Dezenas de cônjuges e parentes de homens russos recrutados para lutar na linha de frente da guerra na Ucrânia estão tornando cada vez mais públicos o medo e a raiva sobre as terríveis condições às quais os recrutas foram submetidos antes e depois de cruzar a fronteira ― um comportamento arriscado diante de um governo que tem reprimido qualquer sinal de contestação à versão oficial sobre o conflito.
As reclamações dos parentes dos recrutas, pessoas que normalmente não se envolveriam nos debates sobre política na Rússia, estão provocando a ira do Kremlin pela repercussão nas redes sociais, na imprensa independente russa e entre jornalistas estrangeiros.
Familiares dizem que os soldados mobilizados foram enviados para a batalha com pouco treinamento, equipamento ruim e muitas vezes sem ordens claras. Muitos estão exaustos e confusos, segundo suas famílias. Alguns vagam perdidos na floresta por dias. Outros se recusam a lutar.
Irina Sokolova, uma mulher de 37 anos e moradora da cidade de Voronezh, é uma dessas vozes de contestação. O marido dela, um dos soldado recrutados, ligou para ela de uma floresta do outro lado da fronteira no mês passado, soluçando, quase desmoronando.
“Eles estão mentindo na televisão”, lamentou, referindo-se às propagandas da televisão estatal que minimizam os fracassos russos e retratam uma guerra de vida ou morte pela sobrevivência da Rússia contra os EUA e seus aliados.
Sokolova também chorou com a ligação, temendo pelo marido e pelo filho deles, que ainda não completou um ano. “É claro que ele não tinha ideia de como seria terrível lá”, disse Sokolova ao The Washington Post. “Nós assistimos nossos canais de TV federais e eles dizem que tudo está perfeito.”
Os parentes normalmente não criticam o presidente Vladimir Putin ou mesmo a guerra, mas seus vídeos expuseram o moral mais baixo de muitos recrutas, enquanto a Rússia tenta superar suas perdas recentes lançando 318.000 reforços na batalha.
Yana, uma trabalhadora de transporte de São Petersburgo, era uma fervorosa patriota pró-guerra até que seu parceiro foi mobilizado.
Guerra na Ucrânia
Em entrevista por telefone, Yana confirmou relatos em vídeo de outras esposas de militares de que os homens tinham que comprar seus próprios uniformes e botas quentes e tinham pouco treinamento. Na Ucrânia, eles não receberam comida ou água.
“Eles não têm ordens e não têm tarefas”, disse ela. “Falei com meu marido ontem e ele disse que não tem ideia do que fazer. Eles foram simplesmente abandonados e perderam toda a confiança, toda a fé nas autoridades”.
Nos vídeos, as esposas recitam listas de queixas com vozes trêmulas. Os recrutas posam com armaduras que mal cobrem suas costelas ou se filmam nas florestas ucranianas, listando seus mortos e reclamando que seus oficiais não estão em lugar nenhum.
Os detalhes nos vídeos não puderam ser verificados de forma independente, mas são consistentes com os relatos que os familiares forneceram em entrevistas ao The Washington Post e com relatórios da mídia russa independente, como a ASTRA, que expôs sete prisões subterrâneas para desertores em Luhansk.
O marido de Sokolova foi mobilizado para lutar no 252º Regimento de Fuzileiros Motorizados em 22 de setembro. Ele disse a ela que não recebeu treinamento militar “e em 26 de setembro já estava na Ucrânia”, disse ela.
Ele ligou no final do mês passado, tendo sobrevivido por pouco a uma grande batalha na qual sua unidade foi cercada e muitos foram mortos. Ele e outros dois escaparam sem mochilas e agasalhos, mas se perderam e acabaram vagando por uma floresta.
“Eles foram jogados no fogo, por assim dizer, na primeira linha de frente, mas não são militares. Eles não sabem lutar. Eles não podem fazer isso”, disse Sokolova, acrescentando que seu marido estava com fortes dores de pancreatite. “Sinto como é horrível para ele estar lá”, disse ela. “Meu coração está sendo dilacerado.”
Famílias de outros homens mobilizados para lutar no regimento disseram que seus entes queridos foram enviados para a linha de frente perto de Svatove, uma pequena cidade na região de Luhansk, em seu primeiro dia na Ucrânia e receberam uma pá entre 30 homens para cavar trincheiras. Falando em um apelo conjunto em vídeo enviado primeiro à mídia russa independente Viorstka, eles disseram que os comandantes “fugiram”, deixando os homens para enfrentar três dias de bombardeio pesado.
Várias dezenas de soldados mobilizados do regimento caminharam cerca de 160 quilômetros até Milove, na fronteira com a Rússia, e exigiram o retorno à sua base perto de Voronezh, de acordo com seu vídeo em 3 de novembro.
Eles foram levados brevemente para a vizinha Valuiki, na Rússia, mas seu pedido foi ignorado. “Nós escrevemos pedidos. Nós escrevemos relatórios. Fizemos tudo, mas ninguém nos ouve. Ninguém quer nos ouvir”, disse um soldado, Konstantin Voropaiev, no vídeo, no qual também pedia ajuda legal.
O marido de Sokolova ligou para ela em pânico no mesmo dia de Valuiki, dizendo que ele e outros estavam sendo enviados de volta para a batalha.
Em 28 de outubro, o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, disse a Putin que os primeiros problemas de equipamento e treinamento de soldados mobilizados foram resolvidos.
O analista militar Konrad Muzika, da Rochan Consulting, com sede na Polônia, escreveu em uma análise recente que, apesar do “moral abismal” dos recrutas, o grande volume deles poderia ajudar a Rússia no campo de batalha.
À medida que os vídeos proliferam, as autoridades russas parecem estar perdendo a paciência. Um soldado mobilizado, Alexander Leshkov, pode pegar até 15 anos de prisão depois de xingar um oficial em um vídeo, empurrá-lo e reclamar dos coletes à prova de balas de baixa qualidade da unidade, disse seu advogado, Henri Tsiskarishvili.
“Isso é uma profanação, uma imitação de tiro, uma imitação de exercícios, uma imitação de uma formação”, Leshkov se enfureceu.
Yana e seu marido, que têm um filho de 4 anos, se casaram pouco antes de os homens serem enviados para a guerra, em uma cerimônia que uniu outros 43 casais. O Post concordou em não usar seu nome completo para protegê-la de prisão e processo.
No apartamento do casal, a televisão estava sempre ligada, transmitindo a versão do Kremlin - de que a Rússia está lutando contra os Estados Unidos, não a Ucrânia. “Não sabemos de mais nada”, disse Yana. “Estamos tão acostumados a acreditar no que nos dizem.”
Mas depois que seu marido foi convocado, ela deu a televisão porque a estava tornando “agressiva”. Ela disse temer pela vida de seu marido, mas disse que não culpa Putin, “porque ele é uma pessoa inteligente”.
“Estamos absolutamente confusos, perdidos e nos sentimos abandonados”, disse ela. “Estamos chorando de manhã à noite.”
Andrei Kolesnikov, analista do Carnegie Endowment for International Peace, disse que a propaganda do Kremlin está funcionando – por enquanto – com os protestos em vídeo não direcionados a Putin, ou mesmo à guerra.
“Putin quer que as pessoas compartilhem a responsabilidade pela guerra com ele”, disse Kolesnikov. “Ele quer que seus corpos e vidas sejam sacrificados no altar da luta contra a Otan, o Ocidente e o mal global. Essa estratégia de glorificar a bucha de canhão e heroizar a morte é arriscada, em uma sociedade mais ou menos modernizada que não estava pronta para se envolver fisicamente nas trincheiras.”
Após repetidos reveses militares e muitas baixas, o apoio à guerra está diminuindo. O pesquisador independente do Levada Center informou em 1º de novembro que 57% dos russos querem negociações de paz, enquanto 36% querem continuar lutando.
Sokolova disse que os parentes dos mobilizados “percebem o que está acontecendo, mas as pessoas cujos parentes não foram mobilizados veem o mundo com lentes cor-de-rosa. Eles não têm ideia do que está acontecendo e não estão interessados”.
Yana disse ao filho que seu pai é um super-herói, lutando contra o mal. O conto de fadas combina com a propaganda imperialista da Rússia, mas, no fundo, não soa verdadeiro. No fundo, Yana disse que está com medo de que seu marido nunca mais telefone e que seu filho cresça sem pai.
“Sou apenas uma mulher comum e quero viver em paz”, disse ela. “Isso é tudo o que eu quero”.