Entenda por que as teorias da conspiração sobre coronavírus proliferam tanto


Rumores de curas secretas – beber alvejante diluído, desligar os aparelhos eletrônicos, comer banana – dão uma esperança de proteção contra uma ameaça da qual nem mesmo os líderes mundiais estão escapando

Por Max Fisher
Atualização:

NOVA YORK - O coronavírus deu origem a uma enxurrada de teorias da conspiração, desinformação e propaganda, minando as autoridades de saúde e corroendo a confiança do público de maneiras que podem prolongar a pandemia e até mesmo se estender para além dela.

Alegações de que o novo coronavírus seria uma arma biológica estrangeira, uma invenção partidária ou parte de um projeto de reengenharia social substituíram um vírus sem razão nem propósito por vilões mais familiares e compreensíveis. Cada alegação parece dar a essa tragédia sem sentido algum grau de significado, por mais sombrio que seja.

Garoto observa um grafite pintado pelo artista Kai 'Uzey' Wohlgemuth em parede de Hamm, no oeste da Alemanha, representando uma enfermeira como super-heroína na briga contra o coronavírus. Foto: Ina Fassbender / AFP 
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Rumores de curas secretas – beber alvejante diluído, desligar os aparelhos eletrônicos, comer banana – dão uma esperança de proteção contra uma ameaça da qual nem mesmo os líderes mundiais estão escapando.

A crença de que alguém teve acesso ao conhecimento proibido proporciona uma sensação de certeza e controle em meio a uma crise que virou o mundo de cabeça para baixo. E compartilhar esse “conhecimento” pode dar às pessoas algo difícil de encontrar depois de semanas de isolamento e morte: a sensação de que se está fazendo alguma coisa.

“Aí estão todos os ingredientes que empurram as pessoas para as teorias da conspiração”, disse Karen Douglas, psicóloga social que estuda a crença em conspirações na Universidade de Kent, na Grã-Bretanha.

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Rumores e afirmações flagrantemente estapafúrdias são disseminados por pessoas comuns cujas faculdades críticas simplesmente se viram esmagadas sob sentimentos de confusão e desamparo, dizem os psicólogos.

Apesar da regra do governo do distanciamento social para conter a disseminação do coronavírus, trabalhadores da província de Hai Duong, no Vietnã, se aglomeram enquanto esperam balsa na volta do trabalho. Foto: Kham / Reuters 

Mas muitas alegações falsas também vêm sendo promovidas por governos que tentam esconder seus fracassos, líderes partidários em busca de benefícios políticos, golpistas em geral e, nos Estados Unidos, por um presidente que insiste em curas não comprovadas e dispara falsidades que procuram eximi-lo de qualquer culpa.

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Todas as teorias da conspiração carregam uma mensagem em comum: o único jeito de se proteger é saber as verdades secretas que “eles” não querem que você ouça.

O sentimento de segurança e controle proporcionado por esses rumores pode ser ilusório, mas os danos à confiança do público são bem reais.

As teorias conspiratórias estão levando as pessoas a consumir remédios caseiros que se revelaram letais e a desrespeitar as orientações de distanciamento social. E estão sabotando as ações coletivas, como ficar em casa ou usar máscaras, atitudes necessárias para conter um vírus que já matou mais de 79 mil pessoas.

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“Já enfrentamos pandemias antes desta”, disse Graham Brookie, que dirige o Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Atlantic Council. “Mas nunca enfrentamos uma pandemia num momento em que as pessoas estivessem tão conectadas e tivessem tanto acesso a informações quanto agora."

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Esse crescente ecossistema de desinformação e desconfiança pública obrigou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a ligar o alerta para uma “infodemia”. “Estamos assistindo a uma verdadeira inundação”, disse Brookie. “A ansiedade é viral, e todos estamos nos sentindo mais ansiosos que nunca."

O fascínio do 'conhecimento secreto'

“As conspirações atraem as pessoas porque prometem satisfazer certos motivos psicológicos que são importantes para elas”, disse Douglas. Os principais deles: o domínio sobre os fatos, a autonomia sobre o bem-estar e a sensação de controle.

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Quando a verdade não atende a essas necessidades, nós humanos temos uma capacidade incrível de inventar histórias que atenderão, mesmo que uma parte de nós saiba que as histórias são falsas. Um estudo recente revelou que as pessoas são significativamente mais propensas a compartilhar informações falsas sobre o coronavírus do que imaginam.

“A magnitude da desinformação que se espalhou com a pandemia da covid-19 está sobrecarregando nossa equipe”, escreveu no Twitter o Snopes, um site de verificação de fatos. “Estamos vendo que milhares de pessoas, na ânsia de encontrar algum conforto, acabam piorando as coisas ao compartilhar informações falsas (e, às vezes, perigosas)."

Vastamente compartilhadas, postagens de Instagram alegaram, falsamente, que o coronavírus fora planejado por Bill Gates em benefício de empresas farmacêuticas. No Alabama, postagens de Facebook afirmaram, falsamente, que poderes obscuros haviam ordenado que doentes fossem secretamente enviados de helicóptero para o Estado. Na América Latina, proliferaram rumores igualmente infundados de que o vírus fora projetado para espalhar o HIV. No Irã, vozes pró-governo retrataram a doença como uma trama ocidental.

Se as alegações parecerem sigilosas, melhor ainda

A crença de que temos acesso a informações secretas pode nos dar a sensação de que temos uma vantagem, de que, de alguma forma, estamos mais seguros. “Quem acredita em teorias da conspiração acha que tem um poder, conferido pelo conhecimento, que as outras pessoas não têm”, disse Douglas.

A mídia italiana repercutiu um vídeo postado por um italiano que morava em Tóquio, no qual ele dizia que o coronavírus era tratável, mas que as autoridades italianas estavam “escondendo a verdade”.

Outros vídeos, muito populares no YouTube, afirmam que toda a pandemia é uma ficção encenada para controlar a população.

As teorias da conspiração também podem fazer as pessoas se sentirem menos sozinhas. Poucas coisas estreitam mais os laços entre “nós” do que combater “eles”, especialmente quando “eles” são estrangeiros e minorias, frequentes bodes expiatórios de boatos sobre o coronavírus e muitas outras coisas no passado.

Mas qualquer conforto que essas teorias proporcionem terá vida curta. Com o tempo, segundo pesquisas, o intercâmbio de conspirações não apenas fracassa em satisfazer nossas necessidades psicológicas, disse Douglas, como também tende a agravar sentimentos de medo e desamparo.

E isso pode nos levar a procurar explicações ainda mais extremas, como viciados em busca de doses cada vez mais fortes.

Governos vêm uma oportunidade na confusão

Os conspiradores e questionadores agora têm apoio dos governos. Antecipando a repercussão política da crise, líderes governamentais agiram rapidamente para se eximirem da culpa, espalhando suas próprias mentiras.

Uma importante autoridade chinesa disse que o vírus foi introduzido na China por membros do Exército dos Estados Unidos, uma acusação que teve permissão para se disseminar nas mídias sociais rigidamente controladas da China.

Na Venezuela, o presidente Nicolás Maduro sugeriu que o vírus era uma arma biológica americana cujo alvo seria a China. No Irã, as autoridades o chamaram de conspiração para acabar com o processo eleitoral no país. E agências de notícias que apoiam o governo russo, algumas com filiais na Europa ocidental, ventilaram alegações de que os Estados Unidos projetaram o vírus para minar a economia chinesa.

Nas antigas repúblicas soviéticas do Turcomenistão e Tadjiquistão, líderes recomendaram tratamentos falsos e defenderam a ideia de que os cidadãos deveriam continuar trabalhando.

Vizinhos do bairro de Trinidad que estão em isolamento social, por causa do surto de coronavírus, aplaudem a segunda-feira Santa em Málaga, na Espanha. Foto: Jorge Zapata / EFE 

Mas as autoridades tampouco deixaram de espalhar boatos em nações mais democráticas, particularmente naquelas em que a desconfiança em relação à autoridade abriu espaço para a ascensão de fortes movimentos populistas.

Matteo Salvini, líder do partido anti-imigração Liga Norte, na Itália, escreveu no Twitter que a China havia criado um “supervírus de pulmão” a partir de “morcegos e ratos”.

E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, repetidas vezes propagandeou tratamentos não comprovados e insinuou que o coronavírus seria menos perigoso do que dizem os especialistas. Facebook, Twitter e YouTube tomaram a extraordinária decisão de remover suas postagens.

O presidente Donald Trump também insistiu repetidamente no uso de medicamentos não comprovados, apesar das advertências dos cientistas e de pelo menos uma overdose fatal, a qual vitimou um homem cuja esposa disse que ele havia tomado o remédio por sugestão de Trump.

Trump acusou seus supostos inimigos de tentar “inflamar” a “situação” do coronavírus para prejudicá-lo. Quando começaram a faltar equipamentos de proteção individual nos hospitais de Nova York, ele insinuou que os profissionais de saúde estavam roubando as máscaras. Seus aliados foram ainda mais longe.

O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, e outros sugeriram que o vírus foi produzido por um laboratório de armas chinês. Alguns aliados da mídia alegaram que os inimigos de Trump exageraram o número de mortos.

Uma crise paralela

“Essa supressão de informações é perigosa – muito, muito perigosa”, disse Brookie, referindo-se aos esforços chineses e americanos para minimizar a ameaça do surto.

A supressão de informações alimentou não apenas conspirações específicas, mas também uma sensação mais generalizada de que as fontes e dados oficiais não são confiáveis, bem como a ideia cada vez mais disseminada de que as pessoas devem buscar a verdade por conta própria.

A cacofonia dos epidemiologistas de sofá, que costumam chamar a atenção com afirmações sensacionalistas, muitas vezes encobre a fala de especialistas legítimos, cujas respostas raramente são muito sintéticas ou tranquilizadoras.

Eles prometem curas fáceis, como evitar os aparelhos eletrônicos ou até mesmo comer bananas, e dizem que o transtorno do isolamento social é desnecessário. Alguns chegam a vender tratamentos enganosos que eles próprios inventaram.

“As teorias da conspiração do campo da medicina têm o poder de aumentar a desconfiança nas autoridades médicas, o que pode afetar a disposição das pessoas a se protegerem”, escreveram Daniel Jolley e Pia Lamberty, pesquisadores de psicologia, em um artigo recente.

Demonstrou-se que tais alegações deixam as pessoas menos propensas a tomar vacinas ou antibióticos e mais propensas a procurar aconselhamento médico junto a amigos e familiares, e não profissionais de saúde.

A crença em uma conspiração também tende a aumentar a crença nas outras. As consequências, alertam os especialistas, podem não apenas piorar a pandemia, mas também se estender para além dela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

NOVA YORK - O coronavírus deu origem a uma enxurrada de teorias da conspiração, desinformação e propaganda, minando as autoridades de saúde e corroendo a confiança do público de maneiras que podem prolongar a pandemia e até mesmo se estender para além dela.

Alegações de que o novo coronavírus seria uma arma biológica estrangeira, uma invenção partidária ou parte de um projeto de reengenharia social substituíram um vírus sem razão nem propósito por vilões mais familiares e compreensíveis. Cada alegação parece dar a essa tragédia sem sentido algum grau de significado, por mais sombrio que seja.

Garoto observa um grafite pintado pelo artista Kai 'Uzey' Wohlgemuth em parede de Hamm, no oeste da Alemanha, representando uma enfermeira como super-heroína na briga contra o coronavírus. Foto: Ina Fassbender / AFP 

Rumores de curas secretas – beber alvejante diluído, desligar os aparelhos eletrônicos, comer banana – dão uma esperança de proteção contra uma ameaça da qual nem mesmo os líderes mundiais estão escapando.

A crença de que alguém teve acesso ao conhecimento proibido proporciona uma sensação de certeza e controle em meio a uma crise que virou o mundo de cabeça para baixo. E compartilhar esse “conhecimento” pode dar às pessoas algo difícil de encontrar depois de semanas de isolamento e morte: a sensação de que se está fazendo alguma coisa.

“Aí estão todos os ingredientes que empurram as pessoas para as teorias da conspiração”, disse Karen Douglas, psicóloga social que estuda a crença em conspirações na Universidade de Kent, na Grã-Bretanha.

Rumores e afirmações flagrantemente estapafúrdias são disseminados por pessoas comuns cujas faculdades críticas simplesmente se viram esmagadas sob sentimentos de confusão e desamparo, dizem os psicólogos.

Apesar da regra do governo do distanciamento social para conter a disseminação do coronavírus, trabalhadores da província de Hai Duong, no Vietnã, se aglomeram enquanto esperam balsa na volta do trabalho. Foto: Kham / Reuters 

Mas muitas alegações falsas também vêm sendo promovidas por governos que tentam esconder seus fracassos, líderes partidários em busca de benefícios políticos, golpistas em geral e, nos Estados Unidos, por um presidente que insiste em curas não comprovadas e dispara falsidades que procuram eximi-lo de qualquer culpa.

Todas as teorias da conspiração carregam uma mensagem em comum: o único jeito de se proteger é saber as verdades secretas que “eles” não querem que você ouça.

O sentimento de segurança e controle proporcionado por esses rumores pode ser ilusório, mas os danos à confiança do público são bem reais.

As teorias conspiratórias estão levando as pessoas a consumir remédios caseiros que se revelaram letais e a desrespeitar as orientações de distanciamento social. E estão sabotando as ações coletivas, como ficar em casa ou usar máscaras, atitudes necessárias para conter um vírus que já matou mais de 79 mil pessoas.

“Já enfrentamos pandemias antes desta”, disse Graham Brookie, que dirige o Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Atlantic Council. “Mas nunca enfrentamos uma pandemia num momento em que as pessoas estivessem tão conectadas e tivessem tanto acesso a informações quanto agora."

Esse crescente ecossistema de desinformação e desconfiança pública obrigou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a ligar o alerta para uma “infodemia”. “Estamos assistindo a uma verdadeira inundação”, disse Brookie. “A ansiedade é viral, e todos estamos nos sentindo mais ansiosos que nunca."

O fascínio do 'conhecimento secreto'

“As conspirações atraem as pessoas porque prometem satisfazer certos motivos psicológicos que são importantes para elas”, disse Douglas. Os principais deles: o domínio sobre os fatos, a autonomia sobre o bem-estar e a sensação de controle.

Quando a verdade não atende a essas necessidades, nós humanos temos uma capacidade incrível de inventar histórias que atenderão, mesmo que uma parte de nós saiba que as histórias são falsas. Um estudo recente revelou que as pessoas são significativamente mais propensas a compartilhar informações falsas sobre o coronavírus do que imaginam.

“A magnitude da desinformação que se espalhou com a pandemia da covid-19 está sobrecarregando nossa equipe”, escreveu no Twitter o Snopes, um site de verificação de fatos. “Estamos vendo que milhares de pessoas, na ânsia de encontrar algum conforto, acabam piorando as coisas ao compartilhar informações falsas (e, às vezes, perigosas)."

Vastamente compartilhadas, postagens de Instagram alegaram, falsamente, que o coronavírus fora planejado por Bill Gates em benefício de empresas farmacêuticas. No Alabama, postagens de Facebook afirmaram, falsamente, que poderes obscuros haviam ordenado que doentes fossem secretamente enviados de helicóptero para o Estado. Na América Latina, proliferaram rumores igualmente infundados de que o vírus fora projetado para espalhar o HIV. No Irã, vozes pró-governo retrataram a doença como uma trama ocidental.

Se as alegações parecerem sigilosas, melhor ainda

A crença de que temos acesso a informações secretas pode nos dar a sensação de que temos uma vantagem, de que, de alguma forma, estamos mais seguros. “Quem acredita em teorias da conspiração acha que tem um poder, conferido pelo conhecimento, que as outras pessoas não têm”, disse Douglas.

A mídia italiana repercutiu um vídeo postado por um italiano que morava em Tóquio, no qual ele dizia que o coronavírus era tratável, mas que as autoridades italianas estavam “escondendo a verdade”.

Outros vídeos, muito populares no YouTube, afirmam que toda a pandemia é uma ficção encenada para controlar a população.

As teorias da conspiração também podem fazer as pessoas se sentirem menos sozinhas. Poucas coisas estreitam mais os laços entre “nós” do que combater “eles”, especialmente quando “eles” são estrangeiros e minorias, frequentes bodes expiatórios de boatos sobre o coronavírus e muitas outras coisas no passado.

Mas qualquer conforto que essas teorias proporcionem terá vida curta. Com o tempo, segundo pesquisas, o intercâmbio de conspirações não apenas fracassa em satisfazer nossas necessidades psicológicas, disse Douglas, como também tende a agravar sentimentos de medo e desamparo.

E isso pode nos levar a procurar explicações ainda mais extremas, como viciados em busca de doses cada vez mais fortes.

Governos vêm uma oportunidade na confusão

Os conspiradores e questionadores agora têm apoio dos governos. Antecipando a repercussão política da crise, líderes governamentais agiram rapidamente para se eximirem da culpa, espalhando suas próprias mentiras.

Uma importante autoridade chinesa disse que o vírus foi introduzido na China por membros do Exército dos Estados Unidos, uma acusação que teve permissão para se disseminar nas mídias sociais rigidamente controladas da China.

Na Venezuela, o presidente Nicolás Maduro sugeriu que o vírus era uma arma biológica americana cujo alvo seria a China. No Irã, as autoridades o chamaram de conspiração para acabar com o processo eleitoral no país. E agências de notícias que apoiam o governo russo, algumas com filiais na Europa ocidental, ventilaram alegações de que os Estados Unidos projetaram o vírus para minar a economia chinesa.

Nas antigas repúblicas soviéticas do Turcomenistão e Tadjiquistão, líderes recomendaram tratamentos falsos e defenderam a ideia de que os cidadãos deveriam continuar trabalhando.

Vizinhos do bairro de Trinidad que estão em isolamento social, por causa do surto de coronavírus, aplaudem a segunda-feira Santa em Málaga, na Espanha. Foto: Jorge Zapata / EFE 

Mas as autoridades tampouco deixaram de espalhar boatos em nações mais democráticas, particularmente naquelas em que a desconfiança em relação à autoridade abriu espaço para a ascensão de fortes movimentos populistas.

Matteo Salvini, líder do partido anti-imigração Liga Norte, na Itália, escreveu no Twitter que a China havia criado um “supervírus de pulmão” a partir de “morcegos e ratos”.

E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, repetidas vezes propagandeou tratamentos não comprovados e insinuou que o coronavírus seria menos perigoso do que dizem os especialistas. Facebook, Twitter e YouTube tomaram a extraordinária decisão de remover suas postagens.

O presidente Donald Trump também insistiu repetidamente no uso de medicamentos não comprovados, apesar das advertências dos cientistas e de pelo menos uma overdose fatal, a qual vitimou um homem cuja esposa disse que ele havia tomado o remédio por sugestão de Trump.

Trump acusou seus supostos inimigos de tentar “inflamar” a “situação” do coronavírus para prejudicá-lo. Quando começaram a faltar equipamentos de proteção individual nos hospitais de Nova York, ele insinuou que os profissionais de saúde estavam roubando as máscaras. Seus aliados foram ainda mais longe.

O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, e outros sugeriram que o vírus foi produzido por um laboratório de armas chinês. Alguns aliados da mídia alegaram que os inimigos de Trump exageraram o número de mortos.

Uma crise paralela

“Essa supressão de informações é perigosa – muito, muito perigosa”, disse Brookie, referindo-se aos esforços chineses e americanos para minimizar a ameaça do surto.

A supressão de informações alimentou não apenas conspirações específicas, mas também uma sensação mais generalizada de que as fontes e dados oficiais não são confiáveis, bem como a ideia cada vez mais disseminada de que as pessoas devem buscar a verdade por conta própria.

A cacofonia dos epidemiologistas de sofá, que costumam chamar a atenção com afirmações sensacionalistas, muitas vezes encobre a fala de especialistas legítimos, cujas respostas raramente são muito sintéticas ou tranquilizadoras.

Eles prometem curas fáceis, como evitar os aparelhos eletrônicos ou até mesmo comer bananas, e dizem que o transtorno do isolamento social é desnecessário. Alguns chegam a vender tratamentos enganosos que eles próprios inventaram.

“As teorias da conspiração do campo da medicina têm o poder de aumentar a desconfiança nas autoridades médicas, o que pode afetar a disposição das pessoas a se protegerem”, escreveram Daniel Jolley e Pia Lamberty, pesquisadores de psicologia, em um artigo recente.

Demonstrou-se que tais alegações deixam as pessoas menos propensas a tomar vacinas ou antibióticos e mais propensas a procurar aconselhamento médico junto a amigos e familiares, e não profissionais de saúde.

A crença em uma conspiração também tende a aumentar a crença nas outras. As consequências, alertam os especialistas, podem não apenas piorar a pandemia, mas também se estender para além dela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

NOVA YORK - O coronavírus deu origem a uma enxurrada de teorias da conspiração, desinformação e propaganda, minando as autoridades de saúde e corroendo a confiança do público de maneiras que podem prolongar a pandemia e até mesmo se estender para além dela.

Alegações de que o novo coronavírus seria uma arma biológica estrangeira, uma invenção partidária ou parte de um projeto de reengenharia social substituíram um vírus sem razão nem propósito por vilões mais familiares e compreensíveis. Cada alegação parece dar a essa tragédia sem sentido algum grau de significado, por mais sombrio que seja.

Garoto observa um grafite pintado pelo artista Kai 'Uzey' Wohlgemuth em parede de Hamm, no oeste da Alemanha, representando uma enfermeira como super-heroína na briga contra o coronavírus. Foto: Ina Fassbender / AFP 

Rumores de curas secretas – beber alvejante diluído, desligar os aparelhos eletrônicos, comer banana – dão uma esperança de proteção contra uma ameaça da qual nem mesmo os líderes mundiais estão escapando.

A crença de que alguém teve acesso ao conhecimento proibido proporciona uma sensação de certeza e controle em meio a uma crise que virou o mundo de cabeça para baixo. E compartilhar esse “conhecimento” pode dar às pessoas algo difícil de encontrar depois de semanas de isolamento e morte: a sensação de que se está fazendo alguma coisa.

“Aí estão todos os ingredientes que empurram as pessoas para as teorias da conspiração”, disse Karen Douglas, psicóloga social que estuda a crença em conspirações na Universidade de Kent, na Grã-Bretanha.

Rumores e afirmações flagrantemente estapafúrdias são disseminados por pessoas comuns cujas faculdades críticas simplesmente se viram esmagadas sob sentimentos de confusão e desamparo, dizem os psicólogos.

Apesar da regra do governo do distanciamento social para conter a disseminação do coronavírus, trabalhadores da província de Hai Duong, no Vietnã, se aglomeram enquanto esperam balsa na volta do trabalho. Foto: Kham / Reuters 

Mas muitas alegações falsas também vêm sendo promovidas por governos que tentam esconder seus fracassos, líderes partidários em busca de benefícios políticos, golpistas em geral e, nos Estados Unidos, por um presidente que insiste em curas não comprovadas e dispara falsidades que procuram eximi-lo de qualquer culpa.

Todas as teorias da conspiração carregam uma mensagem em comum: o único jeito de se proteger é saber as verdades secretas que “eles” não querem que você ouça.

O sentimento de segurança e controle proporcionado por esses rumores pode ser ilusório, mas os danos à confiança do público são bem reais.

As teorias conspiratórias estão levando as pessoas a consumir remédios caseiros que se revelaram letais e a desrespeitar as orientações de distanciamento social. E estão sabotando as ações coletivas, como ficar em casa ou usar máscaras, atitudes necessárias para conter um vírus que já matou mais de 79 mil pessoas.

“Já enfrentamos pandemias antes desta”, disse Graham Brookie, que dirige o Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Atlantic Council. “Mas nunca enfrentamos uma pandemia num momento em que as pessoas estivessem tão conectadas e tivessem tanto acesso a informações quanto agora."

Esse crescente ecossistema de desinformação e desconfiança pública obrigou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a ligar o alerta para uma “infodemia”. “Estamos assistindo a uma verdadeira inundação”, disse Brookie. “A ansiedade é viral, e todos estamos nos sentindo mais ansiosos que nunca."

O fascínio do 'conhecimento secreto'

“As conspirações atraem as pessoas porque prometem satisfazer certos motivos psicológicos que são importantes para elas”, disse Douglas. Os principais deles: o domínio sobre os fatos, a autonomia sobre o bem-estar e a sensação de controle.

Quando a verdade não atende a essas necessidades, nós humanos temos uma capacidade incrível de inventar histórias que atenderão, mesmo que uma parte de nós saiba que as histórias são falsas. Um estudo recente revelou que as pessoas são significativamente mais propensas a compartilhar informações falsas sobre o coronavírus do que imaginam.

“A magnitude da desinformação que se espalhou com a pandemia da covid-19 está sobrecarregando nossa equipe”, escreveu no Twitter o Snopes, um site de verificação de fatos. “Estamos vendo que milhares de pessoas, na ânsia de encontrar algum conforto, acabam piorando as coisas ao compartilhar informações falsas (e, às vezes, perigosas)."

Vastamente compartilhadas, postagens de Instagram alegaram, falsamente, que o coronavírus fora planejado por Bill Gates em benefício de empresas farmacêuticas. No Alabama, postagens de Facebook afirmaram, falsamente, que poderes obscuros haviam ordenado que doentes fossem secretamente enviados de helicóptero para o Estado. Na América Latina, proliferaram rumores igualmente infundados de que o vírus fora projetado para espalhar o HIV. No Irã, vozes pró-governo retrataram a doença como uma trama ocidental.

Se as alegações parecerem sigilosas, melhor ainda

A crença de que temos acesso a informações secretas pode nos dar a sensação de que temos uma vantagem, de que, de alguma forma, estamos mais seguros. “Quem acredita em teorias da conspiração acha que tem um poder, conferido pelo conhecimento, que as outras pessoas não têm”, disse Douglas.

A mídia italiana repercutiu um vídeo postado por um italiano que morava em Tóquio, no qual ele dizia que o coronavírus era tratável, mas que as autoridades italianas estavam “escondendo a verdade”.

Outros vídeos, muito populares no YouTube, afirmam que toda a pandemia é uma ficção encenada para controlar a população.

As teorias da conspiração também podem fazer as pessoas se sentirem menos sozinhas. Poucas coisas estreitam mais os laços entre “nós” do que combater “eles”, especialmente quando “eles” são estrangeiros e minorias, frequentes bodes expiatórios de boatos sobre o coronavírus e muitas outras coisas no passado.

Mas qualquer conforto que essas teorias proporcionem terá vida curta. Com o tempo, segundo pesquisas, o intercâmbio de conspirações não apenas fracassa em satisfazer nossas necessidades psicológicas, disse Douglas, como também tende a agravar sentimentos de medo e desamparo.

E isso pode nos levar a procurar explicações ainda mais extremas, como viciados em busca de doses cada vez mais fortes.

Governos vêm uma oportunidade na confusão

Os conspiradores e questionadores agora têm apoio dos governos. Antecipando a repercussão política da crise, líderes governamentais agiram rapidamente para se eximirem da culpa, espalhando suas próprias mentiras.

Uma importante autoridade chinesa disse que o vírus foi introduzido na China por membros do Exército dos Estados Unidos, uma acusação que teve permissão para se disseminar nas mídias sociais rigidamente controladas da China.

Na Venezuela, o presidente Nicolás Maduro sugeriu que o vírus era uma arma biológica americana cujo alvo seria a China. No Irã, as autoridades o chamaram de conspiração para acabar com o processo eleitoral no país. E agências de notícias que apoiam o governo russo, algumas com filiais na Europa ocidental, ventilaram alegações de que os Estados Unidos projetaram o vírus para minar a economia chinesa.

Nas antigas repúblicas soviéticas do Turcomenistão e Tadjiquistão, líderes recomendaram tratamentos falsos e defenderam a ideia de que os cidadãos deveriam continuar trabalhando.

Vizinhos do bairro de Trinidad que estão em isolamento social, por causa do surto de coronavírus, aplaudem a segunda-feira Santa em Málaga, na Espanha. Foto: Jorge Zapata / EFE 

Mas as autoridades tampouco deixaram de espalhar boatos em nações mais democráticas, particularmente naquelas em que a desconfiança em relação à autoridade abriu espaço para a ascensão de fortes movimentos populistas.

Matteo Salvini, líder do partido anti-imigração Liga Norte, na Itália, escreveu no Twitter que a China havia criado um “supervírus de pulmão” a partir de “morcegos e ratos”.

E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, repetidas vezes propagandeou tratamentos não comprovados e insinuou que o coronavírus seria menos perigoso do que dizem os especialistas. Facebook, Twitter e YouTube tomaram a extraordinária decisão de remover suas postagens.

O presidente Donald Trump também insistiu repetidamente no uso de medicamentos não comprovados, apesar das advertências dos cientistas e de pelo menos uma overdose fatal, a qual vitimou um homem cuja esposa disse que ele havia tomado o remédio por sugestão de Trump.

Trump acusou seus supostos inimigos de tentar “inflamar” a “situação” do coronavírus para prejudicá-lo. Quando começaram a faltar equipamentos de proteção individual nos hospitais de Nova York, ele insinuou que os profissionais de saúde estavam roubando as máscaras. Seus aliados foram ainda mais longe.

O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, e outros sugeriram que o vírus foi produzido por um laboratório de armas chinês. Alguns aliados da mídia alegaram que os inimigos de Trump exageraram o número de mortos.

Uma crise paralela

“Essa supressão de informações é perigosa – muito, muito perigosa”, disse Brookie, referindo-se aos esforços chineses e americanos para minimizar a ameaça do surto.

A supressão de informações alimentou não apenas conspirações específicas, mas também uma sensação mais generalizada de que as fontes e dados oficiais não são confiáveis, bem como a ideia cada vez mais disseminada de que as pessoas devem buscar a verdade por conta própria.

A cacofonia dos epidemiologistas de sofá, que costumam chamar a atenção com afirmações sensacionalistas, muitas vezes encobre a fala de especialistas legítimos, cujas respostas raramente são muito sintéticas ou tranquilizadoras.

Eles prometem curas fáceis, como evitar os aparelhos eletrônicos ou até mesmo comer bananas, e dizem que o transtorno do isolamento social é desnecessário. Alguns chegam a vender tratamentos enganosos que eles próprios inventaram.

“As teorias da conspiração do campo da medicina têm o poder de aumentar a desconfiança nas autoridades médicas, o que pode afetar a disposição das pessoas a se protegerem”, escreveram Daniel Jolley e Pia Lamberty, pesquisadores de psicologia, em um artigo recente.

Demonstrou-se que tais alegações deixam as pessoas menos propensas a tomar vacinas ou antibióticos e mais propensas a procurar aconselhamento médico junto a amigos e familiares, e não profissionais de saúde.

A crença em uma conspiração também tende a aumentar a crença nas outras. As consequências, alertam os especialistas, podem não apenas piorar a pandemia, mas também se estender para além dela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

NOVA YORK - O coronavírus deu origem a uma enxurrada de teorias da conspiração, desinformação e propaganda, minando as autoridades de saúde e corroendo a confiança do público de maneiras que podem prolongar a pandemia e até mesmo se estender para além dela.

Alegações de que o novo coronavírus seria uma arma biológica estrangeira, uma invenção partidária ou parte de um projeto de reengenharia social substituíram um vírus sem razão nem propósito por vilões mais familiares e compreensíveis. Cada alegação parece dar a essa tragédia sem sentido algum grau de significado, por mais sombrio que seja.

Garoto observa um grafite pintado pelo artista Kai 'Uzey' Wohlgemuth em parede de Hamm, no oeste da Alemanha, representando uma enfermeira como super-heroína na briga contra o coronavírus. Foto: Ina Fassbender / AFP 

Rumores de curas secretas – beber alvejante diluído, desligar os aparelhos eletrônicos, comer banana – dão uma esperança de proteção contra uma ameaça da qual nem mesmo os líderes mundiais estão escapando.

A crença de que alguém teve acesso ao conhecimento proibido proporciona uma sensação de certeza e controle em meio a uma crise que virou o mundo de cabeça para baixo. E compartilhar esse “conhecimento” pode dar às pessoas algo difícil de encontrar depois de semanas de isolamento e morte: a sensação de que se está fazendo alguma coisa.

“Aí estão todos os ingredientes que empurram as pessoas para as teorias da conspiração”, disse Karen Douglas, psicóloga social que estuda a crença em conspirações na Universidade de Kent, na Grã-Bretanha.

Rumores e afirmações flagrantemente estapafúrdias são disseminados por pessoas comuns cujas faculdades críticas simplesmente se viram esmagadas sob sentimentos de confusão e desamparo, dizem os psicólogos.

Apesar da regra do governo do distanciamento social para conter a disseminação do coronavírus, trabalhadores da província de Hai Duong, no Vietnã, se aglomeram enquanto esperam balsa na volta do trabalho. Foto: Kham / Reuters 

Mas muitas alegações falsas também vêm sendo promovidas por governos que tentam esconder seus fracassos, líderes partidários em busca de benefícios políticos, golpistas em geral e, nos Estados Unidos, por um presidente que insiste em curas não comprovadas e dispara falsidades que procuram eximi-lo de qualquer culpa.

Todas as teorias da conspiração carregam uma mensagem em comum: o único jeito de se proteger é saber as verdades secretas que “eles” não querem que você ouça.

O sentimento de segurança e controle proporcionado por esses rumores pode ser ilusório, mas os danos à confiança do público são bem reais.

As teorias conspiratórias estão levando as pessoas a consumir remédios caseiros que se revelaram letais e a desrespeitar as orientações de distanciamento social. E estão sabotando as ações coletivas, como ficar em casa ou usar máscaras, atitudes necessárias para conter um vírus que já matou mais de 79 mil pessoas.

“Já enfrentamos pandemias antes desta”, disse Graham Brookie, que dirige o Laboratório de Pesquisa Forense Digital do Atlantic Council. “Mas nunca enfrentamos uma pandemia num momento em que as pessoas estivessem tão conectadas e tivessem tanto acesso a informações quanto agora."

Esse crescente ecossistema de desinformação e desconfiança pública obrigou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a ligar o alerta para uma “infodemia”. “Estamos assistindo a uma verdadeira inundação”, disse Brookie. “A ansiedade é viral, e todos estamos nos sentindo mais ansiosos que nunca."

O fascínio do 'conhecimento secreto'

“As conspirações atraem as pessoas porque prometem satisfazer certos motivos psicológicos que são importantes para elas”, disse Douglas. Os principais deles: o domínio sobre os fatos, a autonomia sobre o bem-estar e a sensação de controle.

Quando a verdade não atende a essas necessidades, nós humanos temos uma capacidade incrível de inventar histórias que atenderão, mesmo que uma parte de nós saiba que as histórias são falsas. Um estudo recente revelou que as pessoas são significativamente mais propensas a compartilhar informações falsas sobre o coronavírus do que imaginam.

“A magnitude da desinformação que se espalhou com a pandemia da covid-19 está sobrecarregando nossa equipe”, escreveu no Twitter o Snopes, um site de verificação de fatos. “Estamos vendo que milhares de pessoas, na ânsia de encontrar algum conforto, acabam piorando as coisas ao compartilhar informações falsas (e, às vezes, perigosas)."

Vastamente compartilhadas, postagens de Instagram alegaram, falsamente, que o coronavírus fora planejado por Bill Gates em benefício de empresas farmacêuticas. No Alabama, postagens de Facebook afirmaram, falsamente, que poderes obscuros haviam ordenado que doentes fossem secretamente enviados de helicóptero para o Estado. Na América Latina, proliferaram rumores igualmente infundados de que o vírus fora projetado para espalhar o HIV. No Irã, vozes pró-governo retrataram a doença como uma trama ocidental.

Se as alegações parecerem sigilosas, melhor ainda

A crença de que temos acesso a informações secretas pode nos dar a sensação de que temos uma vantagem, de que, de alguma forma, estamos mais seguros. “Quem acredita em teorias da conspiração acha que tem um poder, conferido pelo conhecimento, que as outras pessoas não têm”, disse Douglas.

A mídia italiana repercutiu um vídeo postado por um italiano que morava em Tóquio, no qual ele dizia que o coronavírus era tratável, mas que as autoridades italianas estavam “escondendo a verdade”.

Outros vídeos, muito populares no YouTube, afirmam que toda a pandemia é uma ficção encenada para controlar a população.

As teorias da conspiração também podem fazer as pessoas se sentirem menos sozinhas. Poucas coisas estreitam mais os laços entre “nós” do que combater “eles”, especialmente quando “eles” são estrangeiros e minorias, frequentes bodes expiatórios de boatos sobre o coronavírus e muitas outras coisas no passado.

Mas qualquer conforto que essas teorias proporcionem terá vida curta. Com o tempo, segundo pesquisas, o intercâmbio de conspirações não apenas fracassa em satisfazer nossas necessidades psicológicas, disse Douglas, como também tende a agravar sentimentos de medo e desamparo.

E isso pode nos levar a procurar explicações ainda mais extremas, como viciados em busca de doses cada vez mais fortes.

Governos vêm uma oportunidade na confusão

Os conspiradores e questionadores agora têm apoio dos governos. Antecipando a repercussão política da crise, líderes governamentais agiram rapidamente para se eximirem da culpa, espalhando suas próprias mentiras.

Uma importante autoridade chinesa disse que o vírus foi introduzido na China por membros do Exército dos Estados Unidos, uma acusação que teve permissão para se disseminar nas mídias sociais rigidamente controladas da China.

Na Venezuela, o presidente Nicolás Maduro sugeriu que o vírus era uma arma biológica americana cujo alvo seria a China. No Irã, as autoridades o chamaram de conspiração para acabar com o processo eleitoral no país. E agências de notícias que apoiam o governo russo, algumas com filiais na Europa ocidental, ventilaram alegações de que os Estados Unidos projetaram o vírus para minar a economia chinesa.

Nas antigas repúblicas soviéticas do Turcomenistão e Tadjiquistão, líderes recomendaram tratamentos falsos e defenderam a ideia de que os cidadãos deveriam continuar trabalhando.

Vizinhos do bairro de Trinidad que estão em isolamento social, por causa do surto de coronavírus, aplaudem a segunda-feira Santa em Málaga, na Espanha. Foto: Jorge Zapata / EFE 

Mas as autoridades tampouco deixaram de espalhar boatos em nações mais democráticas, particularmente naquelas em que a desconfiança em relação à autoridade abriu espaço para a ascensão de fortes movimentos populistas.

Matteo Salvini, líder do partido anti-imigração Liga Norte, na Itália, escreveu no Twitter que a China havia criado um “supervírus de pulmão” a partir de “morcegos e ratos”.

E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, repetidas vezes propagandeou tratamentos não comprovados e insinuou que o coronavírus seria menos perigoso do que dizem os especialistas. Facebook, Twitter e YouTube tomaram a extraordinária decisão de remover suas postagens.

O presidente Donald Trump também insistiu repetidamente no uso de medicamentos não comprovados, apesar das advertências dos cientistas e de pelo menos uma overdose fatal, a qual vitimou um homem cuja esposa disse que ele havia tomado o remédio por sugestão de Trump.

Trump acusou seus supostos inimigos de tentar “inflamar” a “situação” do coronavírus para prejudicá-lo. Quando começaram a faltar equipamentos de proteção individual nos hospitais de Nova York, ele insinuou que os profissionais de saúde estavam roubando as máscaras. Seus aliados foram ainda mais longe.

O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, e outros sugeriram que o vírus foi produzido por um laboratório de armas chinês. Alguns aliados da mídia alegaram que os inimigos de Trump exageraram o número de mortos.

Uma crise paralela

“Essa supressão de informações é perigosa – muito, muito perigosa”, disse Brookie, referindo-se aos esforços chineses e americanos para minimizar a ameaça do surto.

A supressão de informações alimentou não apenas conspirações específicas, mas também uma sensação mais generalizada de que as fontes e dados oficiais não são confiáveis, bem como a ideia cada vez mais disseminada de que as pessoas devem buscar a verdade por conta própria.

A cacofonia dos epidemiologistas de sofá, que costumam chamar a atenção com afirmações sensacionalistas, muitas vezes encobre a fala de especialistas legítimos, cujas respostas raramente são muito sintéticas ou tranquilizadoras.

Eles prometem curas fáceis, como evitar os aparelhos eletrônicos ou até mesmo comer bananas, e dizem que o transtorno do isolamento social é desnecessário. Alguns chegam a vender tratamentos enganosos que eles próprios inventaram.

“As teorias da conspiração do campo da medicina têm o poder de aumentar a desconfiança nas autoridades médicas, o que pode afetar a disposição das pessoas a se protegerem”, escreveram Daniel Jolley e Pia Lamberty, pesquisadores de psicologia, em um artigo recente.

Demonstrou-se que tais alegações deixam as pessoas menos propensas a tomar vacinas ou antibióticos e mais propensas a procurar aconselhamento médico junto a amigos e familiares, e não profissionais de saúde.

A crença em uma conspiração também tende a aumentar a crença nas outras. As consequências, alertam os especialistas, podem não apenas piorar a pandemia, mas também se estender para além dela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

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