Estados estão perdendo a vergonha de assassinar inimigos no exterior; leia artigo da Economist


Alguns países estão encontrando novas justificativas para assassinatos políticos

Por The Economist
Atualização:

O assassinato de Hardeep Singh Nijjar, um ativista sique separatista que foi morto a tiros no Canadá em junho, tem causado discussões explosivas entre Canadá e Índia. Também evidenciou uma faceta incendiária da nova desordem mundial: os assassinatos. Matar dissidentes e terroristas — e figuras políticas ou militares — é tão velho quanto a própria política, mas a incidência dessas mortes pode estar aumentando.

A Ucrânia mira invasores e colaboradores; a Rússia tentou assassinar o presidente ucraniano. Em 25 de setembro, a Ucrânia afirmou ter matado o comandante da Frota Russa no Mar Negro, mas ao que tudo indica ele apareceu num vídeo no dia seguinte.

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Além da guerra na Europa, um novo conjunto de potências em ascensão, incluindo Índia e Arábia Saudita, está projetando força no exterior. Elas se ressentem com o que consideram uma visão ocidental de dois pesos e duas medidas em relação a assassinatos praticados por Estados. Novas tecnologias facilitam mais do que nunca a governos atacar seus inimigos com precisão, mesmo a enormes distâncias.

Cartazes trazem acusações contra Índia e pedem o fim das execuções extrajudiciais em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Narinder Nanu/AFP

Mas mesmo enquanto fica mais fácil assassinar e talvez os assassinatos fiquem mais frequentes o mundo ainda não resolveu como responder. Basta olhar para a resposta do Ocidente a assassinatos recentes praticados por Estados. O assassinato praticado pela Rússia do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, em 2006, provocou indignação e ocasionou sanções.

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Após o horripilante homicídio, em 2018, em Istambul, de Jamal Khashoggi, um jornalista saudita exilado que vivia nos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como pária. Mas no ano passado ele cumprimentou com soquinho Muhammad bin Salman, o príncipe-herdeiro saudita e líder de facto de seu país, e vem buscando persuadi-lo a fazer paz com Israel.

Enquanto isso, a Índia nega envolvimento na morte de Nijjar e poderá evitar qualquer consequência séria relacionada ao caso. O país mais populoso do mundo é importante para o Ocidente tanto como parceiro econômico quanto como contrapeso geopolítico à China. Essas inconsistências refletem um antigo labirinto moral e legal sobre assassinatos promovidos por Estados.

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A Bíblia pode exaltar o israelita Ehud por matar Eglon, o opressivo e “gordíssimo” rei moabita, mas também comanda obediência à autoridade, “Pois governantes não são terror para as boas obras, mas para o mal”. O homicídio de uma pessoa proeminente por motivação política sem processo legal carrega a conotação da perfídia. Dante colocou os assassinos de Júlio César no círculo mais profundo do inferno, junto com Judas, com seus corpos sendo roídos por Satã.

Mas Estados matam inimigos proeminentes no exterior por diferentes razões e com métodos variados. Um artigo de 2006 de Warner Schilling e Jonathan Schilling lista 14 objetivos possíveis, da vingança ao enfraquecimento de um inimigo ou a destruição de um Estado rival.

É difícil obter dados confiáveis sobre os padrões dos assassinatos e suas causas em razão dos problemas na identificação dos casos e dos culpados. Cerca de 298 tentativas de assassinato de líderes nacionais foram registradas entre 1875 e 2004, de acordo com um artigo de Benjamin Jones e Benjamin Olken publicado no American Economic Journal em 2009. Desde 1950, constatam eles, um líder nacional foi assassinado em aproximadamente dois a cada três anos.

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Hatice Cengiz (na tela), noiva do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi, discursa em evento em homenagem a Khashoggi, que morreu dentro do Consulado Saudita em Istambul em outubro de 2018  Foto: J. Scott Applewhite/AP

Guerra por outros meios

Para Rory Cormac, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, a morte a tiros no Canadá é evidência do enfraquecimento das normas internacionais contra o assassinato: “A cada homicídio em alto nível o tabu se erode um pouco”, afirma ele. Cormac aponta duas razões: os regimes autoritários “estão perdendo o pudor” de desafiar as normas liberais; e democracias apelarem para assassinatos seletivos “encorajou outros Estados”. Outros fatores, como facilidade para viajar e drones que tornam possível vigilância e ataques a longa distância, provavelmente pioraram o problema. Ao longo dos anos, os EUA mataram milhares de suspeitos de jihadismo — e também muitos civis — com drones.

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“Assassinatos nunca mudaram a história do mundo”, notou o político britânico Benjamin Disraeli após o assassinato de Abraham Lincoln. Mas muitos homicídios podem surtir impactos dramáticos. O projétil disparado por um nacionalista sérvio que matou o arquiduque Franz Ferdinand em junho de 1914 detonou a 1.ª Guerra.

E assassinatos arriscam retaliações: Mike Pompeo e John Bolton, respectivamente ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, supostamente foram alvos de uma conspiração de assassinato do Irã. O serviço de inteligência doméstica do Reino Unido, MI5, afirma que o Irã possui “ambições de sequestrar ou até matar britânicos ou indivíduos radicados no Reino Unido percebidos como inimigos do regime”.

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Segredos e mistérios

Quando se trata de métodos, a Rússia prefere o veneno. Seus agentes assassinaram Litvinenko com polônio radioativo. Eles quase mataram outro ex-espião no Reino Unido, Sergei Skripal, e sua filha Yulia com novichok, um agente nervoso, em 2018. A Coreia do Norte também gosta de veneno — matou Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, esfregando VX, outro agente nervoso, em seu rosto, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017.

Os EUA preferem bombas e tiros. Suas forças especiais invadiram uma casa fortificada no Paquistão e assassinaram o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011. Um drone americano matou seu sucessor, Ayman al-Zawahiri, em Cabul, em 2022. Outro drone eliminou Qassem Suleimani, o comandante da Força Quds, a unidade de operações no exterior do Irã, no aeroporto de Bagdá, em 2020.

Isso tudo apesar do fato de que, em 1961, o presidente John Kennedy (ele próprio assassinado posteriormente) disse a um conselheiro que desaprovava a prática: “Nós não podemos nos envolver nesse tipo de coisa, ou todos nós seremos alvo”. Mas os EUA estavam certamente envolvidos nesse tipo de coisa nos primeiros anos da Guerra Fria.

Kim Jong-nam (à esq), meio-irmão do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un (à dir): norte-coreanos também gostam de usar veneno, e esfregaram VX, um agente nervoso, no rosto de Nam, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017 Foto: Shizuo Kambayashi e Wong Maye / AP

Revelações dos esforços secretos de Washington para assassinar líderes como o cubano Fidel Castro (sem sucesso) e o dominicano Rafael Trujillo (com sucesso) provocaram retaliações. Em 1976, o então presidente americano, Gerald Ford, emitiu uma ordem executiva declarando que nenhum membro do governo dos EUA “deve se empenhar ou conspirar para se empenhar em assassinatos”.

Assassinatos no exterior ainda continuam comuns. Nestes dias, afirma Luca Trenta, da Universidade Swansea, em Gales, autocracias usam ações secretas para obter negação plausível — ou com frequência implausível. Mas democracias como os EUA buscam envolver com um véu de legalidade plausível os “assassinatos seletivos”, particularmente quando matam suspeitos de terrorismo.

A Carta da ONU institui que todos os membros “se abstenham em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Ao mesmo tempo, contudo, reconhece “o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva no caso de um ataque armado”.

Advogados internacionais especialistas em direitos humanos adotam uma visão restritiva. Em tempos de paz, assassinatos e homicídios seletivos são ilegais. Em tempo de guerra, essas operações podem ser permissíveis se estiverem de acordo com as leis da guerra. A Ucrânia mira comandantes graduados russos da mesma forma que os Aliados em 1943 derrubaram um avião que transportava o almirante japonês Yamamoto Isoroku sobre as Ilhas Salomão.

Imagem de satélite mostra ataque a base russa em Sebastopol; segundo a Ucrânia, ofensiva teria matado comandante no Mar Negro, que apareceu depois em vídeo  Foto: Planet Labs /AP

O que dizer do terrorismo internacional, que parece se situar num campo entre a guerra e o policiamento comum? Mary Ellen O’Connell, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, argumenta que “não há área cinzenta”. Sob o direito internacional, afirma ela, países devem lidar com o terrorismo por meio de ferramentas policiais, incluindo cooperações internacionais e extradições; ações letais constituem “assassinatos extrajudiciais”.

Mas os EUA, em particular, têm buscado maior liberdade de ação. Uma via tem sido qualificar soberania. A ação militar, argumentam os americanos, é permissível onde um Estado “não pretende ou não tem capacidade” de evitar atos de terrorismo. Eles também designaram em determinadas ocasiões territórios no exterior como “áreas de hostilidades ativas”, onde Forças Armadas podem operar mais livremente.

Outra rota tem sido expandir o direito à autodefesa. Um passo é declarar que isso inclui responder a ataques de atores não estatais tanto quanto de Estados. O segundo é asseverar um direito à “autodefesa antecipatória”, permitindo a um país usar a força para impedir uma ameaça de ataque “iminente”. A definição aceita mais amplamente é que a ameaça deveria ser “imediata, avassaladora e não permitir outra escolha de meios nem tempo para deliberação”. Mas isto também tem sido distendido.

Em 2001, o ex-presidente George W. Bush foi além e começou a adotar ideias de antecipação e prevenção para justificar o uso da força mesmo antes das ameaças estarem “completamente formadas”. O governo de Barack Obama também redefiniu o significado de “iminente”. Seu procurador-geral, Eric Holder, afirmou que o termo tinha de considerar não apenas a proximidade da ameaça, mas também a “janela de oportunidade para agir”. Grande parte desse pensamento é emprestado de Israel, cuja Suprema Corte decidiu em 2006 que, no caso de terroristas, “pausas entre hostilidades não passam de preparações para a hostilidade seguinte”.

O exemplo dos EUA encorajou afrouxamentos similares no Reino Unido, na Austrália e na França, afirma Trenta. Mas para a professora O’Connell, essas narrativas e atitudes evidenciam um Ocidente que confere a si mesmo direitos que não aplica sobre os demais, “uma ordem com base em regras em violação ao direito internacional”.

Ativistas queimam bandeira da Índia e cartaz do primeiro-ministro Narendra Modi em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Cole Burston/AFP

Instintos assassinos

A Índia bem poderia argumentar — como os jornais amigos do governo — que o assassinato de Nijjar enquadra-se nas noções de contraterrorismo do Ocidente. O separatismo sique ocasionou um derramamento de sangue no passado que culminou no assassinato, em 1984, da primeira-ministra Indira Gandhi, e no atentado a bomba que derrubou um avião comercial da Air India que voava de Montreal a Londres.

Apesar de ter diminuído, a violência sique poderia se ativar novamente. A Índia afirma que Nijjar era terrorista e oferecia recompensa por sua captura; seus apoiadores afirmam que o ativista era pacifista. Na visão da Índia, a recusa do Ocidente em ajudar a conter os separatistas siques representa uma ameaça. O governo indiano, porém, prefere afirmar que não tem nada a ver com a morte de Nijjar. Quanto ao policiamento, a cooperação fica cada vez mais difícil à medida que a Índia desgasta liberdades democráticas.

Desenvolver um braço longo para operações secretas não é fácil, requer recursos e conhecimento para rastrear alvos, organizar os assassinatos e evitar prisões. Os espiões indianos podem pensar que estão emulando agentes americanos e israelenses enquanto defensores necessariamente brutos da democracia.

Alguns falam até de uma “israelificação” do serviço de inteligência indiano, o Research and Analysis Wing (RAW). Mas se for visto como um organismo que passou de mitigar ameaças claras de segurança a assassinar rivais políticos, o RAW se tornará domesticamente o rosto público e sombrio da repressão do governo, da mesma forma que espiões russos ou sauditas. Assassinatos podem alertar o mundo sobre a brutalidade dos regimes que os ordenam. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

O assassinato de Hardeep Singh Nijjar, um ativista sique separatista que foi morto a tiros no Canadá em junho, tem causado discussões explosivas entre Canadá e Índia. Também evidenciou uma faceta incendiária da nova desordem mundial: os assassinatos. Matar dissidentes e terroristas — e figuras políticas ou militares — é tão velho quanto a própria política, mas a incidência dessas mortes pode estar aumentando.

A Ucrânia mira invasores e colaboradores; a Rússia tentou assassinar o presidente ucraniano. Em 25 de setembro, a Ucrânia afirmou ter matado o comandante da Frota Russa no Mar Negro, mas ao que tudo indica ele apareceu num vídeo no dia seguinte.

Além da guerra na Europa, um novo conjunto de potências em ascensão, incluindo Índia e Arábia Saudita, está projetando força no exterior. Elas se ressentem com o que consideram uma visão ocidental de dois pesos e duas medidas em relação a assassinatos praticados por Estados. Novas tecnologias facilitam mais do que nunca a governos atacar seus inimigos com precisão, mesmo a enormes distâncias.

Cartazes trazem acusações contra Índia e pedem o fim das execuções extrajudiciais em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Narinder Nanu/AFP

Mas mesmo enquanto fica mais fácil assassinar e talvez os assassinatos fiquem mais frequentes o mundo ainda não resolveu como responder. Basta olhar para a resposta do Ocidente a assassinatos recentes praticados por Estados. O assassinato praticado pela Rússia do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, em 2006, provocou indignação e ocasionou sanções.

Após o horripilante homicídio, em 2018, em Istambul, de Jamal Khashoggi, um jornalista saudita exilado que vivia nos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como pária. Mas no ano passado ele cumprimentou com soquinho Muhammad bin Salman, o príncipe-herdeiro saudita e líder de facto de seu país, e vem buscando persuadi-lo a fazer paz com Israel.

Enquanto isso, a Índia nega envolvimento na morte de Nijjar e poderá evitar qualquer consequência séria relacionada ao caso. O país mais populoso do mundo é importante para o Ocidente tanto como parceiro econômico quanto como contrapeso geopolítico à China. Essas inconsistências refletem um antigo labirinto moral e legal sobre assassinatos promovidos por Estados.

A Bíblia pode exaltar o israelita Ehud por matar Eglon, o opressivo e “gordíssimo” rei moabita, mas também comanda obediência à autoridade, “Pois governantes não são terror para as boas obras, mas para o mal”. O homicídio de uma pessoa proeminente por motivação política sem processo legal carrega a conotação da perfídia. Dante colocou os assassinos de Júlio César no círculo mais profundo do inferno, junto com Judas, com seus corpos sendo roídos por Satã.

Mas Estados matam inimigos proeminentes no exterior por diferentes razões e com métodos variados. Um artigo de 2006 de Warner Schilling e Jonathan Schilling lista 14 objetivos possíveis, da vingança ao enfraquecimento de um inimigo ou a destruição de um Estado rival.

É difícil obter dados confiáveis sobre os padrões dos assassinatos e suas causas em razão dos problemas na identificação dos casos e dos culpados. Cerca de 298 tentativas de assassinato de líderes nacionais foram registradas entre 1875 e 2004, de acordo com um artigo de Benjamin Jones e Benjamin Olken publicado no American Economic Journal em 2009. Desde 1950, constatam eles, um líder nacional foi assassinado em aproximadamente dois a cada três anos.

Hatice Cengiz (na tela), noiva do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi, discursa em evento em homenagem a Khashoggi, que morreu dentro do Consulado Saudita em Istambul em outubro de 2018  Foto: J. Scott Applewhite/AP

Guerra por outros meios

Para Rory Cormac, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, a morte a tiros no Canadá é evidência do enfraquecimento das normas internacionais contra o assassinato: “A cada homicídio em alto nível o tabu se erode um pouco”, afirma ele. Cormac aponta duas razões: os regimes autoritários “estão perdendo o pudor” de desafiar as normas liberais; e democracias apelarem para assassinatos seletivos “encorajou outros Estados”. Outros fatores, como facilidade para viajar e drones que tornam possível vigilância e ataques a longa distância, provavelmente pioraram o problema. Ao longo dos anos, os EUA mataram milhares de suspeitos de jihadismo — e também muitos civis — com drones.

“Assassinatos nunca mudaram a história do mundo”, notou o político britânico Benjamin Disraeli após o assassinato de Abraham Lincoln. Mas muitos homicídios podem surtir impactos dramáticos. O projétil disparado por um nacionalista sérvio que matou o arquiduque Franz Ferdinand em junho de 1914 detonou a 1.ª Guerra.

E assassinatos arriscam retaliações: Mike Pompeo e John Bolton, respectivamente ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, supostamente foram alvos de uma conspiração de assassinato do Irã. O serviço de inteligência doméstica do Reino Unido, MI5, afirma que o Irã possui “ambições de sequestrar ou até matar britânicos ou indivíduos radicados no Reino Unido percebidos como inimigos do regime”.

Segredos e mistérios

Quando se trata de métodos, a Rússia prefere o veneno. Seus agentes assassinaram Litvinenko com polônio radioativo. Eles quase mataram outro ex-espião no Reino Unido, Sergei Skripal, e sua filha Yulia com novichok, um agente nervoso, em 2018. A Coreia do Norte também gosta de veneno — matou Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, esfregando VX, outro agente nervoso, em seu rosto, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017.

Os EUA preferem bombas e tiros. Suas forças especiais invadiram uma casa fortificada no Paquistão e assassinaram o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011. Um drone americano matou seu sucessor, Ayman al-Zawahiri, em Cabul, em 2022. Outro drone eliminou Qassem Suleimani, o comandante da Força Quds, a unidade de operações no exterior do Irã, no aeroporto de Bagdá, em 2020.

Isso tudo apesar do fato de que, em 1961, o presidente John Kennedy (ele próprio assassinado posteriormente) disse a um conselheiro que desaprovava a prática: “Nós não podemos nos envolver nesse tipo de coisa, ou todos nós seremos alvo”. Mas os EUA estavam certamente envolvidos nesse tipo de coisa nos primeiros anos da Guerra Fria.

Kim Jong-nam (à esq), meio-irmão do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un (à dir): norte-coreanos também gostam de usar veneno, e esfregaram VX, um agente nervoso, no rosto de Nam, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017 Foto: Shizuo Kambayashi e Wong Maye / AP

Revelações dos esforços secretos de Washington para assassinar líderes como o cubano Fidel Castro (sem sucesso) e o dominicano Rafael Trujillo (com sucesso) provocaram retaliações. Em 1976, o então presidente americano, Gerald Ford, emitiu uma ordem executiva declarando que nenhum membro do governo dos EUA “deve se empenhar ou conspirar para se empenhar em assassinatos”.

Assassinatos no exterior ainda continuam comuns. Nestes dias, afirma Luca Trenta, da Universidade Swansea, em Gales, autocracias usam ações secretas para obter negação plausível — ou com frequência implausível. Mas democracias como os EUA buscam envolver com um véu de legalidade plausível os “assassinatos seletivos”, particularmente quando matam suspeitos de terrorismo.

A Carta da ONU institui que todos os membros “se abstenham em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Ao mesmo tempo, contudo, reconhece “o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva no caso de um ataque armado”.

Advogados internacionais especialistas em direitos humanos adotam uma visão restritiva. Em tempos de paz, assassinatos e homicídios seletivos são ilegais. Em tempo de guerra, essas operações podem ser permissíveis se estiverem de acordo com as leis da guerra. A Ucrânia mira comandantes graduados russos da mesma forma que os Aliados em 1943 derrubaram um avião que transportava o almirante japonês Yamamoto Isoroku sobre as Ilhas Salomão.

Imagem de satélite mostra ataque a base russa em Sebastopol; segundo a Ucrânia, ofensiva teria matado comandante no Mar Negro, que apareceu depois em vídeo  Foto: Planet Labs /AP

O que dizer do terrorismo internacional, que parece se situar num campo entre a guerra e o policiamento comum? Mary Ellen O’Connell, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, argumenta que “não há área cinzenta”. Sob o direito internacional, afirma ela, países devem lidar com o terrorismo por meio de ferramentas policiais, incluindo cooperações internacionais e extradições; ações letais constituem “assassinatos extrajudiciais”.

Mas os EUA, em particular, têm buscado maior liberdade de ação. Uma via tem sido qualificar soberania. A ação militar, argumentam os americanos, é permissível onde um Estado “não pretende ou não tem capacidade” de evitar atos de terrorismo. Eles também designaram em determinadas ocasiões territórios no exterior como “áreas de hostilidades ativas”, onde Forças Armadas podem operar mais livremente.

Outra rota tem sido expandir o direito à autodefesa. Um passo é declarar que isso inclui responder a ataques de atores não estatais tanto quanto de Estados. O segundo é asseverar um direito à “autodefesa antecipatória”, permitindo a um país usar a força para impedir uma ameaça de ataque “iminente”. A definição aceita mais amplamente é que a ameaça deveria ser “imediata, avassaladora e não permitir outra escolha de meios nem tempo para deliberação”. Mas isto também tem sido distendido.

Em 2001, o ex-presidente George W. Bush foi além e começou a adotar ideias de antecipação e prevenção para justificar o uso da força mesmo antes das ameaças estarem “completamente formadas”. O governo de Barack Obama também redefiniu o significado de “iminente”. Seu procurador-geral, Eric Holder, afirmou que o termo tinha de considerar não apenas a proximidade da ameaça, mas também a “janela de oportunidade para agir”. Grande parte desse pensamento é emprestado de Israel, cuja Suprema Corte decidiu em 2006 que, no caso de terroristas, “pausas entre hostilidades não passam de preparações para a hostilidade seguinte”.

O exemplo dos EUA encorajou afrouxamentos similares no Reino Unido, na Austrália e na França, afirma Trenta. Mas para a professora O’Connell, essas narrativas e atitudes evidenciam um Ocidente que confere a si mesmo direitos que não aplica sobre os demais, “uma ordem com base em regras em violação ao direito internacional”.

Ativistas queimam bandeira da Índia e cartaz do primeiro-ministro Narendra Modi em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Cole Burston/AFP

Instintos assassinos

A Índia bem poderia argumentar — como os jornais amigos do governo — que o assassinato de Nijjar enquadra-se nas noções de contraterrorismo do Ocidente. O separatismo sique ocasionou um derramamento de sangue no passado que culminou no assassinato, em 1984, da primeira-ministra Indira Gandhi, e no atentado a bomba que derrubou um avião comercial da Air India que voava de Montreal a Londres.

Apesar de ter diminuído, a violência sique poderia se ativar novamente. A Índia afirma que Nijjar era terrorista e oferecia recompensa por sua captura; seus apoiadores afirmam que o ativista era pacifista. Na visão da Índia, a recusa do Ocidente em ajudar a conter os separatistas siques representa uma ameaça. O governo indiano, porém, prefere afirmar que não tem nada a ver com a morte de Nijjar. Quanto ao policiamento, a cooperação fica cada vez mais difícil à medida que a Índia desgasta liberdades democráticas.

Desenvolver um braço longo para operações secretas não é fácil, requer recursos e conhecimento para rastrear alvos, organizar os assassinatos e evitar prisões. Os espiões indianos podem pensar que estão emulando agentes americanos e israelenses enquanto defensores necessariamente brutos da democracia.

Alguns falam até de uma “israelificação” do serviço de inteligência indiano, o Research and Analysis Wing (RAW). Mas se for visto como um organismo que passou de mitigar ameaças claras de segurança a assassinar rivais políticos, o RAW se tornará domesticamente o rosto público e sombrio da repressão do governo, da mesma forma que espiões russos ou sauditas. Assassinatos podem alertar o mundo sobre a brutalidade dos regimes que os ordenam. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

O assassinato de Hardeep Singh Nijjar, um ativista sique separatista que foi morto a tiros no Canadá em junho, tem causado discussões explosivas entre Canadá e Índia. Também evidenciou uma faceta incendiária da nova desordem mundial: os assassinatos. Matar dissidentes e terroristas — e figuras políticas ou militares — é tão velho quanto a própria política, mas a incidência dessas mortes pode estar aumentando.

A Ucrânia mira invasores e colaboradores; a Rússia tentou assassinar o presidente ucraniano. Em 25 de setembro, a Ucrânia afirmou ter matado o comandante da Frota Russa no Mar Negro, mas ao que tudo indica ele apareceu num vídeo no dia seguinte.

Além da guerra na Europa, um novo conjunto de potências em ascensão, incluindo Índia e Arábia Saudita, está projetando força no exterior. Elas se ressentem com o que consideram uma visão ocidental de dois pesos e duas medidas em relação a assassinatos praticados por Estados. Novas tecnologias facilitam mais do que nunca a governos atacar seus inimigos com precisão, mesmo a enormes distâncias.

Cartazes trazem acusações contra Índia e pedem o fim das execuções extrajudiciais em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Narinder Nanu/AFP

Mas mesmo enquanto fica mais fácil assassinar e talvez os assassinatos fiquem mais frequentes o mundo ainda não resolveu como responder. Basta olhar para a resposta do Ocidente a assassinatos recentes praticados por Estados. O assassinato praticado pela Rússia do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, em 2006, provocou indignação e ocasionou sanções.

Após o horripilante homicídio, em 2018, em Istambul, de Jamal Khashoggi, um jornalista saudita exilado que vivia nos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como pária. Mas no ano passado ele cumprimentou com soquinho Muhammad bin Salman, o príncipe-herdeiro saudita e líder de facto de seu país, e vem buscando persuadi-lo a fazer paz com Israel.

Enquanto isso, a Índia nega envolvimento na morte de Nijjar e poderá evitar qualquer consequência séria relacionada ao caso. O país mais populoso do mundo é importante para o Ocidente tanto como parceiro econômico quanto como contrapeso geopolítico à China. Essas inconsistências refletem um antigo labirinto moral e legal sobre assassinatos promovidos por Estados.

A Bíblia pode exaltar o israelita Ehud por matar Eglon, o opressivo e “gordíssimo” rei moabita, mas também comanda obediência à autoridade, “Pois governantes não são terror para as boas obras, mas para o mal”. O homicídio de uma pessoa proeminente por motivação política sem processo legal carrega a conotação da perfídia. Dante colocou os assassinos de Júlio César no círculo mais profundo do inferno, junto com Judas, com seus corpos sendo roídos por Satã.

Mas Estados matam inimigos proeminentes no exterior por diferentes razões e com métodos variados. Um artigo de 2006 de Warner Schilling e Jonathan Schilling lista 14 objetivos possíveis, da vingança ao enfraquecimento de um inimigo ou a destruição de um Estado rival.

É difícil obter dados confiáveis sobre os padrões dos assassinatos e suas causas em razão dos problemas na identificação dos casos e dos culpados. Cerca de 298 tentativas de assassinato de líderes nacionais foram registradas entre 1875 e 2004, de acordo com um artigo de Benjamin Jones e Benjamin Olken publicado no American Economic Journal em 2009. Desde 1950, constatam eles, um líder nacional foi assassinado em aproximadamente dois a cada três anos.

Hatice Cengiz (na tela), noiva do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi, discursa em evento em homenagem a Khashoggi, que morreu dentro do Consulado Saudita em Istambul em outubro de 2018  Foto: J. Scott Applewhite/AP

Guerra por outros meios

Para Rory Cormac, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, a morte a tiros no Canadá é evidência do enfraquecimento das normas internacionais contra o assassinato: “A cada homicídio em alto nível o tabu se erode um pouco”, afirma ele. Cormac aponta duas razões: os regimes autoritários “estão perdendo o pudor” de desafiar as normas liberais; e democracias apelarem para assassinatos seletivos “encorajou outros Estados”. Outros fatores, como facilidade para viajar e drones que tornam possível vigilância e ataques a longa distância, provavelmente pioraram o problema. Ao longo dos anos, os EUA mataram milhares de suspeitos de jihadismo — e também muitos civis — com drones.

“Assassinatos nunca mudaram a história do mundo”, notou o político britânico Benjamin Disraeli após o assassinato de Abraham Lincoln. Mas muitos homicídios podem surtir impactos dramáticos. O projétil disparado por um nacionalista sérvio que matou o arquiduque Franz Ferdinand em junho de 1914 detonou a 1.ª Guerra.

E assassinatos arriscam retaliações: Mike Pompeo e John Bolton, respectivamente ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, supostamente foram alvos de uma conspiração de assassinato do Irã. O serviço de inteligência doméstica do Reino Unido, MI5, afirma que o Irã possui “ambições de sequestrar ou até matar britânicos ou indivíduos radicados no Reino Unido percebidos como inimigos do regime”.

Segredos e mistérios

Quando se trata de métodos, a Rússia prefere o veneno. Seus agentes assassinaram Litvinenko com polônio radioativo. Eles quase mataram outro ex-espião no Reino Unido, Sergei Skripal, e sua filha Yulia com novichok, um agente nervoso, em 2018. A Coreia do Norte também gosta de veneno — matou Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, esfregando VX, outro agente nervoso, em seu rosto, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017.

Os EUA preferem bombas e tiros. Suas forças especiais invadiram uma casa fortificada no Paquistão e assassinaram o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011. Um drone americano matou seu sucessor, Ayman al-Zawahiri, em Cabul, em 2022. Outro drone eliminou Qassem Suleimani, o comandante da Força Quds, a unidade de operações no exterior do Irã, no aeroporto de Bagdá, em 2020.

Isso tudo apesar do fato de que, em 1961, o presidente John Kennedy (ele próprio assassinado posteriormente) disse a um conselheiro que desaprovava a prática: “Nós não podemos nos envolver nesse tipo de coisa, ou todos nós seremos alvo”. Mas os EUA estavam certamente envolvidos nesse tipo de coisa nos primeiros anos da Guerra Fria.

Kim Jong-nam (à esq), meio-irmão do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un (à dir): norte-coreanos também gostam de usar veneno, e esfregaram VX, um agente nervoso, no rosto de Nam, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017 Foto: Shizuo Kambayashi e Wong Maye / AP

Revelações dos esforços secretos de Washington para assassinar líderes como o cubano Fidel Castro (sem sucesso) e o dominicano Rafael Trujillo (com sucesso) provocaram retaliações. Em 1976, o então presidente americano, Gerald Ford, emitiu uma ordem executiva declarando que nenhum membro do governo dos EUA “deve se empenhar ou conspirar para se empenhar em assassinatos”.

Assassinatos no exterior ainda continuam comuns. Nestes dias, afirma Luca Trenta, da Universidade Swansea, em Gales, autocracias usam ações secretas para obter negação plausível — ou com frequência implausível. Mas democracias como os EUA buscam envolver com um véu de legalidade plausível os “assassinatos seletivos”, particularmente quando matam suspeitos de terrorismo.

A Carta da ONU institui que todos os membros “se abstenham em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Ao mesmo tempo, contudo, reconhece “o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva no caso de um ataque armado”.

Advogados internacionais especialistas em direitos humanos adotam uma visão restritiva. Em tempos de paz, assassinatos e homicídios seletivos são ilegais. Em tempo de guerra, essas operações podem ser permissíveis se estiverem de acordo com as leis da guerra. A Ucrânia mira comandantes graduados russos da mesma forma que os Aliados em 1943 derrubaram um avião que transportava o almirante japonês Yamamoto Isoroku sobre as Ilhas Salomão.

Imagem de satélite mostra ataque a base russa em Sebastopol; segundo a Ucrânia, ofensiva teria matado comandante no Mar Negro, que apareceu depois em vídeo  Foto: Planet Labs /AP

O que dizer do terrorismo internacional, que parece se situar num campo entre a guerra e o policiamento comum? Mary Ellen O’Connell, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, argumenta que “não há área cinzenta”. Sob o direito internacional, afirma ela, países devem lidar com o terrorismo por meio de ferramentas policiais, incluindo cooperações internacionais e extradições; ações letais constituem “assassinatos extrajudiciais”.

Mas os EUA, em particular, têm buscado maior liberdade de ação. Uma via tem sido qualificar soberania. A ação militar, argumentam os americanos, é permissível onde um Estado “não pretende ou não tem capacidade” de evitar atos de terrorismo. Eles também designaram em determinadas ocasiões territórios no exterior como “áreas de hostilidades ativas”, onde Forças Armadas podem operar mais livremente.

Outra rota tem sido expandir o direito à autodefesa. Um passo é declarar que isso inclui responder a ataques de atores não estatais tanto quanto de Estados. O segundo é asseverar um direito à “autodefesa antecipatória”, permitindo a um país usar a força para impedir uma ameaça de ataque “iminente”. A definição aceita mais amplamente é que a ameaça deveria ser “imediata, avassaladora e não permitir outra escolha de meios nem tempo para deliberação”. Mas isto também tem sido distendido.

Em 2001, o ex-presidente George W. Bush foi além e começou a adotar ideias de antecipação e prevenção para justificar o uso da força mesmo antes das ameaças estarem “completamente formadas”. O governo de Barack Obama também redefiniu o significado de “iminente”. Seu procurador-geral, Eric Holder, afirmou que o termo tinha de considerar não apenas a proximidade da ameaça, mas também a “janela de oportunidade para agir”. Grande parte desse pensamento é emprestado de Israel, cuja Suprema Corte decidiu em 2006 que, no caso de terroristas, “pausas entre hostilidades não passam de preparações para a hostilidade seguinte”.

O exemplo dos EUA encorajou afrouxamentos similares no Reino Unido, na Austrália e na França, afirma Trenta. Mas para a professora O’Connell, essas narrativas e atitudes evidenciam um Ocidente que confere a si mesmo direitos que não aplica sobre os demais, “uma ordem com base em regras em violação ao direito internacional”.

Ativistas queimam bandeira da Índia e cartaz do primeiro-ministro Narendra Modi em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Cole Burston/AFP

Instintos assassinos

A Índia bem poderia argumentar — como os jornais amigos do governo — que o assassinato de Nijjar enquadra-se nas noções de contraterrorismo do Ocidente. O separatismo sique ocasionou um derramamento de sangue no passado que culminou no assassinato, em 1984, da primeira-ministra Indira Gandhi, e no atentado a bomba que derrubou um avião comercial da Air India que voava de Montreal a Londres.

Apesar de ter diminuído, a violência sique poderia se ativar novamente. A Índia afirma que Nijjar era terrorista e oferecia recompensa por sua captura; seus apoiadores afirmam que o ativista era pacifista. Na visão da Índia, a recusa do Ocidente em ajudar a conter os separatistas siques representa uma ameaça. O governo indiano, porém, prefere afirmar que não tem nada a ver com a morte de Nijjar. Quanto ao policiamento, a cooperação fica cada vez mais difícil à medida que a Índia desgasta liberdades democráticas.

Desenvolver um braço longo para operações secretas não é fácil, requer recursos e conhecimento para rastrear alvos, organizar os assassinatos e evitar prisões. Os espiões indianos podem pensar que estão emulando agentes americanos e israelenses enquanto defensores necessariamente brutos da democracia.

Alguns falam até de uma “israelificação” do serviço de inteligência indiano, o Research and Analysis Wing (RAW). Mas se for visto como um organismo que passou de mitigar ameaças claras de segurança a assassinar rivais políticos, o RAW se tornará domesticamente o rosto público e sombrio da repressão do governo, da mesma forma que espiões russos ou sauditas. Assassinatos podem alertar o mundo sobre a brutalidade dos regimes que os ordenam. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

O assassinato de Hardeep Singh Nijjar, um ativista sique separatista que foi morto a tiros no Canadá em junho, tem causado discussões explosivas entre Canadá e Índia. Também evidenciou uma faceta incendiária da nova desordem mundial: os assassinatos. Matar dissidentes e terroristas — e figuras políticas ou militares — é tão velho quanto a própria política, mas a incidência dessas mortes pode estar aumentando.

A Ucrânia mira invasores e colaboradores; a Rússia tentou assassinar o presidente ucraniano. Em 25 de setembro, a Ucrânia afirmou ter matado o comandante da Frota Russa no Mar Negro, mas ao que tudo indica ele apareceu num vídeo no dia seguinte.

Além da guerra na Europa, um novo conjunto de potências em ascensão, incluindo Índia e Arábia Saudita, está projetando força no exterior. Elas se ressentem com o que consideram uma visão ocidental de dois pesos e duas medidas em relação a assassinatos praticados por Estados. Novas tecnologias facilitam mais do que nunca a governos atacar seus inimigos com precisão, mesmo a enormes distâncias.

Cartazes trazem acusações contra Índia e pedem o fim das execuções extrajudiciais em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Narinder Nanu/AFP

Mas mesmo enquanto fica mais fácil assassinar e talvez os assassinatos fiquem mais frequentes o mundo ainda não resolveu como responder. Basta olhar para a resposta do Ocidente a assassinatos recentes praticados por Estados. O assassinato praticado pela Rússia do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, em 2006, provocou indignação e ocasionou sanções.

Após o horripilante homicídio, em 2018, em Istambul, de Jamal Khashoggi, um jornalista saudita exilado que vivia nos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como pária. Mas no ano passado ele cumprimentou com soquinho Muhammad bin Salman, o príncipe-herdeiro saudita e líder de facto de seu país, e vem buscando persuadi-lo a fazer paz com Israel.

Enquanto isso, a Índia nega envolvimento na morte de Nijjar e poderá evitar qualquer consequência séria relacionada ao caso. O país mais populoso do mundo é importante para o Ocidente tanto como parceiro econômico quanto como contrapeso geopolítico à China. Essas inconsistências refletem um antigo labirinto moral e legal sobre assassinatos promovidos por Estados.

A Bíblia pode exaltar o israelita Ehud por matar Eglon, o opressivo e “gordíssimo” rei moabita, mas também comanda obediência à autoridade, “Pois governantes não são terror para as boas obras, mas para o mal”. O homicídio de uma pessoa proeminente por motivação política sem processo legal carrega a conotação da perfídia. Dante colocou os assassinos de Júlio César no círculo mais profundo do inferno, junto com Judas, com seus corpos sendo roídos por Satã.

Mas Estados matam inimigos proeminentes no exterior por diferentes razões e com métodos variados. Um artigo de 2006 de Warner Schilling e Jonathan Schilling lista 14 objetivos possíveis, da vingança ao enfraquecimento de um inimigo ou a destruição de um Estado rival.

É difícil obter dados confiáveis sobre os padrões dos assassinatos e suas causas em razão dos problemas na identificação dos casos e dos culpados. Cerca de 298 tentativas de assassinato de líderes nacionais foram registradas entre 1875 e 2004, de acordo com um artigo de Benjamin Jones e Benjamin Olken publicado no American Economic Journal em 2009. Desde 1950, constatam eles, um líder nacional foi assassinado em aproximadamente dois a cada três anos.

Hatice Cengiz (na tela), noiva do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi, discursa em evento em homenagem a Khashoggi, que morreu dentro do Consulado Saudita em Istambul em outubro de 2018  Foto: J. Scott Applewhite/AP

Guerra por outros meios

Para Rory Cormac, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, a morte a tiros no Canadá é evidência do enfraquecimento das normas internacionais contra o assassinato: “A cada homicídio em alto nível o tabu se erode um pouco”, afirma ele. Cormac aponta duas razões: os regimes autoritários “estão perdendo o pudor” de desafiar as normas liberais; e democracias apelarem para assassinatos seletivos “encorajou outros Estados”. Outros fatores, como facilidade para viajar e drones que tornam possível vigilância e ataques a longa distância, provavelmente pioraram o problema. Ao longo dos anos, os EUA mataram milhares de suspeitos de jihadismo — e também muitos civis — com drones.

“Assassinatos nunca mudaram a história do mundo”, notou o político britânico Benjamin Disraeli após o assassinato de Abraham Lincoln. Mas muitos homicídios podem surtir impactos dramáticos. O projétil disparado por um nacionalista sérvio que matou o arquiduque Franz Ferdinand em junho de 1914 detonou a 1.ª Guerra.

E assassinatos arriscam retaliações: Mike Pompeo e John Bolton, respectivamente ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, supostamente foram alvos de uma conspiração de assassinato do Irã. O serviço de inteligência doméstica do Reino Unido, MI5, afirma que o Irã possui “ambições de sequestrar ou até matar britânicos ou indivíduos radicados no Reino Unido percebidos como inimigos do regime”.

Segredos e mistérios

Quando se trata de métodos, a Rússia prefere o veneno. Seus agentes assassinaram Litvinenko com polônio radioativo. Eles quase mataram outro ex-espião no Reino Unido, Sergei Skripal, e sua filha Yulia com novichok, um agente nervoso, em 2018. A Coreia do Norte também gosta de veneno — matou Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, esfregando VX, outro agente nervoso, em seu rosto, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017.

Os EUA preferem bombas e tiros. Suas forças especiais invadiram uma casa fortificada no Paquistão e assassinaram o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011. Um drone americano matou seu sucessor, Ayman al-Zawahiri, em Cabul, em 2022. Outro drone eliminou Qassem Suleimani, o comandante da Força Quds, a unidade de operações no exterior do Irã, no aeroporto de Bagdá, em 2020.

Isso tudo apesar do fato de que, em 1961, o presidente John Kennedy (ele próprio assassinado posteriormente) disse a um conselheiro que desaprovava a prática: “Nós não podemos nos envolver nesse tipo de coisa, ou todos nós seremos alvo”. Mas os EUA estavam certamente envolvidos nesse tipo de coisa nos primeiros anos da Guerra Fria.

Kim Jong-nam (à esq), meio-irmão do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un (à dir): norte-coreanos também gostam de usar veneno, e esfregaram VX, um agente nervoso, no rosto de Nam, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017 Foto: Shizuo Kambayashi e Wong Maye / AP

Revelações dos esforços secretos de Washington para assassinar líderes como o cubano Fidel Castro (sem sucesso) e o dominicano Rafael Trujillo (com sucesso) provocaram retaliações. Em 1976, o então presidente americano, Gerald Ford, emitiu uma ordem executiva declarando que nenhum membro do governo dos EUA “deve se empenhar ou conspirar para se empenhar em assassinatos”.

Assassinatos no exterior ainda continuam comuns. Nestes dias, afirma Luca Trenta, da Universidade Swansea, em Gales, autocracias usam ações secretas para obter negação plausível — ou com frequência implausível. Mas democracias como os EUA buscam envolver com um véu de legalidade plausível os “assassinatos seletivos”, particularmente quando matam suspeitos de terrorismo.

A Carta da ONU institui que todos os membros “se abstenham em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Ao mesmo tempo, contudo, reconhece “o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva no caso de um ataque armado”.

Advogados internacionais especialistas em direitos humanos adotam uma visão restritiva. Em tempos de paz, assassinatos e homicídios seletivos são ilegais. Em tempo de guerra, essas operações podem ser permissíveis se estiverem de acordo com as leis da guerra. A Ucrânia mira comandantes graduados russos da mesma forma que os Aliados em 1943 derrubaram um avião que transportava o almirante japonês Yamamoto Isoroku sobre as Ilhas Salomão.

Imagem de satélite mostra ataque a base russa em Sebastopol; segundo a Ucrânia, ofensiva teria matado comandante no Mar Negro, que apareceu depois em vídeo  Foto: Planet Labs /AP

O que dizer do terrorismo internacional, que parece se situar num campo entre a guerra e o policiamento comum? Mary Ellen O’Connell, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, argumenta que “não há área cinzenta”. Sob o direito internacional, afirma ela, países devem lidar com o terrorismo por meio de ferramentas policiais, incluindo cooperações internacionais e extradições; ações letais constituem “assassinatos extrajudiciais”.

Mas os EUA, em particular, têm buscado maior liberdade de ação. Uma via tem sido qualificar soberania. A ação militar, argumentam os americanos, é permissível onde um Estado “não pretende ou não tem capacidade” de evitar atos de terrorismo. Eles também designaram em determinadas ocasiões territórios no exterior como “áreas de hostilidades ativas”, onde Forças Armadas podem operar mais livremente.

Outra rota tem sido expandir o direito à autodefesa. Um passo é declarar que isso inclui responder a ataques de atores não estatais tanto quanto de Estados. O segundo é asseverar um direito à “autodefesa antecipatória”, permitindo a um país usar a força para impedir uma ameaça de ataque “iminente”. A definição aceita mais amplamente é que a ameaça deveria ser “imediata, avassaladora e não permitir outra escolha de meios nem tempo para deliberação”. Mas isto também tem sido distendido.

Em 2001, o ex-presidente George W. Bush foi além e começou a adotar ideias de antecipação e prevenção para justificar o uso da força mesmo antes das ameaças estarem “completamente formadas”. O governo de Barack Obama também redefiniu o significado de “iminente”. Seu procurador-geral, Eric Holder, afirmou que o termo tinha de considerar não apenas a proximidade da ameaça, mas também a “janela de oportunidade para agir”. Grande parte desse pensamento é emprestado de Israel, cuja Suprema Corte decidiu em 2006 que, no caso de terroristas, “pausas entre hostilidades não passam de preparações para a hostilidade seguinte”.

O exemplo dos EUA encorajou afrouxamentos similares no Reino Unido, na Austrália e na França, afirma Trenta. Mas para a professora O’Connell, essas narrativas e atitudes evidenciam um Ocidente que confere a si mesmo direitos que não aplica sobre os demais, “uma ordem com base em regras em violação ao direito internacional”.

Ativistas queimam bandeira da Índia e cartaz do primeiro-ministro Narendra Modi em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Cole Burston/AFP

Instintos assassinos

A Índia bem poderia argumentar — como os jornais amigos do governo — que o assassinato de Nijjar enquadra-se nas noções de contraterrorismo do Ocidente. O separatismo sique ocasionou um derramamento de sangue no passado que culminou no assassinato, em 1984, da primeira-ministra Indira Gandhi, e no atentado a bomba que derrubou um avião comercial da Air India que voava de Montreal a Londres.

Apesar de ter diminuído, a violência sique poderia se ativar novamente. A Índia afirma que Nijjar era terrorista e oferecia recompensa por sua captura; seus apoiadores afirmam que o ativista era pacifista. Na visão da Índia, a recusa do Ocidente em ajudar a conter os separatistas siques representa uma ameaça. O governo indiano, porém, prefere afirmar que não tem nada a ver com a morte de Nijjar. Quanto ao policiamento, a cooperação fica cada vez mais difícil à medida que a Índia desgasta liberdades democráticas.

Desenvolver um braço longo para operações secretas não é fácil, requer recursos e conhecimento para rastrear alvos, organizar os assassinatos e evitar prisões. Os espiões indianos podem pensar que estão emulando agentes americanos e israelenses enquanto defensores necessariamente brutos da democracia.

Alguns falam até de uma “israelificação” do serviço de inteligência indiano, o Research and Analysis Wing (RAW). Mas se for visto como um organismo que passou de mitigar ameaças claras de segurança a assassinar rivais políticos, o RAW se tornará domesticamente o rosto público e sombrio da repressão do governo, da mesma forma que espiões russos ou sauditas. Assassinatos podem alertar o mundo sobre a brutalidade dos regimes que os ordenam. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

O assassinato de Hardeep Singh Nijjar, um ativista sique separatista que foi morto a tiros no Canadá em junho, tem causado discussões explosivas entre Canadá e Índia. Também evidenciou uma faceta incendiária da nova desordem mundial: os assassinatos. Matar dissidentes e terroristas — e figuras políticas ou militares — é tão velho quanto a própria política, mas a incidência dessas mortes pode estar aumentando.

A Ucrânia mira invasores e colaboradores; a Rússia tentou assassinar o presidente ucraniano. Em 25 de setembro, a Ucrânia afirmou ter matado o comandante da Frota Russa no Mar Negro, mas ao que tudo indica ele apareceu num vídeo no dia seguinte.

Além da guerra na Europa, um novo conjunto de potências em ascensão, incluindo Índia e Arábia Saudita, está projetando força no exterior. Elas se ressentem com o que consideram uma visão ocidental de dois pesos e duas medidas em relação a assassinatos praticados por Estados. Novas tecnologias facilitam mais do que nunca a governos atacar seus inimigos com precisão, mesmo a enormes distâncias.

Cartazes trazem acusações contra Índia e pedem o fim das execuções extrajudiciais em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Narinder Nanu/AFP

Mas mesmo enquanto fica mais fácil assassinar e talvez os assassinatos fiquem mais frequentes o mundo ainda não resolveu como responder. Basta olhar para a resposta do Ocidente a assassinatos recentes praticados por Estados. O assassinato praticado pela Rússia do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, em 2006, provocou indignação e ocasionou sanções.

Após o horripilante homicídio, em 2018, em Istambul, de Jamal Khashoggi, um jornalista saudita exilado que vivia nos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como pária. Mas no ano passado ele cumprimentou com soquinho Muhammad bin Salman, o príncipe-herdeiro saudita e líder de facto de seu país, e vem buscando persuadi-lo a fazer paz com Israel.

Enquanto isso, a Índia nega envolvimento na morte de Nijjar e poderá evitar qualquer consequência séria relacionada ao caso. O país mais populoso do mundo é importante para o Ocidente tanto como parceiro econômico quanto como contrapeso geopolítico à China. Essas inconsistências refletem um antigo labirinto moral e legal sobre assassinatos promovidos por Estados.

A Bíblia pode exaltar o israelita Ehud por matar Eglon, o opressivo e “gordíssimo” rei moabita, mas também comanda obediência à autoridade, “Pois governantes não são terror para as boas obras, mas para o mal”. O homicídio de uma pessoa proeminente por motivação política sem processo legal carrega a conotação da perfídia. Dante colocou os assassinos de Júlio César no círculo mais profundo do inferno, junto com Judas, com seus corpos sendo roídos por Satã.

Mas Estados matam inimigos proeminentes no exterior por diferentes razões e com métodos variados. Um artigo de 2006 de Warner Schilling e Jonathan Schilling lista 14 objetivos possíveis, da vingança ao enfraquecimento de um inimigo ou a destruição de um Estado rival.

É difícil obter dados confiáveis sobre os padrões dos assassinatos e suas causas em razão dos problemas na identificação dos casos e dos culpados. Cerca de 298 tentativas de assassinato de líderes nacionais foram registradas entre 1875 e 2004, de acordo com um artigo de Benjamin Jones e Benjamin Olken publicado no American Economic Journal em 2009. Desde 1950, constatam eles, um líder nacional foi assassinado em aproximadamente dois a cada três anos.

Hatice Cengiz (na tela), noiva do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi, discursa em evento em homenagem a Khashoggi, que morreu dentro do Consulado Saudita em Istambul em outubro de 2018  Foto: J. Scott Applewhite/AP

Guerra por outros meios

Para Rory Cormac, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, a morte a tiros no Canadá é evidência do enfraquecimento das normas internacionais contra o assassinato: “A cada homicídio em alto nível o tabu se erode um pouco”, afirma ele. Cormac aponta duas razões: os regimes autoritários “estão perdendo o pudor” de desafiar as normas liberais; e democracias apelarem para assassinatos seletivos “encorajou outros Estados”. Outros fatores, como facilidade para viajar e drones que tornam possível vigilância e ataques a longa distância, provavelmente pioraram o problema. Ao longo dos anos, os EUA mataram milhares de suspeitos de jihadismo — e também muitos civis — com drones.

“Assassinatos nunca mudaram a história do mundo”, notou o político britânico Benjamin Disraeli após o assassinato de Abraham Lincoln. Mas muitos homicídios podem surtir impactos dramáticos. O projétil disparado por um nacionalista sérvio que matou o arquiduque Franz Ferdinand em junho de 1914 detonou a 1.ª Guerra.

E assassinatos arriscam retaliações: Mike Pompeo e John Bolton, respectivamente ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, supostamente foram alvos de uma conspiração de assassinato do Irã. O serviço de inteligência doméstica do Reino Unido, MI5, afirma que o Irã possui “ambições de sequestrar ou até matar britânicos ou indivíduos radicados no Reino Unido percebidos como inimigos do regime”.

Segredos e mistérios

Quando se trata de métodos, a Rússia prefere o veneno. Seus agentes assassinaram Litvinenko com polônio radioativo. Eles quase mataram outro ex-espião no Reino Unido, Sergei Skripal, e sua filha Yulia com novichok, um agente nervoso, em 2018. A Coreia do Norte também gosta de veneno — matou Kim Jong-nam, o meio-irmão do líder do país, Kim Jong-un, esfregando VX, outro agente nervoso, em seu rosto, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017.

Os EUA preferem bombas e tiros. Suas forças especiais invadiram uma casa fortificada no Paquistão e assassinaram o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, em 2011. Um drone americano matou seu sucessor, Ayman al-Zawahiri, em Cabul, em 2022. Outro drone eliminou Qassem Suleimani, o comandante da Força Quds, a unidade de operações no exterior do Irã, no aeroporto de Bagdá, em 2020.

Isso tudo apesar do fato de que, em 1961, o presidente John Kennedy (ele próprio assassinado posteriormente) disse a um conselheiro que desaprovava a prática: “Nós não podemos nos envolver nesse tipo de coisa, ou todos nós seremos alvo”. Mas os EUA estavam certamente envolvidos nesse tipo de coisa nos primeiros anos da Guerra Fria.

Kim Jong-nam (à esq), meio-irmão do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un (à dir): norte-coreanos também gostam de usar veneno, e esfregaram VX, um agente nervoso, no rosto de Nam, no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur, em 2017 Foto: Shizuo Kambayashi e Wong Maye / AP

Revelações dos esforços secretos de Washington para assassinar líderes como o cubano Fidel Castro (sem sucesso) e o dominicano Rafael Trujillo (com sucesso) provocaram retaliações. Em 1976, o então presidente americano, Gerald Ford, emitiu uma ordem executiva declarando que nenhum membro do governo dos EUA “deve se empenhar ou conspirar para se empenhar em assassinatos”.

Assassinatos no exterior ainda continuam comuns. Nestes dias, afirma Luca Trenta, da Universidade Swansea, em Gales, autocracias usam ações secretas para obter negação plausível — ou com frequência implausível. Mas democracias como os EUA buscam envolver com um véu de legalidade plausível os “assassinatos seletivos”, particularmente quando matam suspeitos de terrorismo.

A Carta da ONU institui que todos os membros “se abstenham em suas relações internacionais da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Ao mesmo tempo, contudo, reconhece “o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva no caso de um ataque armado”.

Advogados internacionais especialistas em direitos humanos adotam uma visão restritiva. Em tempos de paz, assassinatos e homicídios seletivos são ilegais. Em tempo de guerra, essas operações podem ser permissíveis se estiverem de acordo com as leis da guerra. A Ucrânia mira comandantes graduados russos da mesma forma que os Aliados em 1943 derrubaram um avião que transportava o almirante japonês Yamamoto Isoroku sobre as Ilhas Salomão.

Imagem de satélite mostra ataque a base russa em Sebastopol; segundo a Ucrânia, ofensiva teria matado comandante no Mar Negro, que apareceu depois em vídeo  Foto: Planet Labs /AP

O que dizer do terrorismo internacional, que parece se situar num campo entre a guerra e o policiamento comum? Mary Ellen O’Connell, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, argumenta que “não há área cinzenta”. Sob o direito internacional, afirma ela, países devem lidar com o terrorismo por meio de ferramentas policiais, incluindo cooperações internacionais e extradições; ações letais constituem “assassinatos extrajudiciais”.

Mas os EUA, em particular, têm buscado maior liberdade de ação. Uma via tem sido qualificar soberania. A ação militar, argumentam os americanos, é permissível onde um Estado “não pretende ou não tem capacidade” de evitar atos de terrorismo. Eles também designaram em determinadas ocasiões territórios no exterior como “áreas de hostilidades ativas”, onde Forças Armadas podem operar mais livremente.

Outra rota tem sido expandir o direito à autodefesa. Um passo é declarar que isso inclui responder a ataques de atores não estatais tanto quanto de Estados. O segundo é asseverar um direito à “autodefesa antecipatória”, permitindo a um país usar a força para impedir uma ameaça de ataque “iminente”. A definição aceita mais amplamente é que a ameaça deveria ser “imediata, avassaladora e não permitir outra escolha de meios nem tempo para deliberação”. Mas isto também tem sido distendido.

Em 2001, o ex-presidente George W. Bush foi além e começou a adotar ideias de antecipação e prevenção para justificar o uso da força mesmo antes das ameaças estarem “completamente formadas”. O governo de Barack Obama também redefiniu o significado de “iminente”. Seu procurador-geral, Eric Holder, afirmou que o termo tinha de considerar não apenas a proximidade da ameaça, mas também a “janela de oportunidade para agir”. Grande parte desse pensamento é emprestado de Israel, cuja Suprema Corte decidiu em 2006 que, no caso de terroristas, “pausas entre hostilidades não passam de preparações para a hostilidade seguinte”.

O exemplo dos EUA encorajou afrouxamentos similares no Reino Unido, na Austrália e na França, afirma Trenta. Mas para a professora O’Connell, essas narrativas e atitudes evidenciam um Ocidente que confere a si mesmo direitos que não aplica sobre os demais, “uma ordem com base em regras em violação ao direito internacional”.

Ativistas queimam bandeira da Índia e cartaz do primeiro-ministro Narendra Modi em protesto após a morte de Hardeep Singh Nijjar Foto: Cole Burston/AFP

Instintos assassinos

A Índia bem poderia argumentar — como os jornais amigos do governo — que o assassinato de Nijjar enquadra-se nas noções de contraterrorismo do Ocidente. O separatismo sique ocasionou um derramamento de sangue no passado que culminou no assassinato, em 1984, da primeira-ministra Indira Gandhi, e no atentado a bomba que derrubou um avião comercial da Air India que voava de Montreal a Londres.

Apesar de ter diminuído, a violência sique poderia se ativar novamente. A Índia afirma que Nijjar era terrorista e oferecia recompensa por sua captura; seus apoiadores afirmam que o ativista era pacifista. Na visão da Índia, a recusa do Ocidente em ajudar a conter os separatistas siques representa uma ameaça. O governo indiano, porém, prefere afirmar que não tem nada a ver com a morte de Nijjar. Quanto ao policiamento, a cooperação fica cada vez mais difícil à medida que a Índia desgasta liberdades democráticas.

Desenvolver um braço longo para operações secretas não é fácil, requer recursos e conhecimento para rastrear alvos, organizar os assassinatos e evitar prisões. Os espiões indianos podem pensar que estão emulando agentes americanos e israelenses enquanto defensores necessariamente brutos da democracia.

Alguns falam até de uma “israelificação” do serviço de inteligência indiano, o Research and Analysis Wing (RAW). Mas se for visto como um organismo que passou de mitigar ameaças claras de segurança a assassinar rivais políticos, o RAW se tornará domesticamente o rosto público e sombrio da repressão do governo, da mesma forma que espiões russos ou sauditas. Assassinatos podem alertar o mundo sobre a brutalidade dos regimes que os ordenam. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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