 países —incluindo Chile e Colômbia — que condenava crimes cometidos pelo ditador Daniel Ortega.

A lista de violações, segundo relatório das Nações Unidas, inclui execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, estupros, tortura, privação de nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarca neste domingo, 4, para o Chile. A visita de Estado tem o objetivo de diversificar parcerias, mas o encontro com Gabriel Boric coincide com a tensão na América do Sul, que se segue às eleições na Venezuela e expõe divisões dentro da esquerda na região.

O chileno, expoente do novo progressismo, adota posição mais firme com a ditadura de Nicolás Maduro. Enquanto o brasileiro mostrou que ainda tem dificuldade em condenar seus aliados de longa data e atualizar a sua política externa a um mundo radicalmente diferente do que encontrou nos governos Lula 1 e 2.

“Boric representa uma nova geração que começou na política no pós-Guerra Fria”, aponta o cientista político Mauricio Santoro, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. “Ele leva para a política externa uma preocupação muito grande com a democracia e os direitos humanos. Representa outro tipo de esquerda, outro tipo de liderança progressista”.

Em contraste, Lula traz a visão de mundo que ele tinha quando foi eleito pela primeira vez, há duas décadas, afirma o analista. O problema é que o mundo mudou, assim como a Venezuela.

“No passado, embora Hugo Chávez tenha tomado decisões autoritárias e enfraquecido as instituições, ainda se podia dizer que era um governo democrático. Lula ainda tem visão daquela Venezuela. Se recusou a ver o nível de brutalidade no país, se recusou a ver como o regime se tornou autoritário, como houve um colapso na economia, com 8 milhões de imigrantes”, aponta Santoro.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Exemplo disso foi a declaração de que não há nada de “grave” ou “anormal” na contestada eleição da Venezuela, sugerindo que a oposição deveria recorrer à Justiça para questionar os resultados.

Foi justamente o que Nicolás Maduro fez — pedir ao Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela a auditoria das eleições. Acontece que a corte é dominada pelo chavismo, que forçou aposentadorias antecipadas e aumentou o número de juízes para assumir o controle sobre a Justiça, que nunca emite decisões contrárias à ditadura. Foi o que se viu com a inabilitação da líder opositora María Corina Machado.

Alinhado com a Colômbia de Gustavo Petro e o México de Andrés Manuel López Obrador, presidentes da esquerda mais próximos do chavismo, o Brasil tem se limitado a cobrar a divulgação das atas, que comprovariam o resultado das eleições. Isso não aconteceu até agora, passada uma semana da votação.

“Por mais que o posicionamento oficial da diplomacia brasileira esteja mais próximo do pragmatismo ao exigir as atas de votação antes de reconhecer o resultado o presidente demonstrou mais de uma vez um compromisso com o regime chavista e uma crença na democracia do país que só podem ser justificados como uma amizade pessoal entre Lula e Maduro”, escreveu o jornalista e doutor em Relações Internacionais Daniel Buarque em artigo para o Interesse Nacional publicado no Estadão.

Gabriel Boric, por outro lado, disse que os resultados apresentados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela são difíceis de acreditar — o órgão é controlado pelo chavismo e deu vitória a Nicolás Maduro enquanto a oposição afirma ter provas de fraude. Em mensagem contundente, ele exigiu transparência no processo, com verificação de observadores internacionais e independentes. “Do Chile, não reconheceremos nenhum resultado que não seja verificável”, alertou.

A advertência pública colocou o Chile na lista de países sul-americanos com missões diplomáticas expulsas da Venezuela. Boric rebateu que a expulsão demonstra “profunda intolerância à divergência, essencial numa democracia”. Ele explicou que sua posição sobres as eleições foi motivada por convicção e pelo aprendizado da história chilena, referindo-se à ditadura de Augusto Pinochet, e pediu que a vontade dos venezuelanos seja respeitada pelo bem de toda América Latina.

Como mostrou o Estadão o Chile ficou de fora da nota conjunta de Brasil, Colômbia e México, que pediu apuração imparcial da eleição, porque as relações com a Venezuela se deterioram após os comentários de Boric.

“Houve vários momentos em que América Latina se dividiu de maneira muito profunda sobre como lidar com a Venezuela”, lembra Maurício Santoro. Ele destaca que essas diferenças costumavam ser entre os governos conservadores, mais duros com o regime, e os de esquerda, que se apresentavam como defensores do chavismo ou pelo menos evitavam fazer críticas.

Agora, no entanto, essas divisões têm ultrapassado o espectro ideológico. “Há um isolamento maior da Venezuela na América Latina, que não é mais limitado ao embate esquerda versus direita na região”, afirma.

Histórico de tensões sobre a Venezuela

Essa não foi a primeira vez que Santiago adotou uma postura mais firme que Brasília com relação à Caracas. Lula recebeu Maduro com pompas para o encontro de líderes sul-americanos que promoveu no ano passado. Como parte do esforço para reabilitar o aliado de longa data, ele criticou as sanções americanas e disse que a Venezuela seria vítima de uma “narrativa”.

Ao fazer coro à versão do regime para a crise, que espalhou quase 8 milhões de imigrantes e refugiados venezuelanos pela região, Lula causou incômodo entre os líderes presentes em Brasília. A declaração foi criticada pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, da centro-direita, e Gabriel Boric.

“Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse”, pontuou o chileno na época. “Não é uma narrativa, é uma realidade, é séria e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara.”

Lula então dobrou a aposta: “Não é possível que não tenha o mínimo de democracia na Venezuela”, disse. “O chavismo disputou 29 eleições e perdeu duas.”

Presidente Lula se encontra com Nicolás Maduro em reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) Foto: @nicolasmaduro Via Instagram

“Havia ali o interesse do presidente em fazer um gesto de desagravo a Maduro depois que Bolsonaro rompeu as relações diplomáticas com a Venezuela. E havia também uma expectativa otimista de Lula e (do assessor especial) Celso Amorim de que era possível convencê-lo a fazer um acordo”, avalia Santoro.

O acordo de fato existiu, mas nunca foi cumprido. Depois de prometer que permitiria eleições competitivas com observação internacional, o chavismo impediu a candidatura da líder opositora María Corina Machado, perseguiu a oposição e barrou observadores, num processo que culminou nas eleições contestadas, sob acusação de fraude.

“Maduro não tinha a intenção de cumprir esses acordos. Ele estava apenas ganhando tempo enquanto se preparava para o confronto com a oposição. E houve por parte do presidente Lula um erro de avaliação, que não acontece só com a Venezuela, tem acontecido também com a Rússia”, afirma Maurício Santoro.

Guerra na Ucrânia

A guerra é, inclusive, outro ponto de divergência entre Lula e Boric. Ele condena a agressão russa enquanto Lula tentou se apresentar como um mediador, mas passou a ser visto como pró-Moscou por declarações que irritaram Kiev e seus aliados da Otan.

Essa diferença ficou evidente quando Boric defendeu uma resolução mais contundente da cúpula entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). “Hoje é a Ucrânia e amanhã pode ser qualquer um de nós. Não importa se gostamos ou não do presidente de outro país. O importante é o respeito ao direito internacional, que foi claramente violado aqui por uma parte que é a invasora, a Rússia”, disse.

Lula discordou da cobrança, que atribuiu à falta de experiência do chileno — Boric tem 38 anos e foi eleito como presidente mais jovem na história do país. “Possivelmente, a falta de costume de participar dessas reuniões faz com que um jovem seja mais sequioso, mais apressado, mas as coisas acontecem assim”, atestou.

Boric minimizou dizendo que não se sentia ofendido pela declaração, mas reafirmou que considera a guerra na Ucrânia uma “agressão inaceitável”. Contrariando a pressão de Moscou, que busca alianças na América Latina para contornar o isolamento imposto por Estados Unidos e Europa, o chileno tem se mantido firme ao condenar a invasão.

Presidente do Chile, Gabriel Boric, na cúpula de líderes sul-americanos em Brasília.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Ao contrário de Lula, ele aceitou o convite da Ucrânia e participou da Cúpula para Paz, na Suíça. Gabriel Boric estava entre os líderes escolhidos para apresentar a declaração final do encontro que reuniu representantes de 90 países. “Essa Cúpula não ó sobre Otan. Não é sobre ideias políticas de esquerda ou de direita, não se trata de países do Sul ou do Norte. É sobre respeito ao direito internacional e aos direitos humanos como princípios fundamentais”, declarou.

O Brasil participou apenas como observador e ficou entre os 12 países que não assinaram a declaração final em defesa da integridade territorial da Ucrânia. A justificativa do governo brasileiro foi que a ausência da Rússia impossibilitava as negociações para paz. “Porque não é possível você ter uma briga entre dois e achar que se reunindo só com um, resolve o problema”, disse Lula, que estava em viagem na Europa, mas evitou passar pela Suíça.

O petista já disse que o presidente ucraniano Volodmir Zelenski seria tão responsável pela guerra quanto o russo Vladimir Putin e que “quando um não quer, dois não brigam”. Ele também foi criticado ao sugerir que Estados Unidos e União Europeia estariam fomentando a guerra com o fornecimento de armas para a defesa da Ucrânia.

Gabriel Boric, por outro lado, tem deixado claro que só há um lado culpado pelo conflito. “Para que haja paz, é preciso identificar quem é o responsável pelo início da guerra”, afirmou em entrevista ao The Washington Post em setembro. “Quem violou a integridade territorial e o direito internacional de um país livre? Foi a Rússia.”

Defesa da democracia

Na mesma entrevista, ele enfatizou a condenação às ditaduras na vizinhança. “Não tem como eu me manter firme contra as ditaduras na América Latina dos anos 1970 e não dizer nada sobre o que está acontecendo agora na Nicarágua. É inconsistente”.

Essa é justamente a inconsistência de Lula. O presidente brasileiro foi eleito com o discurso de defesa da democracia e vítima de uma tentativa de golpe por apoiadores do adversário Jair Bolsonaro, que invadiram Brasília no 8 de janeiro. Apesar disso, tem dificuldade em condenar as ditaduras de antigos aliados do PT.

“Essas contradições são ainda mais profundas pelo momento histórico que o Brasil está vivendo. Lula foi eleito com diferença mínima porque um grupo muito expressivo de eleitores de centro votaram nele por temer uma guinada autoritária sob Bolsonaro. São eleitores que não necessariamente concordam com a agenda de esquerda, que estavam preocupados com a democracia e estão muito descontentes com o posicionamento da política externa”, conclui Santoro.

No caso da Nicarágua, por exemplo, o governo Lula defende o que chama de “posição construtiva”. O Brasil chegou a manifestar no Conselho de Direitos Humanos da ONU a preocupação com as violações no País. Mas se recusou a aderir à declaração conjunta de 55 países —incluindo Chile e Colômbia — que condenava crimes cometidos pelo ditador Daniel Ortega.

A lista de violações, segundo relatório das Nações Unidas, inclui execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias, estupros, tortura, privação de nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país.

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