Um apagão massivo acabava de mergulhar 40% da Argentina na escuridão, e o presidente Alberto Fernández acabava de pronunciar o último discurso sobre o Estado da União de seu mandato. Mas, na manhã de 2 de março, a única cobertura de imprensa transmitida pelas principais emissoras de TV especializadas em notícias exibia imagens da cidade de Rosário, onde homens armados tinham disparado, durante a noite, contra um supermercado que pertence à família do superastro do futebol Lionel Messi.
“Messi, estamos te esperando”, dizia uma mensagem ameaçadora deixada pelos assaltantes, que continuava com uma referência ao prefeito de Rosário, Pablo Javkin. “Javkin é narcotraficante, ele não vai te proteger.”
Conforme admitiu o ministro da Segurança, Aníbal Fernández, o inquietante ataque foi evidência de que “os narcotraficantes venceram” na maior cidade da província argentina de Santa Fé. O domingo seguinte trouxe mais notícias tristes: relatos sobre a morte de um menino de 11 anos em Rosário, onde atiradores atacaram uma festa de aniversário.
Conforme a inflação se aproxima de 100% e uma seca no campo consome as já escassas reservas argentinas em moeda estrangeira, poderia se esperar que as dores econômicas do país fossem o único tópico do debate em um ano eleitoral. E especialmente considerando que a Argentina é uma ilha de relativa segurança na região.
Ainda que o índice de crimes contra a propriedade no país tenha se elevado por algum tempo – com um terço dos argentinos relatando ter sido vítima recentemente – sua taxa geral de homicídios, de 5,3 a cada 100 mil habitantes, é uma das mais baixas na América Latina (nos Estados Unidos, o índice de homicídios é de 6,5 a cada 100 mil habitantes). Até 2021, o número de roubos aumentava 10% ao ano, e a taxa de homicídios tinha baixado 14%.
Mas em meio a uma situação que se agrava em Rosário, uma cidade localizada em um cruzamento de rotas de comércio de drogas, e após uma onda de homicídios na geralmente abastada e segura capital, algo surpreendente ocorreu: temas relacionados à segurança pública passaram a se rivalizar com tópicos econômicos no debate político, com amplas implicações para as eleições que se aproximam.
Mais da Argentina
No ano passado, uma pesquisa do departamento de psicologia da Universidade de Buenos Aires mostrou que 80% dos entrevistados sentia que as condições da segurança pública tinham piorado nos seis meses recentes. Entre os partidários da oposição – mas não na coalizão de governo – preocupações a respeito de segurança pública foram levantadas quase com a mesma frequência (84%) que preocupações com a inflação (87%). Outra pesquisa, da empresa Opinaia, mostram criminalidade aliada a corrupção em segundo lugar, atrás da inflação, até fevereiro, mas à frente da pobreza – o que era diferente um ano e meio atrás.
“Há um hiato que se amplia entre os indicadores reais de criminalidade e o medo do crime”, afirmou o professor de sociologia e criminologia Marcelo Bergman, da Universidade Três de Fevereiro. “Mas as pessoas realmente acreditam que a criminalidade está fora de controle, que não é seguro caminhar nas ruas, e isso é verdade, pois o índice de roubos está aumentando.”
Em Buenos Aires, enormes outdoors à beira de avenidas exibem o rosto de Patricia Bullrich, presidente do Partido Proposta Republicana (PRO), que declarou intenção de concorrer à presidência integrando a coalizão Juntos pela Mudança (JxC) – e cujo slogan diz: “Tem que pôr ordem”.
Em resposta aos eventos em Rosário, Bullrich enfatizou seu plano anunciado para acionar os militares para ajudar a solucionar a situação na cidade. Trata-se de um movimento controvertido na Argentina, onde a história do século 20 incutiu desconfiança em relação ao envolvimento das Forças Armadas em assuntos domésticos.
“Nós temos de usar todas as ferramentas do Estado para derrotar (os narcotraficantes), incluindo as Forças Armadas”, tuitou ela.
Bullrich tem perseguido obstinadamente uma posição linha-dura em segurança, que, ela espera, lhe dará vantagem contra seu rival nas primárias da oposição, o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. Bullrich criticou recentemente Larreta, que faz campanha sobre uma plataforma mais centrista, a favor de colocar armas Taser de eletrochoque nas mãos da polícia da capital após uma mulher ser morta a tiros no sistema metroviário de Buenos Aires, em fevereiro.
“(O tema da segurança) poderia ter mais impacto nas primárias do Juntos pela Mudança do que na eleição geral, porque nas primárias existem duas faixas fortemente definidas, uma mais dura e outra mais branda”, afirmou o professor e especialista em segurança Diego Gorgal.
Ao enfatizar sua posição linha-dura contra o crime, a ex-ministra da Segurança pode também estar buscando retirar apoio de Javier Milei, deputado federal libertário e outro potencial competidor da oposição na corrida presidencial. Milei atraiu atenção com denúncias furiosas a respeito do que ele qualifica como “a casta política” da Argentina – mas suas convicções libertárias tornam mais difícil para ele adotar uma posição em nome da lei e da ordem.
Seria a ênfase da oposição em segurança – juntamente com a incessante cobertura dos meios de comunicação sobre criminalidade, que tendem a ter mais simpatia pela oposição – ter como intenção retirar a atenção dos frequentemente menos populares pacotes de medidas de ajuste econômico pretendidos pela oposição?
“Milei representa uma ameaça eleitoral pela direita, então enviesar para a direita (em relação a segurança) é um movimento inteligente para estancar a sangria”, afirmou Andrés Malamud, pesquisador-sênior do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “É difícil fazer-lhe frente na arena econômica, mas isso é muito mais fácil em todas as outras.”
Fede Angelini, vice-presidente do partido PRO
E a linha-dura de Bullrich em relação a segurança já surte consequências além das primárias da oposição. Em 7 de março, o presidente Fernández anunciou que planeja mandar 1,4 mil agentes federais para Rosário, acompanhados de militares, para auxiliar nas medidas de logística. O movimento poderia ser interpretado como uma tentativa do governo de furtar um pouco de vento das velas de Bullrich – sob o custo de atestar a credibilidade de seus planos.
“Para começar a resolver nossos problemas, medidas excepcionais (precisam ser) adotadas contra uma situação catastrófica”, argumentou Fede Angelini, vice-presidente do partido PRO, de Bullrich, e deputado federal pela Província de Santa Fé. Questionado a respeito do que considera mais importante, inflação ou segurança, Angelini disse à Americas Quarterly que ambos os temas estão “no mesmo nível – não adianta ter dinheiro se te matam”.
A Argentina não é o único país na região tradicionalmente seguro a lidar com novas preocupações relativas à segurança pública. No Equador, a aprovação do presidente Guillermo Lasso afundou conforme o país anteriormente pacífico testemunhou um rápido crescimento no crime organizado e nos índices de violência nos anos recentes. E no Chile, pesquisas mostram que criminalidade é a maior preocupação dos eleitores, em meio a uma percepção crescente de insegurança na capital, Santiago, e no norte.
Enquanto isso, as medidas drásticas do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, contra gangues, jogando dezenas de milhares na cadeia com pouco acesso a advogados de defesa, têm sido condenadas por grupos de defesa de direitos humanos, mas admiradas por muitos políticos de toda a região. Até aqui, nenhum político argentino do mainstream está entre os que louvam a estratégia de Bukele.
Como o tema da segurança mexe com a vida dos argentinos? Uma mulher que trabalha em uma loja de esquina em Munro, uma cidade de classe média ao norte de Buenos Aires, classificou a situação de segurança em seu bairro, mais a oeste, como um “desastre” e contou que a casa de seu irmão foi saqueada por ladrões apesar de ficar a poucos metros de uma delegacia de polícia. Mas outros moradores da localidade disseram que o crime não é sua principal preocupação, afirmando que seu voto seria decidido por outros fatores.
Gabriela Oliveira, que trabalha em um asilo de idosos em que vive em Florencio Varela, no sul da região metropolitana de Buenos Aires, relatou uma situação marcadamente deteriorada na segurança pública nos anos recentes.
“Os políticos se preocupam com (coisas como) manutenção de vias (…), mas em relação à segurança há um abandono terrível”, disse ela à Americas Quarterly, citando não atividades relacionadas a drogas, mas, em vez disso, falta de oportunidades de emprego para a juventude como uma das principais causas e mencionando preocupações relacionadas à segurança como o tema que mais influenciará seu voto este ano. “É a questão mais importante.”
A respeito da possibilidade de um papel expandido para as Forças Armadas na segurança pública, ela acrescentou: “Eu concordo com Patricia Bullrich”. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*É editor e gestor de redes sociais da Americas Quarterly