Entenda num guia simples como o Hezbollah pode agravar a guerra entre Israel e Hamas


Muito mais poderoso militarmente que o Hamas, o Hezbollah surgiu durante a guerra civil libanesa (1975-1990) e é um aliado próximo do Irã

Por Jorge C. Carrasco
Atualização:

Os ataques terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro e a retaliação israelense ampliaram os temores de que o atual conflito na Faixa de Gaza se espalhe para a região. A situação mais tensa no momento é na fronteira norte com o Líbano, onde o grupo radical xiita Hezbollah tem a maioria de suas bases militares e tem nos últimos dias lançado escaramuças contra posições israelenses.

Muito mais poderoso militarmente que o Hamas, o Hezbollah surgiu durante a guerra civil libanesa (1975-1990) e é um aliado próximo do Irã. A milícia enfrentou Israel numa guerra em 2006, na qual saiu derrotada. A partir de 2011, ampliou sua influência na política libanesa e hoje tem laços profundos no país.

Entenda num guia simples como o grupo atua e quais os riscos de o conflito se espalhar

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Combatentes do Hezbollah realizando exercícios de treinamento durante uma visita da mídia a um de seus campos na vila de Aaramta, no sul do Líbano, em maio de 2023. Foto: Wael Hamzeh/EPA

O que é o Hezbollah?

O Hezbollah, que significa “Partido de Deus”, é um grupo radical xiita híbrido (político, social e militar) com sede no Líbano e financiado pelo Irã. O grupo emergiu em 1982 durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). À época, a presença de refugiados palestinos e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no país provocou um conflito sectário nas comunidades libanesas, que passaram a disputar o controle do país. O conflito teve o envolvimento de Israel, da Síria, dos EUA e outras nações ocidentais.

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“O Hezbollah é uma das organizações mais influentes e poderosas do Líbano, com uma presença política e militar significativa”, disse ao Estadão Bernardo Wahl, especialista em segurança e defesa, que atua como professor de relações internacionais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Sua ideologia é baseada no xiismo e em uma visão anti-Israel e anti-ocidental. Além de suas atividades militares, o Hezbollah também é um partido político que possui representação no parlamento libanês e faz parte do governo do Líbano”.

A mulher do lado de retratos de líderes muçulmanos xiitas, incluindo o falecido aiatolá Khomeini do Irã, ao centro. Foto: JAMES HILL / NYT

Segundo o especialista, o Hezbollah é apoiado financeiramente e militarmente pelo Irã e tem sido designado como uma organização terrorista por vários países ocidentais, incluindo os Estados Unidos e Israel. “Enquanto alguns o veem como um grupo de resistência legítimo contra a ocupação estrangeira, outros o consideram uma ameaça à estabilidade regional devido às suas atividades militares e laços com o Irã”, afirmou Wahl.

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De acordo com Wahl, o grupo exerce uma grande influência no Oriente Médio. Além de operar como uma espécie de intermediário de Irã e Síria na região, o Hezbollah é uma das organizações mais bem equipadas e treinadas no Oriente Médio, capacidade de combate que torna este grupo um ator importante em guerras.

Na década de 1980, o Irã criou o Hezbollah com o objetivo de desempenhar um papel no conflito árabe-israelense em apoio aos palestinos — além de se tornar um braço de apoio militar do regime do Aiatolá com grande impacto no mundo árabe e no antagonismo com os países ocidentais.

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“O Irã considera o Hezbollah como uma parte crucial de sua estratégia para expandir sua influência na região do Oriente Médio. Durante a guerra civil na Síria (iniciada em 2011), o Hezbollah apoiou ativamente o governo sírio, inclusive enviando combatentes para lutar ao lado das forças sírias”, disse o especialista. No governo liderado por Bashar al-Assad durante a guerra civil na Síria, por exemplo, a intervenção do grupo contribuiu também para evitar a queda do regime sírio.

Em 1985, a organização publicou um manifesto em que afirmava que seus inimigos eram o Partido Social Democrata Libanês, Israel, França e EUA. Além disso, no texto o grupo prometia acabar com a influência ocidental no Líbano, pedia a destruição do Estado israelense e jurava fidelidade ao líder supremo do Irã. Associado a vários atentados terroristas contra civis ao redor do mundo, o grupo marcou o início da sua violenta corrida contra o Ocidente em 1983, quando realizou atentados suicidas com bombas contra quartéis militares americanos e franceses em Beirute, causando a morte de mais de 300 pessoas.

Sheik Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, durante uma entrevista em seu escritório no sul de Beirute, Líbano, em novembro de 2002. Foto: James Hill / NYT
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Em 1992 a organização decidiu participar abertamente no processo político libanês, alcançando maior popularidade em 2009. Mas apesar do controle político e militar que exerce atualmente neste país através de negociações com a elite e o aproveitamento da fraqueza institucional libanesa, o Hezbollah não conta com um apoio consensual da população. Nas eleições de 2022, manteve somente 13 cadeiras no Parlamento libanês, de 128 membros.

Como o conflito pode se espalhar

O conflito entre Israel e Hamas pode impulsionar uma escalada militar do Hezbollah, abrindo a guerra para o resto da região. Para o especialista Bernardo Wahl, o envolvimento deste grupo na guerra pode ter consequências graves para o Líbano e para o Oriente Médio. “Se decidisse se envolver na guerra entre Israel e o Hamas, isso poderia ampliar o conflito regionalmente. Além do Líbano, o Hezbollah tem apoio de outros grupos xiitas na região, como as milícias xiitas no Iraque e as forças do regime sírio. Um conflito expandido poderia envolver essas partes, levando a uma escalada”, afirmou Wahl em entrevista ao Estadão.

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Para o professor, a ameaça do Hezbollah é constante na fronteira com Israel, mas uma guerra em escala completa não seria conveniente para o grupo, porque pode agravar a situação econômica do Líbano e gerar maiores divisões internas no país. Além disso, “o envolvimento do Hezbollah na guerra...poderia ser visto como uma extensão da política iraniana. Isso poderia levar a uma resposta internacional mais ampla, envolvendo outros atores, como os Estados Unidos e seus aliados no Golfo Pérsico”

Independência do Líbano Foto: Lebanon Archive

Cronologia: O Surgimento do Hezbollah

O Hezbollah surgiu como resposta à invasão do Líbano por Israel em 1982. Poucos anos antes, em 1979, o Irã havia experienciado sua revolução islâmica, que causou um grande impacto entre os xiitas libaneses e seguidores do aiatolá Khomeini. As ideias de importar a revolução iraniana para o Líbano e a criação de um movimento armado radical anti-Israel eram atrativas e foram discutida durante anos entre líderes iranianos e libaneses renomados, como o xeque Sobhi Tufayli, que mais tarde se tornou o primeiro secretário-geral do Hezbollah.

Com a invasão de Israel, em 1982, o governo teocrático do Irã viu uma oportunidade para concretizar seus planos e chegou a oferecer ajuda militar ao Líbano. Guardas Revolucionários iranianos foram enviados depois do breve conflito para o norte do Vale do Bekaa, e a partir desse momento xiitas passaram a ser recrutados para formar a base do que logo tornou-se o Hezbollah.

Três anos depois, o Hezbollah declarou formalmente sua existência em sua “Carta Aberta”, assim como sua intenção de criar um estado islâmico. O manifesto descrevia suas metas crenças. Entre elas: “a necessidade da destruição de Israel”.

1983: O Primeiro grande ataque terrorista

Em abril de 1983, os extremistas do Hezbollah realizados atentados com bombas contra a embaixada dos EUA em Beirute, matando 63 pessoas. Poucos meses depois, em outubro, pelo menos 305 pessoas foram mortas em ataques suicidas em quartéis que abrigam tropas americanas e francesas.

Os ataques foram atribuídos ao Hezbollah, que foi também condenado por um tribunal dos EUA pelo ato terrorista.

1984: Carro-bomba na embaixada dos EUA em Beirute

Pouco mais de um ano depois do primeiro atentado às embaixadas estrangeiras no Líbano, depois que os Estados Unidos transferiram as operações da embaixada de Beirute Ocidental para Aukar, em Beirute Oriental, um homem-bomba acelerou em direção à porta da embaixada uma van carregada com 2.000 kg de explosivos. O motorista foi baleado antes de atingir seu alvo, mas o veículo detonou, destruindo a fachada a frente da embaixada.

1988: Acordo de Taif

Em outubro de 1988, membros cristãos e muçulmanos do Parlamento do Líbano assinaram um pacto em Taif, na Arábia Saudita, comprometendo-se a abolir o sectarismo, resultando no “Acordo de Taif”. O acordo tinha a intenção de encontrar uma solução pacífica para a guerra civil de 15 anos.

Os três principais princípios do acordo foram o estabelecimento de um novo equilíbrio entre a unidade do Líbano e seu sistema político e a diversidade social nacional; a transferência do poder executivo da presidência da república para o Conselho de Ministros; e o princípio da paridade entre muçulmanos e cristãos no parlamento, no gabinete e nos escalões mais altos do serviço público.

O pacto também ordenou o desarmamento de todas as milícias, com exceção do Hezbollah.

1992: Atentado em Buenos Aires e entrada na esfera política

O ataque terrorista do Hezbollah à embaixada israelense em Buenos Aires chocou a América Latina em março de 1992. O atentado com bombas deixou um saldo de 22 mortos e 242 feridos no coração da capital da Argentina. A explosão, causada por um veículo carregado de dinamite, demoliu o prédio da embaixada, transformando o que eram escritórios e espaços de trabalho em poeira e pedaços de concreto.

No final do ano, Hassan Nasrallah torna-se secretário-geral do Hezbollah, após Israel assassinar seu antecessor. Nesse ano o Hezbollah conquistou oito cadeiras no Parlamento depois de participar das eleições nacionais pela primeira vez.

1994: Ataques terroristas em Londres e Buenos Aires

Nesse ano, atentados com carros-bomba na embaixada de Israel em Londres e em um centro comunitário judaico em Buenos Aires são atribuídos ao Hezbollah. Dúzias de pessoas foram vítimas dos ataques.

1997: EUA designa o Hezbollah como grupo terrorista

O Departamento de Estado dos EUA designou o Hezbollah como uma organização terrorista estrangeira em outubro de 1997.

Mais de 60 outros países e organizações também designaram o Hezbollah — em parte ou em sua totalidade — como uma organização terrorista.

Uma mulher libanesa lamenta a morte do ex-primeiro-ministro Rafik al-Hariri durante protestos furiosos na cidade portuária de Sidon, em 15 de fevereiro de 2005. Foto: ALI HASHISHO / REUTERS

2005: Assassinato do premiê libanês Rafic Hariri

Rafic Hariri, o então primeiro-ministro que personificou a reconstrução do Líbano após a guerra civil, foi morto em um ataque com bombas em fevereiro de 2005. A explosão ocorreu no centro de Beirute, quebrando janelas em um raio de quase meio quilômetro.

Um homem-bomba em uma caminhonete Mitsubishi carregada com duas toneladas de explosivo militar havia se posicionado estrategicamente, esperando a comitiva de Hariri. A morte do premiê libanês dá início à Revolução do Cedro.

Um tribunal da ONU acusou posteriormente o Hezbollah pelo ataque.

2006: Guerra do Líbano contra Israel

Em 2006, o Hezbollah atacou a fronteira de Israel, matando 8 soldados e sequestrando dois soldados. Este ataque dá início a uma guerra entre Israel e o Líbano, que durou cerca de um mês.

O saldo foi de mais de mil duzentos libaneses e 170 israelenses mortos.

2009: Manifesto do Hezbollah é atualizado

O Hezbollah publica um manifesto atualizado. No texto, o grupo declara sua intenção de proporcionar uma maior abertura ao processo democrático no Líbano, atenua a retórica islâmica, mas mantém “mão dura” contra Israel e os EUA.

Em um vídeo publicado na internet, o chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah, leu o manifesto e disse que era hora de o grupo introduzir mudanças pragmáticas sem abandonar seu compromisso com uma ideologia islâmica.

“As pessoas evoluem. O mundo inteiro mudou nos últimos 24 anos. O Líbano mudou. A ordem mundial mudou”, disse ele.

2011-2013: Apoio à guerra na Síria

O Hezbollah, que tem sido um aliado de longa data do governo da família Al-Assad na Síria, apoiou o governo durante a guerra civil síria em sua luta contra a oposição síria, que o Hezbollah descreveu como uma “conspiração para destruir sua aliança com Al-Assad contra Israel”.

A organização enviou cerca de sete mil militantes para auxiliar as forças iranianas e russas no apoio ao governo sírio contra grupos rebeldes sunitas. Em 2019 o grupo retirou seus militantes. A guerra na Síria tornou o Hezbollah uma força militar mais forte.

Atualidade e possível impacto na guerra de Israel e Hamas

O Hezbollah tem e expandido e aprimorado seu arsenal militar nos últimos anos, mas não tem entrado em confronto direto com Israel ou com seus aliados ocidentais.

Soldados israelenses em um tanque próximo ao Kibbutz Beoeri, Israel, uma das comunidades que foi atacada por combatentes do Hamas, em 17 de outubro de 2023.  Foto: Amir Kalifa / NYT

O controle do grupo no Líbano tem diminuído nos últimos anos com o aumento da desconfiança dos cidadãos. Os libaneses criticam o grupo pelo seu suposto envolvimento nas explosões do porto de Beirute em 2020, que mataram mais de duzentas pessoas, por exemplo. Essa insatisfação tem se transformado em votos, e as eleições legislativas de 2022 são uma amostra disso, com o aumento de candidatos independentes que foram eleitos para o Parlamento, em detrimento dos candidatos apoiadores do Hezbollah.

Apesar disso, o grupo extremista continua controlando amplamente vários ministérios no país e influenciando na sua política externa. E com o aumento dos bombardeios e da incursão terrestre do exército israelense em Gaza, a possibilidade da entrada total do Hezbollah na guerra entre o Hamas e Israel tem se tornado cada vez mais próxima — com capacidade mudar totalmente os rumos do conflito.

O Hezbollah, diferentemente do Hamas, possui um exército grande e bastante treinado, que adquiriu uma ampla experiência de combate na sua intervenção na guerra na Síria. Seu armamento é muito mais moderno e robusto que o de outros grupos similares na região, e o financiamento iraniano garante para o grupo o abastecimento de mísseis. Em 2021, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, afirmou que o grupo extremista islâmico possuía cerca de 100.000 combatentes.

O maior risco da abertura de um front envolvendo o Hezbollah nesta guerra, no entanto, seria a expansão do conflito para países terceiros e a intervenção militar ou logística das duas nações com maior interesse na região: os EUA e o Irã. O exército americano, que tem seguido bem de perto o conflito, mantém seus maiores porta-aviões próximos à costa libanesa para pressionar os inimigos de Israel, enquanto o Teerã, o único país do Oriente Médio que possui armas nucleares, ameaça com desencadear uma retaliação sem precedentes juntando o “Eixo da Resistência” — termo utilizado pela república islâmica para se referir às forças militares que influencia; as facções extremistas palestinas, a Síria, o Hezbollah e outros grupos paramilitares da região.

“Algumas autoridades ocidentais questionaram se há a intenção de abrir uma nova frente contra a entidade sionista. Isso é claro. À luz da agressão contínua, dos crimes de guerra e do cerco a Gaza, a abertura de outras frentes é uma possibilidade real”, disse em Beirute o Ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, poucas semanas atrás.

“É claro que se os crimes de guerra contra a Palestina e Gaza continuarem, receberão uma resposta dos restantes eixos, e a entidade e os países que os apoiam são responsáveis por essas consequências”, afirmou.

De acordo com Natalia Calfat, doutora em ciência política pela USP e especialista em assuntos do Oriente Médio, a fronteira de Israel com o Líbano é instável e o escalamento dos confrontos, iniciados nas últimas semanas, podem piorar tanto a situação da região como a dos próprios libaneses.

“O Líbano está enfrentando atualmente uma crise socioeconômica bastante grave, que piora com o aumento dos deslocados internos gerados pelos embates com as forças israelenses. Um escalamento do conflito vai criar uma tensão maior em um país sem capacidade para absorver essa migração interna”, disse a especialista em entrevista ao Estadão.

“Há muita cautela por parte do Hezbollah para que não se repitam os eventos de 2006. O grupo não vai levar a nenhuma decisão leviana, por conta do seu histórico, mas qualquer passo em falso pode significar a entrada na guerra do Hezbollah”, afirmou Natalia Calfat.

“Para muitos, a tensão com Israel na fronteira levanta os esqueletos da guerra civil libanesa.”

Os ataques terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro e a retaliação israelense ampliaram os temores de que o atual conflito na Faixa de Gaza se espalhe para a região. A situação mais tensa no momento é na fronteira norte com o Líbano, onde o grupo radical xiita Hezbollah tem a maioria de suas bases militares e tem nos últimos dias lançado escaramuças contra posições israelenses.

Muito mais poderoso militarmente que o Hamas, o Hezbollah surgiu durante a guerra civil libanesa (1975-1990) e é um aliado próximo do Irã. A milícia enfrentou Israel numa guerra em 2006, na qual saiu derrotada. A partir de 2011, ampliou sua influência na política libanesa e hoje tem laços profundos no país.

Entenda num guia simples como o grupo atua e quais os riscos de o conflito se espalhar

Combatentes do Hezbollah realizando exercícios de treinamento durante uma visita da mídia a um de seus campos na vila de Aaramta, no sul do Líbano, em maio de 2023. Foto: Wael Hamzeh/EPA

O que é o Hezbollah?

O Hezbollah, que significa “Partido de Deus”, é um grupo radical xiita híbrido (político, social e militar) com sede no Líbano e financiado pelo Irã. O grupo emergiu em 1982 durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). À época, a presença de refugiados palestinos e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no país provocou um conflito sectário nas comunidades libanesas, que passaram a disputar o controle do país. O conflito teve o envolvimento de Israel, da Síria, dos EUA e outras nações ocidentais.

“O Hezbollah é uma das organizações mais influentes e poderosas do Líbano, com uma presença política e militar significativa”, disse ao Estadão Bernardo Wahl, especialista em segurança e defesa, que atua como professor de relações internacionais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Sua ideologia é baseada no xiismo e em uma visão anti-Israel e anti-ocidental. Além de suas atividades militares, o Hezbollah também é um partido político que possui representação no parlamento libanês e faz parte do governo do Líbano”.

A mulher do lado de retratos de líderes muçulmanos xiitas, incluindo o falecido aiatolá Khomeini do Irã, ao centro. Foto: JAMES HILL / NYT

Segundo o especialista, o Hezbollah é apoiado financeiramente e militarmente pelo Irã e tem sido designado como uma organização terrorista por vários países ocidentais, incluindo os Estados Unidos e Israel. “Enquanto alguns o veem como um grupo de resistência legítimo contra a ocupação estrangeira, outros o consideram uma ameaça à estabilidade regional devido às suas atividades militares e laços com o Irã”, afirmou Wahl.

De acordo com Wahl, o grupo exerce uma grande influência no Oriente Médio. Além de operar como uma espécie de intermediário de Irã e Síria na região, o Hezbollah é uma das organizações mais bem equipadas e treinadas no Oriente Médio, capacidade de combate que torna este grupo um ator importante em guerras.

Na década de 1980, o Irã criou o Hezbollah com o objetivo de desempenhar um papel no conflito árabe-israelense em apoio aos palestinos — além de se tornar um braço de apoio militar do regime do Aiatolá com grande impacto no mundo árabe e no antagonismo com os países ocidentais.

“O Irã considera o Hezbollah como uma parte crucial de sua estratégia para expandir sua influência na região do Oriente Médio. Durante a guerra civil na Síria (iniciada em 2011), o Hezbollah apoiou ativamente o governo sírio, inclusive enviando combatentes para lutar ao lado das forças sírias”, disse o especialista. No governo liderado por Bashar al-Assad durante a guerra civil na Síria, por exemplo, a intervenção do grupo contribuiu também para evitar a queda do regime sírio.

Em 1985, a organização publicou um manifesto em que afirmava que seus inimigos eram o Partido Social Democrata Libanês, Israel, França e EUA. Além disso, no texto o grupo prometia acabar com a influência ocidental no Líbano, pedia a destruição do Estado israelense e jurava fidelidade ao líder supremo do Irã. Associado a vários atentados terroristas contra civis ao redor do mundo, o grupo marcou o início da sua violenta corrida contra o Ocidente em 1983, quando realizou atentados suicidas com bombas contra quartéis militares americanos e franceses em Beirute, causando a morte de mais de 300 pessoas.

Sheik Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, durante uma entrevista em seu escritório no sul de Beirute, Líbano, em novembro de 2002. Foto: James Hill / NYT

Em 1992 a organização decidiu participar abertamente no processo político libanês, alcançando maior popularidade em 2009. Mas apesar do controle político e militar que exerce atualmente neste país através de negociações com a elite e o aproveitamento da fraqueza institucional libanesa, o Hezbollah não conta com um apoio consensual da população. Nas eleições de 2022, manteve somente 13 cadeiras no Parlamento libanês, de 128 membros.

Como o conflito pode se espalhar

O conflito entre Israel e Hamas pode impulsionar uma escalada militar do Hezbollah, abrindo a guerra para o resto da região. Para o especialista Bernardo Wahl, o envolvimento deste grupo na guerra pode ter consequências graves para o Líbano e para o Oriente Médio. “Se decidisse se envolver na guerra entre Israel e o Hamas, isso poderia ampliar o conflito regionalmente. Além do Líbano, o Hezbollah tem apoio de outros grupos xiitas na região, como as milícias xiitas no Iraque e as forças do regime sírio. Um conflito expandido poderia envolver essas partes, levando a uma escalada”, afirmou Wahl em entrevista ao Estadão.

Para o professor, a ameaça do Hezbollah é constante na fronteira com Israel, mas uma guerra em escala completa não seria conveniente para o grupo, porque pode agravar a situação econômica do Líbano e gerar maiores divisões internas no país. Além disso, “o envolvimento do Hezbollah na guerra...poderia ser visto como uma extensão da política iraniana. Isso poderia levar a uma resposta internacional mais ampla, envolvendo outros atores, como os Estados Unidos e seus aliados no Golfo Pérsico”

Independência do Líbano Foto: Lebanon Archive

Cronologia: O Surgimento do Hezbollah

O Hezbollah surgiu como resposta à invasão do Líbano por Israel em 1982. Poucos anos antes, em 1979, o Irã havia experienciado sua revolução islâmica, que causou um grande impacto entre os xiitas libaneses e seguidores do aiatolá Khomeini. As ideias de importar a revolução iraniana para o Líbano e a criação de um movimento armado radical anti-Israel eram atrativas e foram discutida durante anos entre líderes iranianos e libaneses renomados, como o xeque Sobhi Tufayli, que mais tarde se tornou o primeiro secretário-geral do Hezbollah.

Com a invasão de Israel, em 1982, o governo teocrático do Irã viu uma oportunidade para concretizar seus planos e chegou a oferecer ajuda militar ao Líbano. Guardas Revolucionários iranianos foram enviados depois do breve conflito para o norte do Vale do Bekaa, e a partir desse momento xiitas passaram a ser recrutados para formar a base do que logo tornou-se o Hezbollah.

Três anos depois, o Hezbollah declarou formalmente sua existência em sua “Carta Aberta”, assim como sua intenção de criar um estado islâmico. O manifesto descrevia suas metas crenças. Entre elas: “a necessidade da destruição de Israel”.

1983: O Primeiro grande ataque terrorista

Em abril de 1983, os extremistas do Hezbollah realizados atentados com bombas contra a embaixada dos EUA em Beirute, matando 63 pessoas. Poucos meses depois, em outubro, pelo menos 305 pessoas foram mortas em ataques suicidas em quartéis que abrigam tropas americanas e francesas.

Os ataques foram atribuídos ao Hezbollah, que foi também condenado por um tribunal dos EUA pelo ato terrorista.

1984: Carro-bomba na embaixada dos EUA em Beirute

Pouco mais de um ano depois do primeiro atentado às embaixadas estrangeiras no Líbano, depois que os Estados Unidos transferiram as operações da embaixada de Beirute Ocidental para Aukar, em Beirute Oriental, um homem-bomba acelerou em direção à porta da embaixada uma van carregada com 2.000 kg de explosivos. O motorista foi baleado antes de atingir seu alvo, mas o veículo detonou, destruindo a fachada a frente da embaixada.

1988: Acordo de Taif

Em outubro de 1988, membros cristãos e muçulmanos do Parlamento do Líbano assinaram um pacto em Taif, na Arábia Saudita, comprometendo-se a abolir o sectarismo, resultando no “Acordo de Taif”. O acordo tinha a intenção de encontrar uma solução pacífica para a guerra civil de 15 anos.

Os três principais princípios do acordo foram o estabelecimento de um novo equilíbrio entre a unidade do Líbano e seu sistema político e a diversidade social nacional; a transferência do poder executivo da presidência da república para o Conselho de Ministros; e o princípio da paridade entre muçulmanos e cristãos no parlamento, no gabinete e nos escalões mais altos do serviço público.

O pacto também ordenou o desarmamento de todas as milícias, com exceção do Hezbollah.

1992: Atentado em Buenos Aires e entrada na esfera política

O ataque terrorista do Hezbollah à embaixada israelense em Buenos Aires chocou a América Latina em março de 1992. O atentado com bombas deixou um saldo de 22 mortos e 242 feridos no coração da capital da Argentina. A explosão, causada por um veículo carregado de dinamite, demoliu o prédio da embaixada, transformando o que eram escritórios e espaços de trabalho em poeira e pedaços de concreto.

No final do ano, Hassan Nasrallah torna-se secretário-geral do Hezbollah, após Israel assassinar seu antecessor. Nesse ano o Hezbollah conquistou oito cadeiras no Parlamento depois de participar das eleições nacionais pela primeira vez.

1994: Ataques terroristas em Londres e Buenos Aires

Nesse ano, atentados com carros-bomba na embaixada de Israel em Londres e em um centro comunitário judaico em Buenos Aires são atribuídos ao Hezbollah. Dúzias de pessoas foram vítimas dos ataques.

1997: EUA designa o Hezbollah como grupo terrorista

O Departamento de Estado dos EUA designou o Hezbollah como uma organização terrorista estrangeira em outubro de 1997.

Mais de 60 outros países e organizações também designaram o Hezbollah — em parte ou em sua totalidade — como uma organização terrorista.

Uma mulher libanesa lamenta a morte do ex-primeiro-ministro Rafik al-Hariri durante protestos furiosos na cidade portuária de Sidon, em 15 de fevereiro de 2005. Foto: ALI HASHISHO / REUTERS

2005: Assassinato do premiê libanês Rafic Hariri

Rafic Hariri, o então primeiro-ministro que personificou a reconstrução do Líbano após a guerra civil, foi morto em um ataque com bombas em fevereiro de 2005. A explosão ocorreu no centro de Beirute, quebrando janelas em um raio de quase meio quilômetro.

Um homem-bomba em uma caminhonete Mitsubishi carregada com duas toneladas de explosivo militar havia se posicionado estrategicamente, esperando a comitiva de Hariri. A morte do premiê libanês dá início à Revolução do Cedro.

Um tribunal da ONU acusou posteriormente o Hezbollah pelo ataque.

2006: Guerra do Líbano contra Israel

Em 2006, o Hezbollah atacou a fronteira de Israel, matando 8 soldados e sequestrando dois soldados. Este ataque dá início a uma guerra entre Israel e o Líbano, que durou cerca de um mês.

O saldo foi de mais de mil duzentos libaneses e 170 israelenses mortos.

2009: Manifesto do Hezbollah é atualizado

O Hezbollah publica um manifesto atualizado. No texto, o grupo declara sua intenção de proporcionar uma maior abertura ao processo democrático no Líbano, atenua a retórica islâmica, mas mantém “mão dura” contra Israel e os EUA.

Em um vídeo publicado na internet, o chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah, leu o manifesto e disse que era hora de o grupo introduzir mudanças pragmáticas sem abandonar seu compromisso com uma ideologia islâmica.

“As pessoas evoluem. O mundo inteiro mudou nos últimos 24 anos. O Líbano mudou. A ordem mundial mudou”, disse ele.

2011-2013: Apoio à guerra na Síria

O Hezbollah, que tem sido um aliado de longa data do governo da família Al-Assad na Síria, apoiou o governo durante a guerra civil síria em sua luta contra a oposição síria, que o Hezbollah descreveu como uma “conspiração para destruir sua aliança com Al-Assad contra Israel”.

A organização enviou cerca de sete mil militantes para auxiliar as forças iranianas e russas no apoio ao governo sírio contra grupos rebeldes sunitas. Em 2019 o grupo retirou seus militantes. A guerra na Síria tornou o Hezbollah uma força militar mais forte.

Atualidade e possível impacto na guerra de Israel e Hamas

O Hezbollah tem e expandido e aprimorado seu arsenal militar nos últimos anos, mas não tem entrado em confronto direto com Israel ou com seus aliados ocidentais.

Soldados israelenses em um tanque próximo ao Kibbutz Beoeri, Israel, uma das comunidades que foi atacada por combatentes do Hamas, em 17 de outubro de 2023.  Foto: Amir Kalifa / NYT

O controle do grupo no Líbano tem diminuído nos últimos anos com o aumento da desconfiança dos cidadãos. Os libaneses criticam o grupo pelo seu suposto envolvimento nas explosões do porto de Beirute em 2020, que mataram mais de duzentas pessoas, por exemplo. Essa insatisfação tem se transformado em votos, e as eleições legislativas de 2022 são uma amostra disso, com o aumento de candidatos independentes que foram eleitos para o Parlamento, em detrimento dos candidatos apoiadores do Hezbollah.

Apesar disso, o grupo extremista continua controlando amplamente vários ministérios no país e influenciando na sua política externa. E com o aumento dos bombardeios e da incursão terrestre do exército israelense em Gaza, a possibilidade da entrada total do Hezbollah na guerra entre o Hamas e Israel tem se tornado cada vez mais próxima — com capacidade mudar totalmente os rumos do conflito.

O Hezbollah, diferentemente do Hamas, possui um exército grande e bastante treinado, que adquiriu uma ampla experiência de combate na sua intervenção na guerra na Síria. Seu armamento é muito mais moderno e robusto que o de outros grupos similares na região, e o financiamento iraniano garante para o grupo o abastecimento de mísseis. Em 2021, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, afirmou que o grupo extremista islâmico possuía cerca de 100.000 combatentes.

O maior risco da abertura de um front envolvendo o Hezbollah nesta guerra, no entanto, seria a expansão do conflito para países terceiros e a intervenção militar ou logística das duas nações com maior interesse na região: os EUA e o Irã. O exército americano, que tem seguido bem de perto o conflito, mantém seus maiores porta-aviões próximos à costa libanesa para pressionar os inimigos de Israel, enquanto o Teerã, o único país do Oriente Médio que possui armas nucleares, ameaça com desencadear uma retaliação sem precedentes juntando o “Eixo da Resistência” — termo utilizado pela república islâmica para se referir às forças militares que influencia; as facções extremistas palestinas, a Síria, o Hezbollah e outros grupos paramilitares da região.

“Algumas autoridades ocidentais questionaram se há a intenção de abrir uma nova frente contra a entidade sionista. Isso é claro. À luz da agressão contínua, dos crimes de guerra e do cerco a Gaza, a abertura de outras frentes é uma possibilidade real”, disse em Beirute o Ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, poucas semanas atrás.

“É claro que se os crimes de guerra contra a Palestina e Gaza continuarem, receberão uma resposta dos restantes eixos, e a entidade e os países que os apoiam são responsáveis por essas consequências”, afirmou.

De acordo com Natalia Calfat, doutora em ciência política pela USP e especialista em assuntos do Oriente Médio, a fronteira de Israel com o Líbano é instável e o escalamento dos confrontos, iniciados nas últimas semanas, podem piorar tanto a situação da região como a dos próprios libaneses.

“O Líbano está enfrentando atualmente uma crise socioeconômica bastante grave, que piora com o aumento dos deslocados internos gerados pelos embates com as forças israelenses. Um escalamento do conflito vai criar uma tensão maior em um país sem capacidade para absorver essa migração interna”, disse a especialista em entrevista ao Estadão.

“Há muita cautela por parte do Hezbollah para que não se repitam os eventos de 2006. O grupo não vai levar a nenhuma decisão leviana, por conta do seu histórico, mas qualquer passo em falso pode significar a entrada na guerra do Hezbollah”, afirmou Natalia Calfat.

“Para muitos, a tensão com Israel na fronteira levanta os esqueletos da guerra civil libanesa.”

Os ataques terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro e a retaliação israelense ampliaram os temores de que o atual conflito na Faixa de Gaza se espalhe para a região. A situação mais tensa no momento é na fronteira norte com o Líbano, onde o grupo radical xiita Hezbollah tem a maioria de suas bases militares e tem nos últimos dias lançado escaramuças contra posições israelenses.

Muito mais poderoso militarmente que o Hamas, o Hezbollah surgiu durante a guerra civil libanesa (1975-1990) e é um aliado próximo do Irã. A milícia enfrentou Israel numa guerra em 2006, na qual saiu derrotada. A partir de 2011, ampliou sua influência na política libanesa e hoje tem laços profundos no país.

Entenda num guia simples como o grupo atua e quais os riscos de o conflito se espalhar

Combatentes do Hezbollah realizando exercícios de treinamento durante uma visita da mídia a um de seus campos na vila de Aaramta, no sul do Líbano, em maio de 2023. Foto: Wael Hamzeh/EPA

O que é o Hezbollah?

O Hezbollah, que significa “Partido de Deus”, é um grupo radical xiita híbrido (político, social e militar) com sede no Líbano e financiado pelo Irã. O grupo emergiu em 1982 durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). À época, a presença de refugiados palestinos e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no país provocou um conflito sectário nas comunidades libanesas, que passaram a disputar o controle do país. O conflito teve o envolvimento de Israel, da Síria, dos EUA e outras nações ocidentais.

“O Hezbollah é uma das organizações mais influentes e poderosas do Líbano, com uma presença política e militar significativa”, disse ao Estadão Bernardo Wahl, especialista em segurança e defesa, que atua como professor de relações internacionais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Sua ideologia é baseada no xiismo e em uma visão anti-Israel e anti-ocidental. Além de suas atividades militares, o Hezbollah também é um partido político que possui representação no parlamento libanês e faz parte do governo do Líbano”.

A mulher do lado de retratos de líderes muçulmanos xiitas, incluindo o falecido aiatolá Khomeini do Irã, ao centro. Foto: JAMES HILL / NYT

Segundo o especialista, o Hezbollah é apoiado financeiramente e militarmente pelo Irã e tem sido designado como uma organização terrorista por vários países ocidentais, incluindo os Estados Unidos e Israel. “Enquanto alguns o veem como um grupo de resistência legítimo contra a ocupação estrangeira, outros o consideram uma ameaça à estabilidade regional devido às suas atividades militares e laços com o Irã”, afirmou Wahl.

De acordo com Wahl, o grupo exerce uma grande influência no Oriente Médio. Além de operar como uma espécie de intermediário de Irã e Síria na região, o Hezbollah é uma das organizações mais bem equipadas e treinadas no Oriente Médio, capacidade de combate que torna este grupo um ator importante em guerras.

Na década de 1980, o Irã criou o Hezbollah com o objetivo de desempenhar um papel no conflito árabe-israelense em apoio aos palestinos — além de se tornar um braço de apoio militar do regime do Aiatolá com grande impacto no mundo árabe e no antagonismo com os países ocidentais.

“O Irã considera o Hezbollah como uma parte crucial de sua estratégia para expandir sua influência na região do Oriente Médio. Durante a guerra civil na Síria (iniciada em 2011), o Hezbollah apoiou ativamente o governo sírio, inclusive enviando combatentes para lutar ao lado das forças sírias”, disse o especialista. No governo liderado por Bashar al-Assad durante a guerra civil na Síria, por exemplo, a intervenção do grupo contribuiu também para evitar a queda do regime sírio.

Em 1985, a organização publicou um manifesto em que afirmava que seus inimigos eram o Partido Social Democrata Libanês, Israel, França e EUA. Além disso, no texto o grupo prometia acabar com a influência ocidental no Líbano, pedia a destruição do Estado israelense e jurava fidelidade ao líder supremo do Irã. Associado a vários atentados terroristas contra civis ao redor do mundo, o grupo marcou o início da sua violenta corrida contra o Ocidente em 1983, quando realizou atentados suicidas com bombas contra quartéis militares americanos e franceses em Beirute, causando a morte de mais de 300 pessoas.

Sheik Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, durante uma entrevista em seu escritório no sul de Beirute, Líbano, em novembro de 2002. Foto: James Hill / NYT

Em 1992 a organização decidiu participar abertamente no processo político libanês, alcançando maior popularidade em 2009. Mas apesar do controle político e militar que exerce atualmente neste país através de negociações com a elite e o aproveitamento da fraqueza institucional libanesa, o Hezbollah não conta com um apoio consensual da população. Nas eleições de 2022, manteve somente 13 cadeiras no Parlamento libanês, de 128 membros.

Como o conflito pode se espalhar

O conflito entre Israel e Hamas pode impulsionar uma escalada militar do Hezbollah, abrindo a guerra para o resto da região. Para o especialista Bernardo Wahl, o envolvimento deste grupo na guerra pode ter consequências graves para o Líbano e para o Oriente Médio. “Se decidisse se envolver na guerra entre Israel e o Hamas, isso poderia ampliar o conflito regionalmente. Além do Líbano, o Hezbollah tem apoio de outros grupos xiitas na região, como as milícias xiitas no Iraque e as forças do regime sírio. Um conflito expandido poderia envolver essas partes, levando a uma escalada”, afirmou Wahl em entrevista ao Estadão.

Para o professor, a ameaça do Hezbollah é constante na fronteira com Israel, mas uma guerra em escala completa não seria conveniente para o grupo, porque pode agravar a situação econômica do Líbano e gerar maiores divisões internas no país. Além disso, “o envolvimento do Hezbollah na guerra...poderia ser visto como uma extensão da política iraniana. Isso poderia levar a uma resposta internacional mais ampla, envolvendo outros atores, como os Estados Unidos e seus aliados no Golfo Pérsico”

Independência do Líbano Foto: Lebanon Archive

Cronologia: O Surgimento do Hezbollah

O Hezbollah surgiu como resposta à invasão do Líbano por Israel em 1982. Poucos anos antes, em 1979, o Irã havia experienciado sua revolução islâmica, que causou um grande impacto entre os xiitas libaneses e seguidores do aiatolá Khomeini. As ideias de importar a revolução iraniana para o Líbano e a criação de um movimento armado radical anti-Israel eram atrativas e foram discutida durante anos entre líderes iranianos e libaneses renomados, como o xeque Sobhi Tufayli, que mais tarde se tornou o primeiro secretário-geral do Hezbollah.

Com a invasão de Israel, em 1982, o governo teocrático do Irã viu uma oportunidade para concretizar seus planos e chegou a oferecer ajuda militar ao Líbano. Guardas Revolucionários iranianos foram enviados depois do breve conflito para o norte do Vale do Bekaa, e a partir desse momento xiitas passaram a ser recrutados para formar a base do que logo tornou-se o Hezbollah.

Três anos depois, o Hezbollah declarou formalmente sua existência em sua “Carta Aberta”, assim como sua intenção de criar um estado islâmico. O manifesto descrevia suas metas crenças. Entre elas: “a necessidade da destruição de Israel”.

1983: O Primeiro grande ataque terrorista

Em abril de 1983, os extremistas do Hezbollah realizados atentados com bombas contra a embaixada dos EUA em Beirute, matando 63 pessoas. Poucos meses depois, em outubro, pelo menos 305 pessoas foram mortas em ataques suicidas em quartéis que abrigam tropas americanas e francesas.

Os ataques foram atribuídos ao Hezbollah, que foi também condenado por um tribunal dos EUA pelo ato terrorista.

1984: Carro-bomba na embaixada dos EUA em Beirute

Pouco mais de um ano depois do primeiro atentado às embaixadas estrangeiras no Líbano, depois que os Estados Unidos transferiram as operações da embaixada de Beirute Ocidental para Aukar, em Beirute Oriental, um homem-bomba acelerou em direção à porta da embaixada uma van carregada com 2.000 kg de explosivos. O motorista foi baleado antes de atingir seu alvo, mas o veículo detonou, destruindo a fachada a frente da embaixada.

1988: Acordo de Taif

Em outubro de 1988, membros cristãos e muçulmanos do Parlamento do Líbano assinaram um pacto em Taif, na Arábia Saudita, comprometendo-se a abolir o sectarismo, resultando no “Acordo de Taif”. O acordo tinha a intenção de encontrar uma solução pacífica para a guerra civil de 15 anos.

Os três principais princípios do acordo foram o estabelecimento de um novo equilíbrio entre a unidade do Líbano e seu sistema político e a diversidade social nacional; a transferência do poder executivo da presidência da república para o Conselho de Ministros; e o princípio da paridade entre muçulmanos e cristãos no parlamento, no gabinete e nos escalões mais altos do serviço público.

O pacto também ordenou o desarmamento de todas as milícias, com exceção do Hezbollah.

1992: Atentado em Buenos Aires e entrada na esfera política

O ataque terrorista do Hezbollah à embaixada israelense em Buenos Aires chocou a América Latina em março de 1992. O atentado com bombas deixou um saldo de 22 mortos e 242 feridos no coração da capital da Argentina. A explosão, causada por um veículo carregado de dinamite, demoliu o prédio da embaixada, transformando o que eram escritórios e espaços de trabalho em poeira e pedaços de concreto.

No final do ano, Hassan Nasrallah torna-se secretário-geral do Hezbollah, após Israel assassinar seu antecessor. Nesse ano o Hezbollah conquistou oito cadeiras no Parlamento depois de participar das eleições nacionais pela primeira vez.

1994: Ataques terroristas em Londres e Buenos Aires

Nesse ano, atentados com carros-bomba na embaixada de Israel em Londres e em um centro comunitário judaico em Buenos Aires são atribuídos ao Hezbollah. Dúzias de pessoas foram vítimas dos ataques.

1997: EUA designa o Hezbollah como grupo terrorista

O Departamento de Estado dos EUA designou o Hezbollah como uma organização terrorista estrangeira em outubro de 1997.

Mais de 60 outros países e organizações também designaram o Hezbollah — em parte ou em sua totalidade — como uma organização terrorista.

Uma mulher libanesa lamenta a morte do ex-primeiro-ministro Rafik al-Hariri durante protestos furiosos na cidade portuária de Sidon, em 15 de fevereiro de 2005. Foto: ALI HASHISHO / REUTERS

2005: Assassinato do premiê libanês Rafic Hariri

Rafic Hariri, o então primeiro-ministro que personificou a reconstrução do Líbano após a guerra civil, foi morto em um ataque com bombas em fevereiro de 2005. A explosão ocorreu no centro de Beirute, quebrando janelas em um raio de quase meio quilômetro.

Um homem-bomba em uma caminhonete Mitsubishi carregada com duas toneladas de explosivo militar havia se posicionado estrategicamente, esperando a comitiva de Hariri. A morte do premiê libanês dá início à Revolução do Cedro.

Um tribunal da ONU acusou posteriormente o Hezbollah pelo ataque.

2006: Guerra do Líbano contra Israel

Em 2006, o Hezbollah atacou a fronteira de Israel, matando 8 soldados e sequestrando dois soldados. Este ataque dá início a uma guerra entre Israel e o Líbano, que durou cerca de um mês.

O saldo foi de mais de mil duzentos libaneses e 170 israelenses mortos.

2009: Manifesto do Hezbollah é atualizado

O Hezbollah publica um manifesto atualizado. No texto, o grupo declara sua intenção de proporcionar uma maior abertura ao processo democrático no Líbano, atenua a retórica islâmica, mas mantém “mão dura” contra Israel e os EUA.

Em um vídeo publicado na internet, o chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah, leu o manifesto e disse que era hora de o grupo introduzir mudanças pragmáticas sem abandonar seu compromisso com uma ideologia islâmica.

“As pessoas evoluem. O mundo inteiro mudou nos últimos 24 anos. O Líbano mudou. A ordem mundial mudou”, disse ele.

2011-2013: Apoio à guerra na Síria

O Hezbollah, que tem sido um aliado de longa data do governo da família Al-Assad na Síria, apoiou o governo durante a guerra civil síria em sua luta contra a oposição síria, que o Hezbollah descreveu como uma “conspiração para destruir sua aliança com Al-Assad contra Israel”.

A organização enviou cerca de sete mil militantes para auxiliar as forças iranianas e russas no apoio ao governo sírio contra grupos rebeldes sunitas. Em 2019 o grupo retirou seus militantes. A guerra na Síria tornou o Hezbollah uma força militar mais forte.

Atualidade e possível impacto na guerra de Israel e Hamas

O Hezbollah tem e expandido e aprimorado seu arsenal militar nos últimos anos, mas não tem entrado em confronto direto com Israel ou com seus aliados ocidentais.

Soldados israelenses em um tanque próximo ao Kibbutz Beoeri, Israel, uma das comunidades que foi atacada por combatentes do Hamas, em 17 de outubro de 2023.  Foto: Amir Kalifa / NYT

O controle do grupo no Líbano tem diminuído nos últimos anos com o aumento da desconfiança dos cidadãos. Os libaneses criticam o grupo pelo seu suposto envolvimento nas explosões do porto de Beirute em 2020, que mataram mais de duzentas pessoas, por exemplo. Essa insatisfação tem se transformado em votos, e as eleições legislativas de 2022 são uma amostra disso, com o aumento de candidatos independentes que foram eleitos para o Parlamento, em detrimento dos candidatos apoiadores do Hezbollah.

Apesar disso, o grupo extremista continua controlando amplamente vários ministérios no país e influenciando na sua política externa. E com o aumento dos bombardeios e da incursão terrestre do exército israelense em Gaza, a possibilidade da entrada total do Hezbollah na guerra entre o Hamas e Israel tem se tornado cada vez mais próxima — com capacidade mudar totalmente os rumos do conflito.

O Hezbollah, diferentemente do Hamas, possui um exército grande e bastante treinado, que adquiriu uma ampla experiência de combate na sua intervenção na guerra na Síria. Seu armamento é muito mais moderno e robusto que o de outros grupos similares na região, e o financiamento iraniano garante para o grupo o abastecimento de mísseis. Em 2021, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, afirmou que o grupo extremista islâmico possuía cerca de 100.000 combatentes.

O maior risco da abertura de um front envolvendo o Hezbollah nesta guerra, no entanto, seria a expansão do conflito para países terceiros e a intervenção militar ou logística das duas nações com maior interesse na região: os EUA e o Irã. O exército americano, que tem seguido bem de perto o conflito, mantém seus maiores porta-aviões próximos à costa libanesa para pressionar os inimigos de Israel, enquanto o Teerã, o único país do Oriente Médio que possui armas nucleares, ameaça com desencadear uma retaliação sem precedentes juntando o “Eixo da Resistência” — termo utilizado pela república islâmica para se referir às forças militares que influencia; as facções extremistas palestinas, a Síria, o Hezbollah e outros grupos paramilitares da região.

“Algumas autoridades ocidentais questionaram se há a intenção de abrir uma nova frente contra a entidade sionista. Isso é claro. À luz da agressão contínua, dos crimes de guerra e do cerco a Gaza, a abertura de outras frentes é uma possibilidade real”, disse em Beirute o Ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, poucas semanas atrás.

“É claro que se os crimes de guerra contra a Palestina e Gaza continuarem, receberão uma resposta dos restantes eixos, e a entidade e os países que os apoiam são responsáveis por essas consequências”, afirmou.

De acordo com Natalia Calfat, doutora em ciência política pela USP e especialista em assuntos do Oriente Médio, a fronteira de Israel com o Líbano é instável e o escalamento dos confrontos, iniciados nas últimas semanas, podem piorar tanto a situação da região como a dos próprios libaneses.

“O Líbano está enfrentando atualmente uma crise socioeconômica bastante grave, que piora com o aumento dos deslocados internos gerados pelos embates com as forças israelenses. Um escalamento do conflito vai criar uma tensão maior em um país sem capacidade para absorver essa migração interna”, disse a especialista em entrevista ao Estadão.

“Há muita cautela por parte do Hezbollah para que não se repitam os eventos de 2006. O grupo não vai levar a nenhuma decisão leviana, por conta do seu histórico, mas qualquer passo em falso pode significar a entrada na guerra do Hezbollah”, afirmou Natalia Calfat.

“Para muitos, a tensão com Israel na fronteira levanta os esqueletos da guerra civil libanesa.”

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