THE NEW YORK TIMES - Israel ordenou que mais de 1 milhão de pessoas abandonassem o norte de Gaza, presumivelmente para se prepararem para uma iminente ofensiva terrestre. Parece que seus estrategistas militares estão planejando o despovoamento e a reocupação de pelo menos parte de uma área onde vivem cerca de 2,3 milhões de pessoas — quase metade das quais crianças — e a maioria descendente de pessoas expulsas de suas casas antes e durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948. Precisamos compreender que se trata de seres humanos que correm grave perigo. Não são apenas números.
Vejamos o que disseram alguns integrantes do establishment de defesa israelense.
“O Estado de Israel não tem outra escolha senão transformar Gaza em um lugar onde seja temporária ou permanentemente impossível viver”, escreveu o major-general reservista Giora Eiland no Yedioth Ahronoth, um jornal israelense. “Criar uma grave crise humanitária em Gaza é um meio necessário para atingir o objetivo.” Ele acrescentou: “Gaza se tornará um lugar onde nenhum ser humano poderá existir”.
O ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse: “Estamos lutando contra animais e agindo de acordo”. O major-general Ghassan Alian declarou que, em Gaza, “não haverá eletricidade nem água”. “Haverá apenas destruição. Vocês queriam inferno, vocês vão ter inferno.”
O despovoamento de Gaza seria manifestamente desumano e uma violação do direito internacional. O presidente Biden e seus conselheiros deveriam se perguntar como pode ser do interesse nacional dos Estados Unidos permitir mais uma expulsão em massa de palestinos.
Tal cataclisma seria uma segunda nakba, ou catástrofe, como é chamado o deslocamento de 1948. Os Estados Unidos seriam, dessa maneira, um parceiro de Israel na criação de um futuro feito somente de morte, destruição e desapropriação periódicas para os palestinos, além de subjugação e expulsão permanentes.
Desde 2006 até o recente cerco, as forças israelenses atacaram Gaza seis vezes e mataram mais de 4 mil pessoas. Segundo a B’Tselem, órgão de vigilância dos direitos humanos com sede em Jerusalém, esse número soma 405 em 2006, 1.391 em 2008 e 2009, 167 em 2012, 2.203 em 2014, 232 em 2021 e 33 em 2022. Todas as vezes, o número de vítimas civis palestinas superou o de combatentes.
Embora Israel tenha deixado Gaza para o controle do Hamas, a região ainda está sob ocupação militar israelense de jure, ao abrigo do direito internacional, de acordo com as Nações Unidas e alguns grupos humanitários. É o que acontece também, na prática, dado que Israel pode cortar o acesso a eletricidade, água, combustível e alimentos em grande parte do território.
O governo Biden ofereceu o que é efetivamente apoio incondicional a Israel no ataque a Gaza, citando os assassinatos de aproximadamente 900 civis israelenses e centenas de soldados e policiais durante o ataque terrorista do Hamas, além do sequestro de cerca de 150 pessoas.
As mortes palestinas em Gaza e na Cisjordânia até sábado totalizaram pelo menos 2.228, de acordo com o Ministério da Saúde palestino em Gaza. A maioria dos mortos de ambos os lados são civis, incluindo pelo menos 724 crianças em Gaza, segundo a ONG Defense for Children International. Vale a pena notar que, antes do ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro, pelo menos 200 palestinos foram mortos este ano na Cisjordânia, bem como 30 israelenses.
Sem qualquer surpresa, a perda de vidas palestinas teve pouco impacto na política dos Estados Unidos: para alguns, parece que nem todas as vidas de civis inocentes são iguais. Ao mesmo tempo, os diplomatas americanos aparentemente vêm pedindo que o Egito acolha os palestinos expulsos de Gaza por Israel.
Estes ecos da nakba de 1948 talvez sejam só o começo. Se Washington encorajar Israel a seguir este caminho, poderá desencadear uma conflagração regional muito mais vasta. A fuga ou expulsão de pelo menos 250 mil palestinos de Haifa, Jaffa, Tiberíades, Beisan e outras localidades antes da declaração de independência israelense em maio daquele ano ajudaram a desencadear a primeira guerra entre os estados árabes e Israel.
A guerra e a subsequente expulsão ou fuga de ainda mais palestinos no final de 1948 — um total de cerca de 750 mil pessoas — ajudaram a precipitar décadas de conflitos recorrentes.
A última vez que um presidente e seus conselheiros permitiram que a indignação diante de uma perda inimaginável conduzisse a política foi depois do 11 de Setembro, quando eles desencadearam duas das guerras mais desastrosas da história americana, devastando dois países, resultando na morte de mais de meio milhão de pessoas e levando muita gente do mundo todo a recriminar os Estados Unidos.
Washington está diante de uma decisão igualmente fatídica sobre quais ações israelenses tolerar em Gaza — decisão que pode dar aos Estados Unidos plena participação em tudo o que se seguir, quer Biden e sua equipe percebam ou não.
Já passou da hora de os Estados Unidos deixarem de repetir palavras vazias sobre uma solução de dois Estados, ao mesmo tempo em que fornecem dinheiro, armas e apoio diplomático para ações israelenses calculadas e sistemáticas que impossibilitaram essa solução — como o país vem fazendo há cerca de meio século.
Já passou da hora de os Estados Unidos deixarem de concordar timidamente com o uso da violência por parte de Israel e de mais violência como resposta aos palestinos que vivem há 56 anos sob uma ocupação militar sufocante.
Já passou da hora de aceitar que os esforços americanos para monopolizar um processo de paz tragicamente mal denominado ajudaram Israel a consolidar o que vários grupos internacionais de direitos humanos definiram como um sistema de apartheid que só produziu mais guerra e sofrimento.
A única solução possível é aquela que acabe com a opressão de um povo por outro e garanta direitos e segurança absolutamente iguais para ambos os povos./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
*Rashid Khalidi é professor de estudos árabes modernos na Universidade de Columbia e autor de The Hundred Years’ War on Palestine