Ex-soldado relata guerras em Gaza: ‘o Hamas está misturado à vida civil, essa é a dificuldade’


Brasileiro que atuou em incursões na Faixa de Gaza relata experiência em conflitos anteriores

Por Jéssica Petrovna
Atualização:
Foto: Gabriel Schorr / Reprodução / Redes sociais
Entrevista comGabriel SchorrEx-soldado Israelense

Na Faixa de Gaza, os túneis dos terroristas do Hamas passam por baixo dos edifícios onde vivem dois milhões de pessoas, hospitais, escolas e mesquitas e essa separação entre os combates e a vida civil é a principal dificuldade para os militares que avançam sobre o território. Quem afirma isso alguém que já lutou em guerras anteriores no enclave, o ex-soldado Gabriel Schorr, que relatou ao Estadão a sua experiência no Exército israelense.

Nascido no Brasil, ele migrou para Israel, e cumpriu o serviço militar no início dos anos 2000, quando a região enfrentava a escalada da violência, que ganhou o nome de Segunda Intifada. Na época, o soldado enfrentou os homens-bomba, sua primeira missão antes das incursões que estavam por vir. Batalhas terrestres como as que ocorrem neste momento, na Faixa de Gaza.

Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não.

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Leia abaixo a entrevista.

Quando você chegou ao exército de Israel?

Eu fui morar em Israel em 1999, entrei no Exército em 2001 no corpo de paraquedistas, fiquei de 2001 a 2004 no serviço militar obrigatório e depois começa o que se chama serviço como reservista até os 40 anos. Eu tenho 43, ou seja, me livrei há três anos. Quando comecei era a época dos atentados suicidas do Hamas com homens-bomba. A minha função era lutar contra essa onda de atentados que ficou conhecida como Segunda Intifada.

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Bombardeios israelenses atingem a Faixa de Gaza. Foto: AP / Abed Khaled

Como eram essas ações para frear os atentados?

No começo era um trabalho mais defensivo, com barreiras para evitar que eles fossem até o território israelense. Até que na Pascoa, a Pessach, teve um grande ataque (16 pessoas morreram) e aquilo foi a gota d’água. O Exército decidiu fazer uma incursão, parecida com a que vemos agora, mas muito menor. Foi uma incursão dentro das cidades palestinas para caçar o Hamas porque, até então, estávamos fora, em ações defensivas.

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A minha primeira guerra ou operação militar foi em maio de 2002, na cidade de Nablus (Cisjordânia). Era casa por casa, para buscar membros do Hamas para prender o jovem que amanhã vai usar o colete com bombas, a pessoa que faz o colete com bombas... A infraestrutura contraterrorismo de Israel começou a evitar o atentado antes que ele começasse e não só frear o homem bomba na última hora. A gente aprendeu na marra que, depois que coloca o colete com bomba não tem volta. Se a barreira estiver montada, mata os soldados. Se não tiver barreira, mata os civis lá na frente. A ideia era tentar prendê-lo antes disso.

O serviço secreto passava para nós, os soldados, as informações sobre aqueles jovens que se voluntariaram para se explodir, se tornar um mártir como eles chamam, para evitar que o atentado acontecesse. Isso foi de 2001 a 2004. Depois disso eu foi para a reserva, que é parte do contingente do exército. Os reservistas fazem treinamentos, geralmente no início do ano, para que estejam prontos se necessário e podem ser convocados pelo período de até um mês no ano, não só em casos de guerra.

Quando você foi convocado?

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Como reservista, eu fui convocado na guerra em Gaza, em 2009. Israel saiu de Gaza em 2005 e, a partir daí, o dinheiro que entrava na Faixa de Gaza passou a ser usado em boa parte com os foguetes. Em 2008, “choveu foguete” em Israel, foram mais de 900 naquele ano e naquela época não tinha o sistema de defesa aérea. Então, em janeiro de 2009 nós entramos na primeira incursão na Faixa de Gaza, mas que não tinha como objetivo acabar com o Hamas. O objetivo era reduzir a capacidade do Hamas de lançar foguetes em Israel.

Já naquela época, em 2009, eu cheguei a ver como o Hamas usava o Hospital Al-Shifa como quartel general. Eu lembro de ver os carros do Hamas entrando e saindo do hospital.[...] Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não. Não dá para saber baseado no uniforme ou na arma de fogo. E a gente tentava definir ao máximo como funciona essa separação. Era o primeiro contato de Israel com a Faixa de Gaza (depois que o Hamas assumiu o controle em 2007).

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Essa era a maior dificuldade? Fazer essa diferenciação entre os civis e os terroristas do Hamas?

Sim. Vou te contar uma história. Eu estava em um edifício abandonado, que é onde os soldados dormem em tempos de guerra. Eu estava cuidando de uma das janelas eu vi de longe, caminhando na calçada na nossa direção um menino, que deveria ter no máximo 13 anos. Ele estava entrando em uma zona perto dos tanques, não tinham mais civis ali. Gritamos em árabe para ele parar. Ele se assustou, parou, perguntamos o que ele estava fazendo ali e, neste momento, os soldados foram acordando e um deles gritou em árabe para que ele levantasse a camisa. Ele levantou e estava cheio de bombas. Era um menino de 13 anos que, em tese, não estava armado, não estava uniformizado. Se ele não tivesse sido visto no caminho, ele teria explodido o edifício com os soldados.

Naquela época ainda não tinham os túneis então o mais difícil para mim era entender quem é inocente e quem não é inocente. Falando em primeira pessoa, era a minha maior dificuldade. Na Cisjordânia era muito mais fácil, o terrorismo não narrava a vida cotidiana da Cisjordânia. Na Faixa de Gaza é diferente. As escolas são do Hamas, a prefeitura é do Hamas.

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Outra risco, claro, eram os foguetes que eram disparados também nas nossas bases. O Hamas tinha morteiros de curta distância, o Hamas sempre teve bazucas. Se os soldados estão “dormindo” e não veem o inimigo, eles disparam com uma bazuca dentro do edifício e matam todo mundo lá dentro. Era uma ameaça muito maior do que eu vivi na Cisjordânia, que era minha experiência anterior.

A que você atribui essas diferenças entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza? Ao controle do Hamas?

Sem dúvida. Em qualquer lugar do mundo tem pessoas mais radicais e tem pessoas menos radicais. Dentro do próprio povo palestino os menos radicais são os que assinaram o acordo de paz com Israel liderados por Yasser Arafat, e que decidiram pelo caminho da paz. Nos anos 1990, o fato de Yasser Arafat dá início ao processo de paz com Israel, não foi só no papel. Ele precisava convencer a sua própria população de que valia a pena e era uma população que odiava Israel até o dia anterior, que achava que Israel não era um Estado legítimo e sim Palestina ocupada, que os judeus não são judeus são sionistas colonialistas. E o próprio líder Yasser Arafat entende que Israel é um país soberano que vai ser vizinho.

Na Cisjordânia era mais fácil de ver essa divisão clara entre quem era ou não do Hamas. Os mais velhos não queriam aquele jovem de 16 anos que estava entrando para o Hamas, as pessoas mais velhas, os adultos, queriam trabalhar, estudar, ir para Israel fazer faculdade, viajar pelo mundo. Víamos explicitamente essa divisão entre a população civil e o rebelde, que está influenciado pelo Hamas. Na Faixa de Gaza, não passava um carro do Exército sem que as pessoas reagissem. Do mais jovem ao mais idoso ia jogar pedra ou gritar para avisar ao Hamas. Na Faixa de Gaza, já em 2009, sem nem falar como deve estar agora, veem os soldados como o diabo. É muito mais difícil.

Na minha última incursão, em 2014, estávamos em Khan Younis, e recebemos a informação sobre um edifício, que funcionava como quartel general e eles decidiram explodir, mas precisava que essa informação fosse confirmada por uma equipe terrestre. Nós cercamos, monitoramos esse edifício, inclusive com câmeras térmicas (que apontam a presença de armas) e verificamos que, de fato, havia uma movimentação do Hamas lá dentro. Demos a autorização e eles avisaram que iam lançar a chamada bomba toc toc, que é bomba vazia. O avião joga essa primeira bomba e sai muita gente correndo. Neste momento, não tinha a preocupação que os terroristas saíssem porque o objetivo era atingir o prédio e a tecnologia e as armas que tinham lá dentro. Então tem essa primeira bomba, as pessoas saem correndo e segundos depois deveria vir o segundo avião para destruir o prédio. Nós vimos o avião mas ele deu meia volta. Recebemos a informação do comandante, que o piloto não jogou a bomba porque viu crianças palestinas amarradas no terraço. Eles não podiam derrubar o edifício enquanto as crianças estivessem ali então nós teríamos que entrar. Nós entramos e eu me lembro de chegar no terraço muito assustado porque ali eu estava exposto. Entramos correndo, vimos algo em torno de 10 a 12 crianças, corremos até onde eles estavam abaixados e quando cheguei perto de um deles, vi que eles não estavam amarrados e a criança me olhou com uma cara de ódio, de que eu acabei de estragar o plano dela, o que foi passado pra ela, que eles estão lutando pela causa. Eu me lembro muito dessa cena. Eu olhava com uma cara de bronca porque eu poderia tomar um tiro no terraço e ela me olhava com uma cara de bronca e eu estava salvando a vida dela. Tive que tirar ela na marra enquanto ela batia nas minhas costas. Essa sem dúvida é uma das coisas mais complexas da Faixa de Gaza.

Você nunca vai ouvir de um soldado israelense, treinados como nós somos, que o nosso maior medo é enfrentar os terroristas. Nós somos preparados para isso. O que nós não somos preparados é para uma cena como essa. Como reagir com uma criança, que com certeza não entra na categoria de terrorista, mas que está defendendo túneis e depósitos de armas, sem ter uma arma na mão. Ela é inocente ou ela não é inocente? Se a minha arma cair no chão, ela vai pegar e me dar um tiro? É muito complexo.

Por isso, se pularmos para os dias de hoje, tem tanta ênfase para que as pessoas deixem o norte de Gaza enquanto os soldados estão chegando. Você vê muito bombardeio, mas não vê centenas de cadáveres nos escombros. Tem mortos, sim, sem a menor dúvida, mas a maior parte dos edifícios está vazia.

Então você não confia no número de mais de 10 mil de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde da Faixa de Gaza?

Eu desconfio de forma absoluta do número de mortos. Não digo que não tem mortos, mas desconfio porque não tem um membro 100% neutro lá. Em 2002, estava fazendo a patrulha por causa dos atentados suicidas e recebi a informação que ia chegar uma ambulância da Cruz Vermelha, mas que não podia passar porque tinham terroristas do Hamas lá dentro. Minutos depois para a ambulância e tinham quatro ou cinco terroristas mega armados para entrar dentro de Israel, chegar em um hospital e explodir o hospital. Por isso, eu desconfio dos números e dessas informações, inclusive do [secretário-geral da ONU] António Guterres.

Há mortos? Sim e isso tem a ver com o título da missão. Nós entramos em 2009 para procurar foguetes, não para acabar com o Hamas, que é a missão agora. Aquela criança que eu vi no prédio em 2014, eu não tenho dúvidas que ela seja do Hamas. Até porque a escola é do Hamas, o movimento juvenil é do Hamas. Acho que entre os mortos quase todos eu diria que são do Hamas. A pergunta é se estava com arma na mão ou se estavam só na preparação do Hamas. E vai ter mais mortos se o objetivo for acabar com o Hamas. Claro que não tem que matar inocentes deliberadamente, mas continuamos com a mesma complexidade de lutar e, de 2009 a 2023, passaram-se mais 14 anos de controle total do Hamas. Se antes era difícil, agora deve ser praticamente impossível.

Eu não sou comandante do Estado Maior, mas imagino que a ordem seja “saiam do Norte da Faixa de Gaza” e quem não sair está na linha de fogo. É triste, mas se você ê os vídeos do 7 de outubro, aquelas atrocidades não foram cometidas por pessoas uniformizadas, mas eram terroristas. [...]

Não estamos falando em acabar com todos os palestinos, não é isso. Mas as pessoas precisam sair (do Norte de Gaza) porque para entrar entrar de casa por casa e acabar com o Hamas é preciso que os civis não estejam lá.

Qual a principal diferença do Hamas que você enfrentou em 2009 e 2014 para esse que é capaz de lançar um ataque dessa proporção contra Israel e pegar de surpresa um dos exércitos mais poderosos do mundo?

Nós vemos o Irã, uma máquina de terrorismo avançada que opera internacionalmente. Vejo bastante influência do Hezbollah (grupo radical islâmico que atua no Líbano com patrocínio iraniano). Dá para ver que tem algo muito mais internacional do que era o Hamas antes, que era muito mais isolado, focado na causa palestina. Existe claramente um treinamento internacional avançado.

E sim, eles nos pegaram de surpresa mas isso também tem a ver com esse clima de paz em que Israel estava navegando. Os acordos com os Emirados Árabes, com o Bahrein... Fazer paz é reconhecer a existência de um país antes de qualquer coisa e Israel estava vivendo essa utopia.

Acho que foi uma surpresa muito grande, não só pela capacidade, mas porque há dois anos não tinha conflito com o Hamas. Em maio teve um conflito e entrou só a Jihad Islâmica e agora a gente sabe muito bem porque o Hamas não se meteu.

Você mencionou o radicalismo na Faixa de Gaza... Algumas pessoas vão argumentar que os bloqueios de Israel ao território palestino contribuíram para isso...

Essa pergunta tem duas respostas. A primeira é o Irã. Esta semana prenderam pessoas ligadas ao Hezbollah no Brasil. O que o brasileiro tem a ver com essa história, tirando o fato que eles conseguiram radicalizar pessoas no Brasil? O Irã está radicalizando mulçumanos em muitos lugares do mundo, isso é muito forte e é sabido.

E a segunda coisa tem a ver com a influência do Estado Islâmico. Até então, o radicalismo era afastado da televisão. Agora, tem propaganda terrorista no Instagram, no Tik Tok. Tem uma radicalização do fundamentalismo islâmico muito forte, não só no Oriente Médio, mas também aqui. Tem algo muito radical acontecendo no mundo e, se a gente pensa que o culpado é Israel, não tem como entender os outros conflitos.

Você falou do bloqueio, mas também tem bloqueio na Cisjordânia, eles também tem que passar pelos checkpoints, eles também não podem pegar um avião e sair para qualquer lugar, mas você não vê esse tipo de radicalização na população palestina na Cisjordânia. Você vê isso dentro de um movimento radical. O que aconteceu é parte de um processo em que o Irã está envolvido. É um processo de fundamentalismo e o mundo vai ter que lidar com ele.

Na Faixa de Gaza, os túneis dos terroristas do Hamas passam por baixo dos edifícios onde vivem dois milhões de pessoas, hospitais, escolas e mesquitas e essa separação entre os combates e a vida civil é a principal dificuldade para os militares que avançam sobre o território. Quem afirma isso alguém que já lutou em guerras anteriores no enclave, o ex-soldado Gabriel Schorr, que relatou ao Estadão a sua experiência no Exército israelense.

Nascido no Brasil, ele migrou para Israel, e cumpriu o serviço militar no início dos anos 2000, quando a região enfrentava a escalada da violência, que ganhou o nome de Segunda Intifada. Na época, o soldado enfrentou os homens-bomba, sua primeira missão antes das incursões que estavam por vir. Batalhas terrestres como as que ocorrem neste momento, na Faixa de Gaza.

Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não.

Leia abaixo a entrevista.

Quando você chegou ao exército de Israel?

Eu fui morar em Israel em 1999, entrei no Exército em 2001 no corpo de paraquedistas, fiquei de 2001 a 2004 no serviço militar obrigatório e depois começa o que se chama serviço como reservista até os 40 anos. Eu tenho 43, ou seja, me livrei há três anos. Quando comecei era a época dos atentados suicidas do Hamas com homens-bomba. A minha função era lutar contra essa onda de atentados que ficou conhecida como Segunda Intifada.

Bombardeios israelenses atingem a Faixa de Gaza. Foto: AP / Abed Khaled

Como eram essas ações para frear os atentados?

No começo era um trabalho mais defensivo, com barreiras para evitar que eles fossem até o território israelense. Até que na Pascoa, a Pessach, teve um grande ataque (16 pessoas morreram) e aquilo foi a gota d’água. O Exército decidiu fazer uma incursão, parecida com a que vemos agora, mas muito menor. Foi uma incursão dentro das cidades palestinas para caçar o Hamas porque, até então, estávamos fora, em ações defensivas.

A minha primeira guerra ou operação militar foi em maio de 2002, na cidade de Nablus (Cisjordânia). Era casa por casa, para buscar membros do Hamas para prender o jovem que amanhã vai usar o colete com bombas, a pessoa que faz o colete com bombas... A infraestrutura contraterrorismo de Israel começou a evitar o atentado antes que ele começasse e não só frear o homem bomba na última hora. A gente aprendeu na marra que, depois que coloca o colete com bomba não tem volta. Se a barreira estiver montada, mata os soldados. Se não tiver barreira, mata os civis lá na frente. A ideia era tentar prendê-lo antes disso.

O serviço secreto passava para nós, os soldados, as informações sobre aqueles jovens que se voluntariaram para se explodir, se tornar um mártir como eles chamam, para evitar que o atentado acontecesse. Isso foi de 2001 a 2004. Depois disso eu foi para a reserva, que é parte do contingente do exército. Os reservistas fazem treinamentos, geralmente no início do ano, para que estejam prontos se necessário e podem ser convocados pelo período de até um mês no ano, não só em casos de guerra.

Quando você foi convocado?

Como reservista, eu fui convocado na guerra em Gaza, em 2009. Israel saiu de Gaza em 2005 e, a partir daí, o dinheiro que entrava na Faixa de Gaza passou a ser usado em boa parte com os foguetes. Em 2008, “choveu foguete” em Israel, foram mais de 900 naquele ano e naquela época não tinha o sistema de defesa aérea. Então, em janeiro de 2009 nós entramos na primeira incursão na Faixa de Gaza, mas que não tinha como objetivo acabar com o Hamas. O objetivo era reduzir a capacidade do Hamas de lançar foguetes em Israel.

Já naquela época, em 2009, eu cheguei a ver como o Hamas usava o Hospital Al-Shifa como quartel general. Eu lembro de ver os carros do Hamas entrando e saindo do hospital.[...] Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não. Não dá para saber baseado no uniforme ou na arma de fogo. E a gente tentava definir ao máximo como funciona essa separação. Era o primeiro contato de Israel com a Faixa de Gaza (depois que o Hamas assumiu o controle em 2007).

Essa era a maior dificuldade? Fazer essa diferenciação entre os civis e os terroristas do Hamas?

Sim. Vou te contar uma história. Eu estava em um edifício abandonado, que é onde os soldados dormem em tempos de guerra. Eu estava cuidando de uma das janelas eu vi de longe, caminhando na calçada na nossa direção um menino, que deveria ter no máximo 13 anos. Ele estava entrando em uma zona perto dos tanques, não tinham mais civis ali. Gritamos em árabe para ele parar. Ele se assustou, parou, perguntamos o que ele estava fazendo ali e, neste momento, os soldados foram acordando e um deles gritou em árabe para que ele levantasse a camisa. Ele levantou e estava cheio de bombas. Era um menino de 13 anos que, em tese, não estava armado, não estava uniformizado. Se ele não tivesse sido visto no caminho, ele teria explodido o edifício com os soldados.

Naquela época ainda não tinham os túneis então o mais difícil para mim era entender quem é inocente e quem não é inocente. Falando em primeira pessoa, era a minha maior dificuldade. Na Cisjordânia era muito mais fácil, o terrorismo não narrava a vida cotidiana da Cisjordânia. Na Faixa de Gaza é diferente. As escolas são do Hamas, a prefeitura é do Hamas.

Outra risco, claro, eram os foguetes que eram disparados também nas nossas bases. O Hamas tinha morteiros de curta distância, o Hamas sempre teve bazucas. Se os soldados estão “dormindo” e não veem o inimigo, eles disparam com uma bazuca dentro do edifício e matam todo mundo lá dentro. Era uma ameaça muito maior do que eu vivi na Cisjordânia, que era minha experiência anterior.

A que você atribui essas diferenças entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza? Ao controle do Hamas?

Sem dúvida. Em qualquer lugar do mundo tem pessoas mais radicais e tem pessoas menos radicais. Dentro do próprio povo palestino os menos radicais são os que assinaram o acordo de paz com Israel liderados por Yasser Arafat, e que decidiram pelo caminho da paz. Nos anos 1990, o fato de Yasser Arafat dá início ao processo de paz com Israel, não foi só no papel. Ele precisava convencer a sua própria população de que valia a pena e era uma população que odiava Israel até o dia anterior, que achava que Israel não era um Estado legítimo e sim Palestina ocupada, que os judeus não são judeus são sionistas colonialistas. E o próprio líder Yasser Arafat entende que Israel é um país soberano que vai ser vizinho.

Na Cisjordânia era mais fácil de ver essa divisão clara entre quem era ou não do Hamas. Os mais velhos não queriam aquele jovem de 16 anos que estava entrando para o Hamas, as pessoas mais velhas, os adultos, queriam trabalhar, estudar, ir para Israel fazer faculdade, viajar pelo mundo. Víamos explicitamente essa divisão entre a população civil e o rebelde, que está influenciado pelo Hamas. Na Faixa de Gaza, não passava um carro do Exército sem que as pessoas reagissem. Do mais jovem ao mais idoso ia jogar pedra ou gritar para avisar ao Hamas. Na Faixa de Gaza, já em 2009, sem nem falar como deve estar agora, veem os soldados como o diabo. É muito mais difícil.

Na minha última incursão, em 2014, estávamos em Khan Younis, e recebemos a informação sobre um edifício, que funcionava como quartel general e eles decidiram explodir, mas precisava que essa informação fosse confirmada por uma equipe terrestre. Nós cercamos, monitoramos esse edifício, inclusive com câmeras térmicas (que apontam a presença de armas) e verificamos que, de fato, havia uma movimentação do Hamas lá dentro. Demos a autorização e eles avisaram que iam lançar a chamada bomba toc toc, que é bomba vazia. O avião joga essa primeira bomba e sai muita gente correndo. Neste momento, não tinha a preocupação que os terroristas saíssem porque o objetivo era atingir o prédio e a tecnologia e as armas que tinham lá dentro. Então tem essa primeira bomba, as pessoas saem correndo e segundos depois deveria vir o segundo avião para destruir o prédio. Nós vimos o avião mas ele deu meia volta. Recebemos a informação do comandante, que o piloto não jogou a bomba porque viu crianças palestinas amarradas no terraço. Eles não podiam derrubar o edifício enquanto as crianças estivessem ali então nós teríamos que entrar. Nós entramos e eu me lembro de chegar no terraço muito assustado porque ali eu estava exposto. Entramos correndo, vimos algo em torno de 10 a 12 crianças, corremos até onde eles estavam abaixados e quando cheguei perto de um deles, vi que eles não estavam amarrados e a criança me olhou com uma cara de ódio, de que eu acabei de estragar o plano dela, o que foi passado pra ela, que eles estão lutando pela causa. Eu me lembro muito dessa cena. Eu olhava com uma cara de bronca porque eu poderia tomar um tiro no terraço e ela me olhava com uma cara de bronca e eu estava salvando a vida dela. Tive que tirar ela na marra enquanto ela batia nas minhas costas. Essa sem dúvida é uma das coisas mais complexas da Faixa de Gaza.

Você nunca vai ouvir de um soldado israelense, treinados como nós somos, que o nosso maior medo é enfrentar os terroristas. Nós somos preparados para isso. O que nós não somos preparados é para uma cena como essa. Como reagir com uma criança, que com certeza não entra na categoria de terrorista, mas que está defendendo túneis e depósitos de armas, sem ter uma arma na mão. Ela é inocente ou ela não é inocente? Se a minha arma cair no chão, ela vai pegar e me dar um tiro? É muito complexo.

Por isso, se pularmos para os dias de hoje, tem tanta ênfase para que as pessoas deixem o norte de Gaza enquanto os soldados estão chegando. Você vê muito bombardeio, mas não vê centenas de cadáveres nos escombros. Tem mortos, sim, sem a menor dúvida, mas a maior parte dos edifícios está vazia.

Então você não confia no número de mais de 10 mil de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde da Faixa de Gaza?

Eu desconfio de forma absoluta do número de mortos. Não digo que não tem mortos, mas desconfio porque não tem um membro 100% neutro lá. Em 2002, estava fazendo a patrulha por causa dos atentados suicidas e recebi a informação que ia chegar uma ambulância da Cruz Vermelha, mas que não podia passar porque tinham terroristas do Hamas lá dentro. Minutos depois para a ambulância e tinham quatro ou cinco terroristas mega armados para entrar dentro de Israel, chegar em um hospital e explodir o hospital. Por isso, eu desconfio dos números e dessas informações, inclusive do [secretário-geral da ONU] António Guterres.

Há mortos? Sim e isso tem a ver com o título da missão. Nós entramos em 2009 para procurar foguetes, não para acabar com o Hamas, que é a missão agora. Aquela criança que eu vi no prédio em 2014, eu não tenho dúvidas que ela seja do Hamas. Até porque a escola é do Hamas, o movimento juvenil é do Hamas. Acho que entre os mortos quase todos eu diria que são do Hamas. A pergunta é se estava com arma na mão ou se estavam só na preparação do Hamas. E vai ter mais mortos se o objetivo for acabar com o Hamas. Claro que não tem que matar inocentes deliberadamente, mas continuamos com a mesma complexidade de lutar e, de 2009 a 2023, passaram-se mais 14 anos de controle total do Hamas. Se antes era difícil, agora deve ser praticamente impossível.

Eu não sou comandante do Estado Maior, mas imagino que a ordem seja “saiam do Norte da Faixa de Gaza” e quem não sair está na linha de fogo. É triste, mas se você ê os vídeos do 7 de outubro, aquelas atrocidades não foram cometidas por pessoas uniformizadas, mas eram terroristas. [...]

Não estamos falando em acabar com todos os palestinos, não é isso. Mas as pessoas precisam sair (do Norte de Gaza) porque para entrar entrar de casa por casa e acabar com o Hamas é preciso que os civis não estejam lá.

Qual a principal diferença do Hamas que você enfrentou em 2009 e 2014 para esse que é capaz de lançar um ataque dessa proporção contra Israel e pegar de surpresa um dos exércitos mais poderosos do mundo?

Nós vemos o Irã, uma máquina de terrorismo avançada que opera internacionalmente. Vejo bastante influência do Hezbollah (grupo radical islâmico que atua no Líbano com patrocínio iraniano). Dá para ver que tem algo muito mais internacional do que era o Hamas antes, que era muito mais isolado, focado na causa palestina. Existe claramente um treinamento internacional avançado.

E sim, eles nos pegaram de surpresa mas isso também tem a ver com esse clima de paz em que Israel estava navegando. Os acordos com os Emirados Árabes, com o Bahrein... Fazer paz é reconhecer a existência de um país antes de qualquer coisa e Israel estava vivendo essa utopia.

Acho que foi uma surpresa muito grande, não só pela capacidade, mas porque há dois anos não tinha conflito com o Hamas. Em maio teve um conflito e entrou só a Jihad Islâmica e agora a gente sabe muito bem porque o Hamas não se meteu.

Você mencionou o radicalismo na Faixa de Gaza... Algumas pessoas vão argumentar que os bloqueios de Israel ao território palestino contribuíram para isso...

Essa pergunta tem duas respostas. A primeira é o Irã. Esta semana prenderam pessoas ligadas ao Hezbollah no Brasil. O que o brasileiro tem a ver com essa história, tirando o fato que eles conseguiram radicalizar pessoas no Brasil? O Irã está radicalizando mulçumanos em muitos lugares do mundo, isso é muito forte e é sabido.

E a segunda coisa tem a ver com a influência do Estado Islâmico. Até então, o radicalismo era afastado da televisão. Agora, tem propaganda terrorista no Instagram, no Tik Tok. Tem uma radicalização do fundamentalismo islâmico muito forte, não só no Oriente Médio, mas também aqui. Tem algo muito radical acontecendo no mundo e, se a gente pensa que o culpado é Israel, não tem como entender os outros conflitos.

Você falou do bloqueio, mas também tem bloqueio na Cisjordânia, eles também tem que passar pelos checkpoints, eles também não podem pegar um avião e sair para qualquer lugar, mas você não vê esse tipo de radicalização na população palestina na Cisjordânia. Você vê isso dentro de um movimento radical. O que aconteceu é parte de um processo em que o Irã está envolvido. É um processo de fundamentalismo e o mundo vai ter que lidar com ele.

Na Faixa de Gaza, os túneis dos terroristas do Hamas passam por baixo dos edifícios onde vivem dois milhões de pessoas, hospitais, escolas e mesquitas e essa separação entre os combates e a vida civil é a principal dificuldade para os militares que avançam sobre o território. Quem afirma isso alguém que já lutou em guerras anteriores no enclave, o ex-soldado Gabriel Schorr, que relatou ao Estadão a sua experiência no Exército israelense.

Nascido no Brasil, ele migrou para Israel, e cumpriu o serviço militar no início dos anos 2000, quando a região enfrentava a escalada da violência, que ganhou o nome de Segunda Intifada. Na época, o soldado enfrentou os homens-bomba, sua primeira missão antes das incursões que estavam por vir. Batalhas terrestres como as que ocorrem neste momento, na Faixa de Gaza.

Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não.

Leia abaixo a entrevista.

Quando você chegou ao exército de Israel?

Eu fui morar em Israel em 1999, entrei no Exército em 2001 no corpo de paraquedistas, fiquei de 2001 a 2004 no serviço militar obrigatório e depois começa o que se chama serviço como reservista até os 40 anos. Eu tenho 43, ou seja, me livrei há três anos. Quando comecei era a época dos atentados suicidas do Hamas com homens-bomba. A minha função era lutar contra essa onda de atentados que ficou conhecida como Segunda Intifada.

Bombardeios israelenses atingem a Faixa de Gaza. Foto: AP / Abed Khaled

Como eram essas ações para frear os atentados?

No começo era um trabalho mais defensivo, com barreiras para evitar que eles fossem até o território israelense. Até que na Pascoa, a Pessach, teve um grande ataque (16 pessoas morreram) e aquilo foi a gota d’água. O Exército decidiu fazer uma incursão, parecida com a que vemos agora, mas muito menor. Foi uma incursão dentro das cidades palestinas para caçar o Hamas porque, até então, estávamos fora, em ações defensivas.

A minha primeira guerra ou operação militar foi em maio de 2002, na cidade de Nablus (Cisjordânia). Era casa por casa, para buscar membros do Hamas para prender o jovem que amanhã vai usar o colete com bombas, a pessoa que faz o colete com bombas... A infraestrutura contraterrorismo de Israel começou a evitar o atentado antes que ele começasse e não só frear o homem bomba na última hora. A gente aprendeu na marra que, depois que coloca o colete com bomba não tem volta. Se a barreira estiver montada, mata os soldados. Se não tiver barreira, mata os civis lá na frente. A ideia era tentar prendê-lo antes disso.

O serviço secreto passava para nós, os soldados, as informações sobre aqueles jovens que se voluntariaram para se explodir, se tornar um mártir como eles chamam, para evitar que o atentado acontecesse. Isso foi de 2001 a 2004. Depois disso eu foi para a reserva, que é parte do contingente do exército. Os reservistas fazem treinamentos, geralmente no início do ano, para que estejam prontos se necessário e podem ser convocados pelo período de até um mês no ano, não só em casos de guerra.

Quando você foi convocado?

Como reservista, eu fui convocado na guerra em Gaza, em 2009. Israel saiu de Gaza em 2005 e, a partir daí, o dinheiro que entrava na Faixa de Gaza passou a ser usado em boa parte com os foguetes. Em 2008, “choveu foguete” em Israel, foram mais de 900 naquele ano e naquela época não tinha o sistema de defesa aérea. Então, em janeiro de 2009 nós entramos na primeira incursão na Faixa de Gaza, mas que não tinha como objetivo acabar com o Hamas. O objetivo era reduzir a capacidade do Hamas de lançar foguetes em Israel.

Já naquela época, em 2009, eu cheguei a ver como o Hamas usava o Hospital Al-Shifa como quartel general. Eu lembro de ver os carros do Hamas entrando e saindo do hospital.[...] Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não. Não dá para saber baseado no uniforme ou na arma de fogo. E a gente tentava definir ao máximo como funciona essa separação. Era o primeiro contato de Israel com a Faixa de Gaza (depois que o Hamas assumiu o controle em 2007).

Essa era a maior dificuldade? Fazer essa diferenciação entre os civis e os terroristas do Hamas?

Sim. Vou te contar uma história. Eu estava em um edifício abandonado, que é onde os soldados dormem em tempos de guerra. Eu estava cuidando de uma das janelas eu vi de longe, caminhando na calçada na nossa direção um menino, que deveria ter no máximo 13 anos. Ele estava entrando em uma zona perto dos tanques, não tinham mais civis ali. Gritamos em árabe para ele parar. Ele se assustou, parou, perguntamos o que ele estava fazendo ali e, neste momento, os soldados foram acordando e um deles gritou em árabe para que ele levantasse a camisa. Ele levantou e estava cheio de bombas. Era um menino de 13 anos que, em tese, não estava armado, não estava uniformizado. Se ele não tivesse sido visto no caminho, ele teria explodido o edifício com os soldados.

Naquela época ainda não tinham os túneis então o mais difícil para mim era entender quem é inocente e quem não é inocente. Falando em primeira pessoa, era a minha maior dificuldade. Na Cisjordânia era muito mais fácil, o terrorismo não narrava a vida cotidiana da Cisjordânia. Na Faixa de Gaza é diferente. As escolas são do Hamas, a prefeitura é do Hamas.

Outra risco, claro, eram os foguetes que eram disparados também nas nossas bases. O Hamas tinha morteiros de curta distância, o Hamas sempre teve bazucas. Se os soldados estão “dormindo” e não veem o inimigo, eles disparam com uma bazuca dentro do edifício e matam todo mundo lá dentro. Era uma ameaça muito maior do que eu vivi na Cisjordânia, que era minha experiência anterior.

A que você atribui essas diferenças entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza? Ao controle do Hamas?

Sem dúvida. Em qualquer lugar do mundo tem pessoas mais radicais e tem pessoas menos radicais. Dentro do próprio povo palestino os menos radicais são os que assinaram o acordo de paz com Israel liderados por Yasser Arafat, e que decidiram pelo caminho da paz. Nos anos 1990, o fato de Yasser Arafat dá início ao processo de paz com Israel, não foi só no papel. Ele precisava convencer a sua própria população de que valia a pena e era uma população que odiava Israel até o dia anterior, que achava que Israel não era um Estado legítimo e sim Palestina ocupada, que os judeus não são judeus são sionistas colonialistas. E o próprio líder Yasser Arafat entende que Israel é um país soberano que vai ser vizinho.

Na Cisjordânia era mais fácil de ver essa divisão clara entre quem era ou não do Hamas. Os mais velhos não queriam aquele jovem de 16 anos que estava entrando para o Hamas, as pessoas mais velhas, os adultos, queriam trabalhar, estudar, ir para Israel fazer faculdade, viajar pelo mundo. Víamos explicitamente essa divisão entre a população civil e o rebelde, que está influenciado pelo Hamas. Na Faixa de Gaza, não passava um carro do Exército sem que as pessoas reagissem. Do mais jovem ao mais idoso ia jogar pedra ou gritar para avisar ao Hamas. Na Faixa de Gaza, já em 2009, sem nem falar como deve estar agora, veem os soldados como o diabo. É muito mais difícil.

Na minha última incursão, em 2014, estávamos em Khan Younis, e recebemos a informação sobre um edifício, que funcionava como quartel general e eles decidiram explodir, mas precisava que essa informação fosse confirmada por uma equipe terrestre. Nós cercamos, monitoramos esse edifício, inclusive com câmeras térmicas (que apontam a presença de armas) e verificamos que, de fato, havia uma movimentação do Hamas lá dentro. Demos a autorização e eles avisaram que iam lançar a chamada bomba toc toc, que é bomba vazia. O avião joga essa primeira bomba e sai muita gente correndo. Neste momento, não tinha a preocupação que os terroristas saíssem porque o objetivo era atingir o prédio e a tecnologia e as armas que tinham lá dentro. Então tem essa primeira bomba, as pessoas saem correndo e segundos depois deveria vir o segundo avião para destruir o prédio. Nós vimos o avião mas ele deu meia volta. Recebemos a informação do comandante, que o piloto não jogou a bomba porque viu crianças palestinas amarradas no terraço. Eles não podiam derrubar o edifício enquanto as crianças estivessem ali então nós teríamos que entrar. Nós entramos e eu me lembro de chegar no terraço muito assustado porque ali eu estava exposto. Entramos correndo, vimos algo em torno de 10 a 12 crianças, corremos até onde eles estavam abaixados e quando cheguei perto de um deles, vi que eles não estavam amarrados e a criança me olhou com uma cara de ódio, de que eu acabei de estragar o plano dela, o que foi passado pra ela, que eles estão lutando pela causa. Eu me lembro muito dessa cena. Eu olhava com uma cara de bronca porque eu poderia tomar um tiro no terraço e ela me olhava com uma cara de bronca e eu estava salvando a vida dela. Tive que tirar ela na marra enquanto ela batia nas minhas costas. Essa sem dúvida é uma das coisas mais complexas da Faixa de Gaza.

Você nunca vai ouvir de um soldado israelense, treinados como nós somos, que o nosso maior medo é enfrentar os terroristas. Nós somos preparados para isso. O que nós não somos preparados é para uma cena como essa. Como reagir com uma criança, que com certeza não entra na categoria de terrorista, mas que está defendendo túneis e depósitos de armas, sem ter uma arma na mão. Ela é inocente ou ela não é inocente? Se a minha arma cair no chão, ela vai pegar e me dar um tiro? É muito complexo.

Por isso, se pularmos para os dias de hoje, tem tanta ênfase para que as pessoas deixem o norte de Gaza enquanto os soldados estão chegando. Você vê muito bombardeio, mas não vê centenas de cadáveres nos escombros. Tem mortos, sim, sem a menor dúvida, mas a maior parte dos edifícios está vazia.

Então você não confia no número de mais de 10 mil de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde da Faixa de Gaza?

Eu desconfio de forma absoluta do número de mortos. Não digo que não tem mortos, mas desconfio porque não tem um membro 100% neutro lá. Em 2002, estava fazendo a patrulha por causa dos atentados suicidas e recebi a informação que ia chegar uma ambulância da Cruz Vermelha, mas que não podia passar porque tinham terroristas do Hamas lá dentro. Minutos depois para a ambulância e tinham quatro ou cinco terroristas mega armados para entrar dentro de Israel, chegar em um hospital e explodir o hospital. Por isso, eu desconfio dos números e dessas informações, inclusive do [secretário-geral da ONU] António Guterres.

Há mortos? Sim e isso tem a ver com o título da missão. Nós entramos em 2009 para procurar foguetes, não para acabar com o Hamas, que é a missão agora. Aquela criança que eu vi no prédio em 2014, eu não tenho dúvidas que ela seja do Hamas. Até porque a escola é do Hamas, o movimento juvenil é do Hamas. Acho que entre os mortos quase todos eu diria que são do Hamas. A pergunta é se estava com arma na mão ou se estavam só na preparação do Hamas. E vai ter mais mortos se o objetivo for acabar com o Hamas. Claro que não tem que matar inocentes deliberadamente, mas continuamos com a mesma complexidade de lutar e, de 2009 a 2023, passaram-se mais 14 anos de controle total do Hamas. Se antes era difícil, agora deve ser praticamente impossível.

Eu não sou comandante do Estado Maior, mas imagino que a ordem seja “saiam do Norte da Faixa de Gaza” e quem não sair está na linha de fogo. É triste, mas se você ê os vídeos do 7 de outubro, aquelas atrocidades não foram cometidas por pessoas uniformizadas, mas eram terroristas. [...]

Não estamos falando em acabar com todos os palestinos, não é isso. Mas as pessoas precisam sair (do Norte de Gaza) porque para entrar entrar de casa por casa e acabar com o Hamas é preciso que os civis não estejam lá.

Qual a principal diferença do Hamas que você enfrentou em 2009 e 2014 para esse que é capaz de lançar um ataque dessa proporção contra Israel e pegar de surpresa um dos exércitos mais poderosos do mundo?

Nós vemos o Irã, uma máquina de terrorismo avançada que opera internacionalmente. Vejo bastante influência do Hezbollah (grupo radical islâmico que atua no Líbano com patrocínio iraniano). Dá para ver que tem algo muito mais internacional do que era o Hamas antes, que era muito mais isolado, focado na causa palestina. Existe claramente um treinamento internacional avançado.

E sim, eles nos pegaram de surpresa mas isso também tem a ver com esse clima de paz em que Israel estava navegando. Os acordos com os Emirados Árabes, com o Bahrein... Fazer paz é reconhecer a existência de um país antes de qualquer coisa e Israel estava vivendo essa utopia.

Acho que foi uma surpresa muito grande, não só pela capacidade, mas porque há dois anos não tinha conflito com o Hamas. Em maio teve um conflito e entrou só a Jihad Islâmica e agora a gente sabe muito bem porque o Hamas não se meteu.

Você mencionou o radicalismo na Faixa de Gaza... Algumas pessoas vão argumentar que os bloqueios de Israel ao território palestino contribuíram para isso...

Essa pergunta tem duas respostas. A primeira é o Irã. Esta semana prenderam pessoas ligadas ao Hezbollah no Brasil. O que o brasileiro tem a ver com essa história, tirando o fato que eles conseguiram radicalizar pessoas no Brasil? O Irã está radicalizando mulçumanos em muitos lugares do mundo, isso é muito forte e é sabido.

E a segunda coisa tem a ver com a influência do Estado Islâmico. Até então, o radicalismo era afastado da televisão. Agora, tem propaganda terrorista no Instagram, no Tik Tok. Tem uma radicalização do fundamentalismo islâmico muito forte, não só no Oriente Médio, mas também aqui. Tem algo muito radical acontecendo no mundo e, se a gente pensa que o culpado é Israel, não tem como entender os outros conflitos.

Você falou do bloqueio, mas também tem bloqueio na Cisjordânia, eles também tem que passar pelos checkpoints, eles também não podem pegar um avião e sair para qualquer lugar, mas você não vê esse tipo de radicalização na população palestina na Cisjordânia. Você vê isso dentro de um movimento radical. O que aconteceu é parte de um processo em que o Irã está envolvido. É um processo de fundamentalismo e o mundo vai ter que lidar com ele.

Na Faixa de Gaza, os túneis dos terroristas do Hamas passam por baixo dos edifícios onde vivem dois milhões de pessoas, hospitais, escolas e mesquitas e essa separação entre os combates e a vida civil é a principal dificuldade para os militares que avançam sobre o território. Quem afirma isso alguém que já lutou em guerras anteriores no enclave, o ex-soldado Gabriel Schorr, que relatou ao Estadão a sua experiência no Exército israelense.

Nascido no Brasil, ele migrou para Israel, e cumpriu o serviço militar no início dos anos 2000, quando a região enfrentava a escalada da violência, que ganhou o nome de Segunda Intifada. Na época, o soldado enfrentou os homens-bomba, sua primeira missão antes das incursões que estavam por vir. Batalhas terrestres como as que ocorrem neste momento, na Faixa de Gaza.

Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não.

Leia abaixo a entrevista.

Quando você chegou ao exército de Israel?

Eu fui morar em Israel em 1999, entrei no Exército em 2001 no corpo de paraquedistas, fiquei de 2001 a 2004 no serviço militar obrigatório e depois começa o que se chama serviço como reservista até os 40 anos. Eu tenho 43, ou seja, me livrei há três anos. Quando comecei era a época dos atentados suicidas do Hamas com homens-bomba. A minha função era lutar contra essa onda de atentados que ficou conhecida como Segunda Intifada.

Bombardeios israelenses atingem a Faixa de Gaza. Foto: AP / Abed Khaled

Como eram essas ações para frear os atentados?

No começo era um trabalho mais defensivo, com barreiras para evitar que eles fossem até o território israelense. Até que na Pascoa, a Pessach, teve um grande ataque (16 pessoas morreram) e aquilo foi a gota d’água. O Exército decidiu fazer uma incursão, parecida com a que vemos agora, mas muito menor. Foi uma incursão dentro das cidades palestinas para caçar o Hamas porque, até então, estávamos fora, em ações defensivas.

A minha primeira guerra ou operação militar foi em maio de 2002, na cidade de Nablus (Cisjordânia). Era casa por casa, para buscar membros do Hamas para prender o jovem que amanhã vai usar o colete com bombas, a pessoa que faz o colete com bombas... A infraestrutura contraterrorismo de Israel começou a evitar o atentado antes que ele começasse e não só frear o homem bomba na última hora. A gente aprendeu na marra que, depois que coloca o colete com bomba não tem volta. Se a barreira estiver montada, mata os soldados. Se não tiver barreira, mata os civis lá na frente. A ideia era tentar prendê-lo antes disso.

O serviço secreto passava para nós, os soldados, as informações sobre aqueles jovens que se voluntariaram para se explodir, se tornar um mártir como eles chamam, para evitar que o atentado acontecesse. Isso foi de 2001 a 2004. Depois disso eu foi para a reserva, que é parte do contingente do exército. Os reservistas fazem treinamentos, geralmente no início do ano, para que estejam prontos se necessário e podem ser convocados pelo período de até um mês no ano, não só em casos de guerra.

Quando você foi convocado?

Como reservista, eu fui convocado na guerra em Gaza, em 2009. Israel saiu de Gaza em 2005 e, a partir daí, o dinheiro que entrava na Faixa de Gaza passou a ser usado em boa parte com os foguetes. Em 2008, “choveu foguete” em Israel, foram mais de 900 naquele ano e naquela época não tinha o sistema de defesa aérea. Então, em janeiro de 2009 nós entramos na primeira incursão na Faixa de Gaza, mas que não tinha como objetivo acabar com o Hamas. O objetivo era reduzir a capacidade do Hamas de lançar foguetes em Israel.

Já naquela época, em 2009, eu cheguei a ver como o Hamas usava o Hospital Al-Shifa como quartel general. Eu lembro de ver os carros do Hamas entrando e saindo do hospital.[...] Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não. Não dá para saber baseado no uniforme ou na arma de fogo. E a gente tentava definir ao máximo como funciona essa separação. Era o primeiro contato de Israel com a Faixa de Gaza (depois que o Hamas assumiu o controle em 2007).

Essa era a maior dificuldade? Fazer essa diferenciação entre os civis e os terroristas do Hamas?

Sim. Vou te contar uma história. Eu estava em um edifício abandonado, que é onde os soldados dormem em tempos de guerra. Eu estava cuidando de uma das janelas eu vi de longe, caminhando na calçada na nossa direção um menino, que deveria ter no máximo 13 anos. Ele estava entrando em uma zona perto dos tanques, não tinham mais civis ali. Gritamos em árabe para ele parar. Ele se assustou, parou, perguntamos o que ele estava fazendo ali e, neste momento, os soldados foram acordando e um deles gritou em árabe para que ele levantasse a camisa. Ele levantou e estava cheio de bombas. Era um menino de 13 anos que, em tese, não estava armado, não estava uniformizado. Se ele não tivesse sido visto no caminho, ele teria explodido o edifício com os soldados.

Naquela época ainda não tinham os túneis então o mais difícil para mim era entender quem é inocente e quem não é inocente. Falando em primeira pessoa, era a minha maior dificuldade. Na Cisjordânia era muito mais fácil, o terrorismo não narrava a vida cotidiana da Cisjordânia. Na Faixa de Gaza é diferente. As escolas são do Hamas, a prefeitura é do Hamas.

Outra risco, claro, eram os foguetes que eram disparados também nas nossas bases. O Hamas tinha morteiros de curta distância, o Hamas sempre teve bazucas. Se os soldados estão “dormindo” e não veem o inimigo, eles disparam com uma bazuca dentro do edifício e matam todo mundo lá dentro. Era uma ameaça muito maior do que eu vivi na Cisjordânia, que era minha experiência anterior.

A que você atribui essas diferenças entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza? Ao controle do Hamas?

Sem dúvida. Em qualquer lugar do mundo tem pessoas mais radicais e tem pessoas menos radicais. Dentro do próprio povo palestino os menos radicais são os que assinaram o acordo de paz com Israel liderados por Yasser Arafat, e que decidiram pelo caminho da paz. Nos anos 1990, o fato de Yasser Arafat dá início ao processo de paz com Israel, não foi só no papel. Ele precisava convencer a sua própria população de que valia a pena e era uma população que odiava Israel até o dia anterior, que achava que Israel não era um Estado legítimo e sim Palestina ocupada, que os judeus não são judeus são sionistas colonialistas. E o próprio líder Yasser Arafat entende que Israel é um país soberano que vai ser vizinho.

Na Cisjordânia era mais fácil de ver essa divisão clara entre quem era ou não do Hamas. Os mais velhos não queriam aquele jovem de 16 anos que estava entrando para o Hamas, as pessoas mais velhas, os adultos, queriam trabalhar, estudar, ir para Israel fazer faculdade, viajar pelo mundo. Víamos explicitamente essa divisão entre a população civil e o rebelde, que está influenciado pelo Hamas. Na Faixa de Gaza, não passava um carro do Exército sem que as pessoas reagissem. Do mais jovem ao mais idoso ia jogar pedra ou gritar para avisar ao Hamas. Na Faixa de Gaza, já em 2009, sem nem falar como deve estar agora, veem os soldados como o diabo. É muito mais difícil.

Na minha última incursão, em 2014, estávamos em Khan Younis, e recebemos a informação sobre um edifício, que funcionava como quartel general e eles decidiram explodir, mas precisava que essa informação fosse confirmada por uma equipe terrestre. Nós cercamos, monitoramos esse edifício, inclusive com câmeras térmicas (que apontam a presença de armas) e verificamos que, de fato, havia uma movimentação do Hamas lá dentro. Demos a autorização e eles avisaram que iam lançar a chamada bomba toc toc, que é bomba vazia. O avião joga essa primeira bomba e sai muita gente correndo. Neste momento, não tinha a preocupação que os terroristas saíssem porque o objetivo era atingir o prédio e a tecnologia e as armas que tinham lá dentro. Então tem essa primeira bomba, as pessoas saem correndo e segundos depois deveria vir o segundo avião para destruir o prédio. Nós vimos o avião mas ele deu meia volta. Recebemos a informação do comandante, que o piloto não jogou a bomba porque viu crianças palestinas amarradas no terraço. Eles não podiam derrubar o edifício enquanto as crianças estivessem ali então nós teríamos que entrar. Nós entramos e eu me lembro de chegar no terraço muito assustado porque ali eu estava exposto. Entramos correndo, vimos algo em torno de 10 a 12 crianças, corremos até onde eles estavam abaixados e quando cheguei perto de um deles, vi que eles não estavam amarrados e a criança me olhou com uma cara de ódio, de que eu acabei de estragar o plano dela, o que foi passado pra ela, que eles estão lutando pela causa. Eu me lembro muito dessa cena. Eu olhava com uma cara de bronca porque eu poderia tomar um tiro no terraço e ela me olhava com uma cara de bronca e eu estava salvando a vida dela. Tive que tirar ela na marra enquanto ela batia nas minhas costas. Essa sem dúvida é uma das coisas mais complexas da Faixa de Gaza.

Você nunca vai ouvir de um soldado israelense, treinados como nós somos, que o nosso maior medo é enfrentar os terroristas. Nós somos preparados para isso. O que nós não somos preparados é para uma cena como essa. Como reagir com uma criança, que com certeza não entra na categoria de terrorista, mas que está defendendo túneis e depósitos de armas, sem ter uma arma na mão. Ela é inocente ou ela não é inocente? Se a minha arma cair no chão, ela vai pegar e me dar um tiro? É muito complexo.

Por isso, se pularmos para os dias de hoje, tem tanta ênfase para que as pessoas deixem o norte de Gaza enquanto os soldados estão chegando. Você vê muito bombardeio, mas não vê centenas de cadáveres nos escombros. Tem mortos, sim, sem a menor dúvida, mas a maior parte dos edifícios está vazia.

Então você não confia no número de mais de 10 mil de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde da Faixa de Gaza?

Eu desconfio de forma absoluta do número de mortos. Não digo que não tem mortos, mas desconfio porque não tem um membro 100% neutro lá. Em 2002, estava fazendo a patrulha por causa dos atentados suicidas e recebi a informação que ia chegar uma ambulância da Cruz Vermelha, mas que não podia passar porque tinham terroristas do Hamas lá dentro. Minutos depois para a ambulância e tinham quatro ou cinco terroristas mega armados para entrar dentro de Israel, chegar em um hospital e explodir o hospital. Por isso, eu desconfio dos números e dessas informações, inclusive do [secretário-geral da ONU] António Guterres.

Há mortos? Sim e isso tem a ver com o título da missão. Nós entramos em 2009 para procurar foguetes, não para acabar com o Hamas, que é a missão agora. Aquela criança que eu vi no prédio em 2014, eu não tenho dúvidas que ela seja do Hamas. Até porque a escola é do Hamas, o movimento juvenil é do Hamas. Acho que entre os mortos quase todos eu diria que são do Hamas. A pergunta é se estava com arma na mão ou se estavam só na preparação do Hamas. E vai ter mais mortos se o objetivo for acabar com o Hamas. Claro que não tem que matar inocentes deliberadamente, mas continuamos com a mesma complexidade de lutar e, de 2009 a 2023, passaram-se mais 14 anos de controle total do Hamas. Se antes era difícil, agora deve ser praticamente impossível.

Eu não sou comandante do Estado Maior, mas imagino que a ordem seja “saiam do Norte da Faixa de Gaza” e quem não sair está na linha de fogo. É triste, mas se você ê os vídeos do 7 de outubro, aquelas atrocidades não foram cometidas por pessoas uniformizadas, mas eram terroristas. [...]

Não estamos falando em acabar com todos os palestinos, não é isso. Mas as pessoas precisam sair (do Norte de Gaza) porque para entrar entrar de casa por casa e acabar com o Hamas é preciso que os civis não estejam lá.

Qual a principal diferença do Hamas que você enfrentou em 2009 e 2014 para esse que é capaz de lançar um ataque dessa proporção contra Israel e pegar de surpresa um dos exércitos mais poderosos do mundo?

Nós vemos o Irã, uma máquina de terrorismo avançada que opera internacionalmente. Vejo bastante influência do Hezbollah (grupo radical islâmico que atua no Líbano com patrocínio iraniano). Dá para ver que tem algo muito mais internacional do que era o Hamas antes, que era muito mais isolado, focado na causa palestina. Existe claramente um treinamento internacional avançado.

E sim, eles nos pegaram de surpresa mas isso também tem a ver com esse clima de paz em que Israel estava navegando. Os acordos com os Emirados Árabes, com o Bahrein... Fazer paz é reconhecer a existência de um país antes de qualquer coisa e Israel estava vivendo essa utopia.

Acho que foi uma surpresa muito grande, não só pela capacidade, mas porque há dois anos não tinha conflito com o Hamas. Em maio teve um conflito e entrou só a Jihad Islâmica e agora a gente sabe muito bem porque o Hamas não se meteu.

Você mencionou o radicalismo na Faixa de Gaza... Algumas pessoas vão argumentar que os bloqueios de Israel ao território palestino contribuíram para isso...

Essa pergunta tem duas respostas. A primeira é o Irã. Esta semana prenderam pessoas ligadas ao Hezbollah no Brasil. O que o brasileiro tem a ver com essa história, tirando o fato que eles conseguiram radicalizar pessoas no Brasil? O Irã está radicalizando mulçumanos em muitos lugares do mundo, isso é muito forte e é sabido.

E a segunda coisa tem a ver com a influência do Estado Islâmico. Até então, o radicalismo era afastado da televisão. Agora, tem propaganda terrorista no Instagram, no Tik Tok. Tem uma radicalização do fundamentalismo islâmico muito forte, não só no Oriente Médio, mas também aqui. Tem algo muito radical acontecendo no mundo e, se a gente pensa que o culpado é Israel, não tem como entender os outros conflitos.

Você falou do bloqueio, mas também tem bloqueio na Cisjordânia, eles também tem que passar pelos checkpoints, eles também não podem pegar um avião e sair para qualquer lugar, mas você não vê esse tipo de radicalização na população palestina na Cisjordânia. Você vê isso dentro de um movimento radical. O que aconteceu é parte de um processo em que o Irã está envolvido. É um processo de fundamentalismo e o mundo vai ter que lidar com ele.

Na Faixa de Gaza, os túneis dos terroristas do Hamas passam por baixo dos edifícios onde vivem dois milhões de pessoas, hospitais, escolas e mesquitas e essa separação entre os combates e a vida civil é a principal dificuldade para os militares que avançam sobre o território. Quem afirma isso alguém que já lutou em guerras anteriores no enclave, o ex-soldado Gabriel Schorr, que relatou ao Estadão a sua experiência no Exército israelense.

Nascido no Brasil, ele migrou para Israel, e cumpriu o serviço militar no início dos anos 2000, quando a região enfrentava a escalada da violência, que ganhou o nome de Segunda Intifada. Na época, o soldado enfrentou os homens-bomba, sua primeira missão antes das incursões que estavam por vir. Batalhas terrestres como as que ocorrem neste momento, na Faixa de Gaza.

Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não.

Leia abaixo a entrevista.

Quando você chegou ao exército de Israel?

Eu fui morar em Israel em 1999, entrei no Exército em 2001 no corpo de paraquedistas, fiquei de 2001 a 2004 no serviço militar obrigatório e depois começa o que se chama serviço como reservista até os 40 anos. Eu tenho 43, ou seja, me livrei há três anos. Quando comecei era a época dos atentados suicidas do Hamas com homens-bomba. A minha função era lutar contra essa onda de atentados que ficou conhecida como Segunda Intifada.

Bombardeios israelenses atingem a Faixa de Gaza. Foto: AP / Abed Khaled

Como eram essas ações para frear os atentados?

No começo era um trabalho mais defensivo, com barreiras para evitar que eles fossem até o território israelense. Até que na Pascoa, a Pessach, teve um grande ataque (16 pessoas morreram) e aquilo foi a gota d’água. O Exército decidiu fazer uma incursão, parecida com a que vemos agora, mas muito menor. Foi uma incursão dentro das cidades palestinas para caçar o Hamas porque, até então, estávamos fora, em ações defensivas.

A minha primeira guerra ou operação militar foi em maio de 2002, na cidade de Nablus (Cisjordânia). Era casa por casa, para buscar membros do Hamas para prender o jovem que amanhã vai usar o colete com bombas, a pessoa que faz o colete com bombas... A infraestrutura contraterrorismo de Israel começou a evitar o atentado antes que ele começasse e não só frear o homem bomba na última hora. A gente aprendeu na marra que, depois que coloca o colete com bomba não tem volta. Se a barreira estiver montada, mata os soldados. Se não tiver barreira, mata os civis lá na frente. A ideia era tentar prendê-lo antes disso.

O serviço secreto passava para nós, os soldados, as informações sobre aqueles jovens que se voluntariaram para se explodir, se tornar um mártir como eles chamam, para evitar que o atentado acontecesse. Isso foi de 2001 a 2004. Depois disso eu foi para a reserva, que é parte do contingente do exército. Os reservistas fazem treinamentos, geralmente no início do ano, para que estejam prontos se necessário e podem ser convocados pelo período de até um mês no ano, não só em casos de guerra.

Quando você foi convocado?

Como reservista, eu fui convocado na guerra em Gaza, em 2009. Israel saiu de Gaza em 2005 e, a partir daí, o dinheiro que entrava na Faixa de Gaza passou a ser usado em boa parte com os foguetes. Em 2008, “choveu foguete” em Israel, foram mais de 900 naquele ano e naquela época não tinha o sistema de defesa aérea. Então, em janeiro de 2009 nós entramos na primeira incursão na Faixa de Gaza, mas que não tinha como objetivo acabar com o Hamas. O objetivo era reduzir a capacidade do Hamas de lançar foguetes em Israel.

Já naquela época, em 2009, eu cheguei a ver como o Hamas usava o Hospital Al-Shifa como quartel general. Eu lembro de ver os carros do Hamas entrando e saindo do hospital.[...] Encontramos disparadores de foguetes em apartamentos residenciais, em mesquitas, no pátio de escolas. Era muito misturada a vida civil da vida não civil. O soldado é fácil de identificar: ele está uniformizado, com a arma. O terrorista não. Não dá para saber baseado no uniforme ou na arma de fogo. E a gente tentava definir ao máximo como funciona essa separação. Era o primeiro contato de Israel com a Faixa de Gaza (depois que o Hamas assumiu o controle em 2007).

Essa era a maior dificuldade? Fazer essa diferenciação entre os civis e os terroristas do Hamas?

Sim. Vou te contar uma história. Eu estava em um edifício abandonado, que é onde os soldados dormem em tempos de guerra. Eu estava cuidando de uma das janelas eu vi de longe, caminhando na calçada na nossa direção um menino, que deveria ter no máximo 13 anos. Ele estava entrando em uma zona perto dos tanques, não tinham mais civis ali. Gritamos em árabe para ele parar. Ele se assustou, parou, perguntamos o que ele estava fazendo ali e, neste momento, os soldados foram acordando e um deles gritou em árabe para que ele levantasse a camisa. Ele levantou e estava cheio de bombas. Era um menino de 13 anos que, em tese, não estava armado, não estava uniformizado. Se ele não tivesse sido visto no caminho, ele teria explodido o edifício com os soldados.

Naquela época ainda não tinham os túneis então o mais difícil para mim era entender quem é inocente e quem não é inocente. Falando em primeira pessoa, era a minha maior dificuldade. Na Cisjordânia era muito mais fácil, o terrorismo não narrava a vida cotidiana da Cisjordânia. Na Faixa de Gaza é diferente. As escolas são do Hamas, a prefeitura é do Hamas.

Outra risco, claro, eram os foguetes que eram disparados também nas nossas bases. O Hamas tinha morteiros de curta distância, o Hamas sempre teve bazucas. Se os soldados estão “dormindo” e não veem o inimigo, eles disparam com uma bazuca dentro do edifício e matam todo mundo lá dentro. Era uma ameaça muito maior do que eu vivi na Cisjordânia, que era minha experiência anterior.

A que você atribui essas diferenças entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza? Ao controle do Hamas?

Sem dúvida. Em qualquer lugar do mundo tem pessoas mais radicais e tem pessoas menos radicais. Dentro do próprio povo palestino os menos radicais são os que assinaram o acordo de paz com Israel liderados por Yasser Arafat, e que decidiram pelo caminho da paz. Nos anos 1990, o fato de Yasser Arafat dá início ao processo de paz com Israel, não foi só no papel. Ele precisava convencer a sua própria população de que valia a pena e era uma população que odiava Israel até o dia anterior, que achava que Israel não era um Estado legítimo e sim Palestina ocupada, que os judeus não são judeus são sionistas colonialistas. E o próprio líder Yasser Arafat entende que Israel é um país soberano que vai ser vizinho.

Na Cisjordânia era mais fácil de ver essa divisão clara entre quem era ou não do Hamas. Os mais velhos não queriam aquele jovem de 16 anos que estava entrando para o Hamas, as pessoas mais velhas, os adultos, queriam trabalhar, estudar, ir para Israel fazer faculdade, viajar pelo mundo. Víamos explicitamente essa divisão entre a população civil e o rebelde, que está influenciado pelo Hamas. Na Faixa de Gaza, não passava um carro do Exército sem que as pessoas reagissem. Do mais jovem ao mais idoso ia jogar pedra ou gritar para avisar ao Hamas. Na Faixa de Gaza, já em 2009, sem nem falar como deve estar agora, veem os soldados como o diabo. É muito mais difícil.

Na minha última incursão, em 2014, estávamos em Khan Younis, e recebemos a informação sobre um edifício, que funcionava como quartel general e eles decidiram explodir, mas precisava que essa informação fosse confirmada por uma equipe terrestre. Nós cercamos, monitoramos esse edifício, inclusive com câmeras térmicas (que apontam a presença de armas) e verificamos que, de fato, havia uma movimentação do Hamas lá dentro. Demos a autorização e eles avisaram que iam lançar a chamada bomba toc toc, que é bomba vazia. O avião joga essa primeira bomba e sai muita gente correndo. Neste momento, não tinha a preocupação que os terroristas saíssem porque o objetivo era atingir o prédio e a tecnologia e as armas que tinham lá dentro. Então tem essa primeira bomba, as pessoas saem correndo e segundos depois deveria vir o segundo avião para destruir o prédio. Nós vimos o avião mas ele deu meia volta. Recebemos a informação do comandante, que o piloto não jogou a bomba porque viu crianças palestinas amarradas no terraço. Eles não podiam derrubar o edifício enquanto as crianças estivessem ali então nós teríamos que entrar. Nós entramos e eu me lembro de chegar no terraço muito assustado porque ali eu estava exposto. Entramos correndo, vimos algo em torno de 10 a 12 crianças, corremos até onde eles estavam abaixados e quando cheguei perto de um deles, vi que eles não estavam amarrados e a criança me olhou com uma cara de ódio, de que eu acabei de estragar o plano dela, o que foi passado pra ela, que eles estão lutando pela causa. Eu me lembro muito dessa cena. Eu olhava com uma cara de bronca porque eu poderia tomar um tiro no terraço e ela me olhava com uma cara de bronca e eu estava salvando a vida dela. Tive que tirar ela na marra enquanto ela batia nas minhas costas. Essa sem dúvida é uma das coisas mais complexas da Faixa de Gaza.

Você nunca vai ouvir de um soldado israelense, treinados como nós somos, que o nosso maior medo é enfrentar os terroristas. Nós somos preparados para isso. O que nós não somos preparados é para uma cena como essa. Como reagir com uma criança, que com certeza não entra na categoria de terrorista, mas que está defendendo túneis e depósitos de armas, sem ter uma arma na mão. Ela é inocente ou ela não é inocente? Se a minha arma cair no chão, ela vai pegar e me dar um tiro? É muito complexo.

Por isso, se pularmos para os dias de hoje, tem tanta ênfase para que as pessoas deixem o norte de Gaza enquanto os soldados estão chegando. Você vê muito bombardeio, mas não vê centenas de cadáveres nos escombros. Tem mortos, sim, sem a menor dúvida, mas a maior parte dos edifícios está vazia.

Então você não confia no número de mais de 10 mil de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde da Faixa de Gaza?

Eu desconfio de forma absoluta do número de mortos. Não digo que não tem mortos, mas desconfio porque não tem um membro 100% neutro lá. Em 2002, estava fazendo a patrulha por causa dos atentados suicidas e recebi a informação que ia chegar uma ambulância da Cruz Vermelha, mas que não podia passar porque tinham terroristas do Hamas lá dentro. Minutos depois para a ambulância e tinham quatro ou cinco terroristas mega armados para entrar dentro de Israel, chegar em um hospital e explodir o hospital. Por isso, eu desconfio dos números e dessas informações, inclusive do [secretário-geral da ONU] António Guterres.

Há mortos? Sim e isso tem a ver com o título da missão. Nós entramos em 2009 para procurar foguetes, não para acabar com o Hamas, que é a missão agora. Aquela criança que eu vi no prédio em 2014, eu não tenho dúvidas que ela seja do Hamas. Até porque a escola é do Hamas, o movimento juvenil é do Hamas. Acho que entre os mortos quase todos eu diria que são do Hamas. A pergunta é se estava com arma na mão ou se estavam só na preparação do Hamas. E vai ter mais mortos se o objetivo for acabar com o Hamas. Claro que não tem que matar inocentes deliberadamente, mas continuamos com a mesma complexidade de lutar e, de 2009 a 2023, passaram-se mais 14 anos de controle total do Hamas. Se antes era difícil, agora deve ser praticamente impossível.

Eu não sou comandante do Estado Maior, mas imagino que a ordem seja “saiam do Norte da Faixa de Gaza” e quem não sair está na linha de fogo. É triste, mas se você ê os vídeos do 7 de outubro, aquelas atrocidades não foram cometidas por pessoas uniformizadas, mas eram terroristas. [...]

Não estamos falando em acabar com todos os palestinos, não é isso. Mas as pessoas precisam sair (do Norte de Gaza) porque para entrar entrar de casa por casa e acabar com o Hamas é preciso que os civis não estejam lá.

Qual a principal diferença do Hamas que você enfrentou em 2009 e 2014 para esse que é capaz de lançar um ataque dessa proporção contra Israel e pegar de surpresa um dos exércitos mais poderosos do mundo?

Nós vemos o Irã, uma máquina de terrorismo avançada que opera internacionalmente. Vejo bastante influência do Hezbollah (grupo radical islâmico que atua no Líbano com patrocínio iraniano). Dá para ver que tem algo muito mais internacional do que era o Hamas antes, que era muito mais isolado, focado na causa palestina. Existe claramente um treinamento internacional avançado.

E sim, eles nos pegaram de surpresa mas isso também tem a ver com esse clima de paz em que Israel estava navegando. Os acordos com os Emirados Árabes, com o Bahrein... Fazer paz é reconhecer a existência de um país antes de qualquer coisa e Israel estava vivendo essa utopia.

Acho que foi uma surpresa muito grande, não só pela capacidade, mas porque há dois anos não tinha conflito com o Hamas. Em maio teve um conflito e entrou só a Jihad Islâmica e agora a gente sabe muito bem porque o Hamas não se meteu.

Você mencionou o radicalismo na Faixa de Gaza... Algumas pessoas vão argumentar que os bloqueios de Israel ao território palestino contribuíram para isso...

Essa pergunta tem duas respostas. A primeira é o Irã. Esta semana prenderam pessoas ligadas ao Hezbollah no Brasil. O que o brasileiro tem a ver com essa história, tirando o fato que eles conseguiram radicalizar pessoas no Brasil? O Irã está radicalizando mulçumanos em muitos lugares do mundo, isso é muito forte e é sabido.

E a segunda coisa tem a ver com a influência do Estado Islâmico. Até então, o radicalismo era afastado da televisão. Agora, tem propaganda terrorista no Instagram, no Tik Tok. Tem uma radicalização do fundamentalismo islâmico muito forte, não só no Oriente Médio, mas também aqui. Tem algo muito radical acontecendo no mundo e, se a gente pensa que o culpado é Israel, não tem como entender os outros conflitos.

Você falou do bloqueio, mas também tem bloqueio na Cisjordânia, eles também tem que passar pelos checkpoints, eles também não podem pegar um avião e sair para qualquer lugar, mas você não vê esse tipo de radicalização na população palestina na Cisjordânia. Você vê isso dentro de um movimento radical. O que aconteceu é parte de um processo em que o Irã está envolvido. É um processo de fundamentalismo e o mundo vai ter que lidar com ele.

Entrevista por Jéssica Petrovna

Repórter da editoria de Internacional. É potiguar, formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi trainee do Estadão (2018) e editora de internacional em Band Jornalismo e CNN Brasil.

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