Ela acabou num leito de hospital, inconsciente, enfaixada como uma múmia, depois de sobreviver a um ataque brutal. Após dois anos de casamento, o marido arrebentou sua cabeça, seu rosto e seu corpo a golpes de rolo de massa, a estrangulou e a perfurou 20 vezes com uma faca de cozinha – tudo diante do filho pequeno, que assistiu a cena aos berros.
Uma vizinha interrompeu o ataque, e Shira Isakov foi levada de helicóptero para o hospital mais próximo, no sul de Israel, em estado grave. Os médicos consideraram que sua chance de sobreviver àquela noite era de 20%. Ela sobreviveu, segundo afirma, “contrariando todas as expectativas”.
Apenas 14 meses depois do ataque, Shira, de 33 anos, ex-diretora de contas do braço israelense da McCann, agência de publicidade, emergiu como uma força poderosa para transformações em Israel, usando sua voz e sua proeminência para avanços mo combate à violência contra as mulheres no país.
Denúncia
Ativistas israelenses criticam há muito tempo leis que, segundo afirmam, favorecem abusadores em detrimento de vítimas e apontam para um histórico de baixo policiamento e sentenças lenientes em relação a esse tipo de violência, com muitos casos não fatais terminando em acordos judiciais e pouco ou nenhum tempo de cadeia.
O governo israelense “fecha os olhos para a violência doméstica”, afirmou a professora Shalva Weil, especialista em violência contra a mulher da Escola Seymour Fox de Educação, da Universidade Hebraica, e fundadora do Observatório sobre Feminicídio de Israel, acrescentando que as condenações desses criminosos foram com frequência “arbitrárias e brandas”.
Mas, desde o ataque que sofreu, Shira se tornou uma personalidade conhecida em Israel, e uma heroína para muita gente – sua atuação falando publicamente sobre o problema ajudaram Israel a transformar sua legislação; especialmente em relação a leis que protegem direitos parentais de abusadores e seu direito de controlar, de dentro da prisão, decisões a respeito de cuidados médicos e educação dos filhos.
“Eu disse a ele: ‘Não tenho nenhuma vergonha, foi isso o que aconteceu comigo, foi assim que ficou minha cara’”, relembrou Shira, na semana passada, em entrevista no apartamento de Tel-Aviv onde viveu com Moshe. “Ele que deve se envergonhar.”
Exemplo
Shira disse que não hesitou em tomar a decisão de ir a público e estava disposta a compartilhar detalhes da agressão para encorajar mulheres a não ignorar sinais de alerta de um relacionamento perigoso. “Para uma mulher que normalmente está bem arrumada e apresentável, não é agradável ser vista com o rosto cheio de suturas, hematomas e todo o lado esquerdo esmagado, a cabeça raspada e a boca sem dentes”, afirmou. “Mas decidi não me esconder.”
Moshe, o ex-marido de Shira, está na cadeia, foi condenado em agosto por tentativa de assassinato. Ele aguarda a sentença da Justiça e poderá passar mais de 20 anos na prisão. Desde o ataque, as conquistas de Shira na arena legal têm sido substanciais, e o ativismo dela recebe crédito por ter conscientizado tanto políticos quanto o público em geral a respeito de deficiências na maneira com que a sociedade israelense lida com abusos domésticos.
Uma vitória inicial veio quando a Justiça condenou Moshe também por abuso infantil. A batalha seguinte se apresentou quando Shira procurou terapia para Leon e ouviu do hospital que necessitaria da assinatura do pai do menino para autorizar o procedimento. A assinatura de Moshe também era necessária para matriculá-lo na creche e para as vacinações de rotina. E Moshe se recusava a assinar.
Então, Shira e seu advogado pediram ajuda a um parlamentar que demonstrara preocupação: Oded Forer, hoje ministro da Agricultura. Meses depois, o governo aprovou uma emenda legislativa para a suspensão imediata dos direitos de guarda dos filhos para pessoas acusadas de assassinato, de tentativa de assassinato de seus cônjuges ou de assédio sexual de algum filho.
Shira também se tornou fonte de apoio para outras vítimas de violência. Ela levantou recentemente US$ 50 mil para oferecer vale-compras em abrigos para mulheres em condições de vulnerabilidade. E está em campanha para elevar o valor das pensões pagas a parentes de mães assassinadas que criam seus filhos. Este mês, Shira começou a dar palestras pelo país, a convite de legislaturas locais e empresas – e está com a agenda lotada até o fim do ano.
“A franqueza de Shira tem sido muito eficaz em reduzir a taxa de violência doméstica grave e evitar o próximo feminicídio”, afirmou Weil, notando que, em 2021, o número de mulheres assassinadas caiu 25% em comparação ao ano anterior. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO