Lembram-se da década de 1990, quando todos pensavam que a democracia liberal era o único jogo disponível e o fim da história estava próximo?
O quase assassinato do ex-presidente Donald Trump reforçou, em vez disso, um sentimento de que a crise está sobre nós. Tanto os democratas quanto os republicanos têm opiniões perigosamente desfavoráveis uns em relação aos outros. A confiança nas instituições está em declínio. De acordo com a mais recente pesquisa Gallup, apenas 30% dos americanos dizem ter bastante ou muita confiança na Suprema Corte, uma parcela menor tem confiança na presidência e apenas 9% têm bastante ou muita confiança no Congresso. A confiança nas escolas públicas, nos bancos, nas grandes empresas, nos meios de comunicação social e até nas organizações religiosas despencou de forma semelhante desde a década de 1970.
Os americanos também apoiam a democracia em níveis muito mais baixos do que antes, e a política parece um jogo de soma zero para as pessoas de ambos os lados da grande barreira. Acrescente-se a isto o aumento da violência política e a sensação de perigo iminente se intensifica.
Mas não se desesperem – ainda. Há soluções, se formos ousados o suficiente para compreendê-las. Precisamos de um novo contrato social democrático em que as pessoas possam acreditar, e que muito provavelmente virá do Partido Democrata. Tal proposta deve começar com um compromisso com políticas mais pró-trabalhadores. Deve envolver um manifesto crível que se afaste dos laços do partido com as empresas globais, incluindo o setor tecnológico, e um plano claro e viável de como o crescimento econômico e a baixa desigualdade podem ser combinados. Deve incluir um compromisso para fechar o abismo cultural que se abriu entre o Partido Democrata e muitos americanos da classe trabalhadora. Essas são algumas das causas mais profundas do nosso descontentamento, e devem ser abordadas.
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Se os americanos não estiverem à altura do desafio, a história tem muitos exemplos que deveriam nos alarmar. Em um ambiente em que as instituições não podem mediar desacordos, existe o perigo de que uma faísca desencadeie um ciclo de extremismo. Houve um aumento da violência política na Alemanha antes de os nazistas tomarem o poder, com paramilitares de direita matando opositores e os comunistas respondendo na mesma moeda. A situação na Itália, com a violência liderada pelos camisas pretas de Mussolini, não foi diferente. Também no Japão a violência política aumentou antes de os militares assumirem o controle na década de 1930.
Para diagnosticar e resolver os problemas da democracia, precisamos compreender o que a fez funcionar no passado e o que a aflige hoje. Este não é apenas um fenômeno americano. A democracia está em crise em todo o mundo, incluindo na Hungria, Polônia, Suécia, Índia, Turquia, Filipinas e no Brasil, e em toda a África Subsariana. Essas crises parecem estar enraizadas, ao menos em parte, em uma crença cada vez maior de que a democracia não conseguiu cumprir as suas promessas desde o fim da Guerra Fria.
O sucesso da democracia ao longo do século 20 se resume à presença do igualitarismo político (as pessoas têm poder de decisão nas suas próprias vidas e na forma como o país é governado) e no igualitarismo econômico (as recompensas do progresso foram partilhadas, ao menos até certo ponto).
Há algo atraente no igualitarismo político, ao menos em tese: ninguém é superior a ninguém, e temos poder de decisão a respeito de como a sociedade é organizada. A democracia é atraente porque consagra a ideia de governo pelo povo. Na verdade, a representação democrática tem aumentado historicamente de baixo para cima, quando grupos privados de direitos exigiram e receberam voz nos assuntos políticos.
Contudo, a democracia não é apenas o governo pelo povo; era também um governo para o povo. A democracia proporcionou o que o povo queria: crescimento salarial, bons empregos, baixo desemprego, educação e serviços públicos razoáveis. O poeta britânico John Betjeman captou a essência do contrato social democrático quando escreveu que a sua nação representa “democracia e saneamento adequado”.
Durante as décadas que se seguiram à 2.ª Guerra Mundial, o contrato social se manteve e a democracia trouxe também algum grau de igualitarismo econômico. A prosperidade parecia estar a caminho de se tornar verdadeiramente partilhada na maioria das democracias do mundo – mesmo que a discriminação contra alguns grupos, incluindo minorias e mulheres, continuasse, especialmente nos Estados Unidos. Os serviços que vão desde infraestruturas à saúde, educação, segurança e previdência social se expandiram rapidamente.
Este igualitarismo econômico foi perdido ao longo das quatro décadas mais recentes, mais visivelmente nos EUA, onde a partilha da prosperidade praticamente cessou. A desigualdade aumentou a partir de 1980. Não se tratava simplesmente de algumas pessoas se beneficiarem mais com o crescimento econômico do que outras. Embora os rendimentos dos americanos de alta escolaridade tenham aumentado rapidamente, os trabalhadores sem diploma universitário, e especialmente os homens, viram os seus rendimentos ajustados pela inflação diminuirem conforme viam seus empregos nos escritórios e nas fábricas serem automatizados por computadores e robôs, e serem transferidos para países com baixos salários.
Uma onda gigante de importações da China fechou fábricas e empresas. As demissões muitas vezes trouxeram uma recessão profunda e prolongada para comunidades inteiras. Para todos os efeitos práticos, apenas cerca de metade da população americana foi beneficiada pelo crescimento econômico desde o início da década de 1980.
O mal-estar não é apenas econômico. Muitas das mesmas comunidades também sofreram com o aumento da criminalidade e das taxas de famílias com um só adulto, bem como do consumo de álcool e opiáceos. Surpreendentemente, a tendência para uma maior expectativa de vida e uma saúde melhor, que tinha sido uma constante desde o início do século 20, também foi freada.
Isto se tornou ainda mais chocante porque a reversão do progresso em direção à prosperidade partilhada coincidiu com a sensação de que as pessoas tinham perdido grande parte da sua influência na política. É claro que as elites políticas definem a pauta em qualquer democracia, e sempre houve impedimentos à representação e à responsabilização nos EUA. No entanto, quando o cientista político Robert Dahl se propôs a investigar quem governava a política local em New Haven, na década de 1950, a resposta não era um partido estabelecido ou uma elite bem definida. Em vez disso, concluiu que a natureza do poder era plural e que o envolvimento das pessoas comuns na política era fundamental para o governo da cidade, e isto parecia ser verdade também para além de New Haven.
Isto contrasta fortemente com a forma como a maioria dos americanos se sente hoje. Do ponto de vista daqueles que vivem em comunidades deprimidas, os políticos permaneceram ociosos enquanto os seus bons empregos eram destruídos e a promessa de dinamismo econômico resultava em nada. A sensação de que os políticos servem as empresas multinacionais, os doadores ricos ou as elites globais se intensificou em muitos cantos do país.
Uma miríade de políticas, incluindo a desregulamentação financeira e a globalização, foram apresentadas aos eleitores como recomendações consensuais de especialistas. Depois de contabilizar o custo das exportações chinesas e o colapso financeiro de 2008, muitos começaram a ver isto não como as políticas criadas por especialistas, e sim como o tipo errado de tecnocracia.
Não ajudou o fato de muitos americanos sentirem (e isso lhes foi dito muitas vezes) que havia uma guerra cultural e que, nesta guerra, eles estavam em um lado diferente da maioria dos políticos, das lideranças empresariais e da maioria da classe gestora instruída. Foi um pequeno passo concluir que não restava muito governo do povo ou governo para o povo.
No entanto, a democracia não está morta. Mesmo a violência política não é prova de que as instituições democráticas estejam desmoronando. A década de 1960 testemunhou os assassinatos de John F. Kennedy, Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy, principalmente, e a década de 1970 viu atentados a bomba e atividades terroristas do Weather Underground e outras células extremistas. Na década de 1990, no auge da confiança do país na democracia, Timothy McVeigh matou 168 pessoas em Oklahoma City.
Também é verdade que a democracia ainda é a melhor regra para o jogo, mesmo que não seja a única. Nossa pesquisa mostra que as democracias alcançam um crescimento econômico mais rápido do que os regimes autocráticos, e o fazem investindo nas pessoas — defendendo mais educação e melhores cuidados de saúde, especialmente para os segmentos mais pobres da sociedade. Quando a democracia produz tais resultados, o apoio a ela aumenta entre os cidadãos.
Ainda assim, é claro que as instituições democráticas e os partidos políticos que são os seus porta-estandartes precisam recuperar uma maior legitimidade. E nem um melhor desempenho econômico nem a resiliência diante da violência política serão suficientes.
Quando as monarquias governaram, não o fizeram porque proporcionaram bons resultados econômicos. Nem governaram porque controlavam todas as armas. Eles tinham uma justificativa elaborada para sua legitimidade. No início da Inglaterra moderna, era o “direito divino dos reis”. Na China, era o “mandato celestial”.
Não são apenas os regimes autocráticos que dependem de tais filosofias. O movimento em direção a uma maior participação popular também exigiu legitimação e um novo contrato social. Na Inglaterra, isso foi articulado por filósofos como John Locke, que forneceu a base da “soberania popular”. A ascensão da democracia no século 20 se baseou na sua universalidade: funcionaria igualmente bem em todo o mundo, desde Espanha, Portugal e Grécia, até América Latina, Europa Oriental e África.
Essa confiança está em grande parte perdida. Os partidos de centro-esquerda, que costumavam obter uma fração significativa dos seus votos de operários e cidadãos sem diploma universitário, dependem agora cada vez mais de votos (e dinheiro) do eleitorado com ensino superior, profissionais e gestores.
Isto é ainda mais verdade nos EUA, onde o Partido Democrata foi gradualmente associado às preferências dos eleitores urbanos e com escolaridade mais elevada. Os políticos democratas evitam frequentemente políticas como programas de garantia de emprego, proteção comercial e fortalecimento dos sindicatos (o partido ainda é a favor da redistribuição, mas ao menos até o governo Biden, sua pauta era conseguir essa redistribuição predominantemente por meio de programas fiscais e de bem-estar, sem interferir no mercado).
Os partidos de centro-esquerda precisam liderar a quebra deste molde. Isso deve começar pelo corte dos laços com bilionários da tecnologia, gigantes da indústria farmacêutica e magnatas de Wall Street. É difícil acreditar que um partido que obtém financiamento e ideias dos muito ricos trabalhe arduamente para o bem-estar dos mais desfavorecidos. Devem promover à liderança pessoas com formação em trabalhos manuais e com diferentes percursos educativos. Uma forma visível e simbólica de conseguir isso é reservar uma fração das candidaturas e cargos de liderança a indivíduos sem diploma universitário. Estratégias semelhantes foram utilizadas com sucesso pelos social-democratas suecos e pelos governos locais na Índia.
Para onde a centro-esquerda vai, a centro-direita deve seguir. Nos EUA, os republicanos já fizeram incursões junto dos eleitores da classe trabalhadora, e um compromisso mais forte dos democratas pode empurrar o Partido Republicano em uma direção mais pró-trabalhador também. A reforma do financiamento de campanha ajudaria, incluindo dinheiro público para candidatos que recusam o apoio de grandes doadores. Há também motivos para introduzir a votação por representação proporcional, que pode permitir que novos partidos assumam o manto das causas da classe trabalhadora se os dois principais partidos não conseguirem se organizar para tal. Isto poderia começar no nível local, sem a necessidade de uma emenda constitucional.
Os partidos de centro-esquerda também devem reacender o igualitarismo político, e isso não pode ser feito a menos que recuem das guerras culturais. É louvável que a centro-esquerda tenha defendido e dado voz a alguns dos grupos mais desfavorecidos da sociedade, incluindo minorias e imigrantes. Devem também encontrar uma forma de articular essas ideias de uma forma que seja aceitável para uma base da classe trabalhadora. A ajuda humanitária aos refugiados pode atrair mais os eleitores quando combinada com uma forte segurança na fronteira.
A democracia não precisa seguir uma opinião majoritária em relação a todos os temas, mas não pode marginalizar as opiniões da maioria da população, mesmo em assuntos controvertidos como a imigração.
É provável que Donald Trump se torne mais popular após o atentado contra a sua vida. No entanto, um político cuja realização política mais distintiva é a redução de impostos que favoreceu os ricos não pode ser um verdadeiro representante dos trabalhadores. O seu histórico de retórica polarizadora e violenta, de personalização do poder e de erosão dos controles institucionais deixa claro que um segundo mandato de Trump enfraqueceria significativamente, e até mesmo ameaçaria fundamentalmente, as instituições democráticas. Alguns especialistas estão tão preocupados com o seu recém-ungido companheiro de chapa, senador J.D. Vance, quanto com Trump.
O lado positivo aqui é que o populismo econômico descarado de Vance e o apelo de Trump à classe trabalhadora podem forçar um exame de consciência mais profundo entre os democratas. Se eles tomarem medidas sérias para se reinventarem como o partido dos trabalhadores, Trump pode ter inadvertidamente colocado a democracia em um caminho melhor./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL