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Opinião|A crise em torno de Israel e das tropas da ONU presentes no Líbano


Interesses diversos de países na região e problemas e desinformação acerca do papel da Unifil dificultam resoluções no Oriente Médio

Por Filipe Figueiredo
Atualização:

Nas últimas semanas, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, conhecida pela sigla inglesa Unifil, foi colocada no centro de troca de acusações e narrativas entre Israel, a ONU e os países que integram a força de manutenção da paz. Isso se tornou uma crise no último dia nove de outubro, quando dois integrantes da força foram feridos por disparos israelenses, o que foi classificado pelo governo italiano como “intencional”, “inadmissível” e “possível crime de guerra”. Por trás dessa crise estão interesses diversos e também problemas e desinformação sobre o mandato da Unifil.

Antes de mais nada, duas coisas precisam ser desmistificadas. A primeira é: não existe “a ONU”. É muito comum ver reações como “a ONU não faz nada” ou “a ONU precisa fazer algo”. A Organização das Nações Unidas não tem um poder executivo uníssono e supremo. A autoridade de seu secretariado, suas missões e suas agências é reduzida e, principalmente, é concedida pelos Estados, em mandatos. Evidentemente que, em um mundo dividido e em crises delicadas, essa autoridade costuma ser ainda menor, já que os interesses dos Estados irão divergir e dificilmente se chega em um consenso amplo.

A segunda é que as forças de manutenção da paz da ONU não são todas iguais, muito menos possuem autoridade para agir como em filme de ação Hollywood e sair atirando contra os vilões. Existem diferentes tipos de forças, com diferentes mandatos. Em suma, destacam-se três tipos. As de manutenção de paz, ou “peacekeeping” em inglês, estabelecidas após um cessar-fogo ou conflito, e que monitoram e relatam. Existem também as de imposição da paz, “peace enforcement”, que agem contra uma agressão e possuem amplo mandato para uso da força, como as da Guerra do Golfo ou da Guerra Civil da Somália. Esse modelo foi deixado de lado por vários motivos, inclusive pelo fato de que poucos países estão dispostos a pagar esse preço em vidas humanas.

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Imagem de 2019 mostra membros da Unifil no sul do Líbano, enquanto observam escavadeira destruir túnel do Hezbollah. Forças foram atacadas por Israel na última semana Foto: Hussein Malla/AP

Finalmente, as de construção de paz, “peace building”, em que uma força militar pode agir sob autoridade de uma missão civil da ONU, como parte de processo mais amplo. Exemplo é a participação brasileira no Haiti, liderando o componente militar da MINUSTAH.

No caso da Unifil, a missão é do primeiro tipo. Seu mandato original, de 1978, é de observar e relatar, baseado no capítulo VI da Carta da ONU, e não no capítulo VII, que autoriza o uso da força.

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A Unifil foi criada no contexto da primeira invasão do Líbano por Israel. Sua autoridade foi reformada em 2006, após outra invasão israelense, pela Resolução 1701. Seu mandato prevê, dentre outras obrigações, nos parágrafos 8 e 11, a assistência, sob solicitação de autoridades do Estado libanês, para o estabelecimento de um sul do Líbano sem armamentos que não do exército libanês, sem tropas estrangeiras sem o consentimento libanês e o monitoramento da fronteira. A Unifil também desmantelou dezenas de milhares de minas terrestres.

O texto da resolução pode ser consultado livremente por qualquer leitor. Repete-se, ele coloca a Unifil em um papel de assistência às autoridades libanesas, que possuem a autoridade e soberania da região. A Unifil simplesmente não pode agir fora desses parâmetros jurídicos e, por exemplo, unilateralmente fechar túneis, mesmo que utilizados pelo Hezbollah. Quem disser que a Unifil possui a autoridade ou obrigação de desmantelar o Hezbollah ou qualquer outro grupo, por exemplo, estará mentindo, já que essa obrigação, pelo texto, é das autoridades libanesas, que, para esse fim, podem solicitar a assistência da Unifil. E não o fizeram, não o fazem e não o farão pelos motivos que veremos adiante.

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Novamente, a ideia de que “a ONU” pode sair agindo de qualquer maneira é falsa. Líbano e Israel são Estados-membros da ONU, o Hezbollah não. Esses três atores não estão na mesma prateleira, no ditado popular. Os problemas das limitações da Unifil já foram tema de observações dos EUA e da França em diferentes momentos. O caso libanês é mais um em que a cooperação internacional e “a ONU” servem de saco de pancadas quando os problemas estão em outros lugares. A questão é que, hoje, o Líbano é um Estado falido, responsabilidade de seus próprios atores políticos e de sua violência sectária, agravada por um histórico marcado pelo imperialismo francês e por interesses regionais.

Não é possível transformar esta já extensa coluna em uma aula de História, mas, por décadas, o Líbano foi o campo de batalha entre os próprios libaneses, além de israelenses, palestinos e sírios. A economia libanesa, gerida de forma incompetente e corrupta, se afundou ainda mais como efeito colateral das sanções dos EUA contra a ditadura síria de Bashar al-Assad. O exército libanês, comandado por sunitas e cristãos e equipado por franceses e por sauditas, possui uma fração do poderio do xiita Hezbollah, que age quase sem contestação interna, financiado e armado pelo Irã, que determina sua agenda em relação a Israel. Os sunitas e xiitas libaneses, embora tenham travado conflitos entre si, hoje, em linhas gerais, veem em Israel um inimigo em comum e um invasor.

O Hezbollah passou de milícia armada para “Estado paralelo” e, hoje, é quase um “Estado dentro do Estado”, com presença na política institucional. As autoridades libanesas, então, primeiro, não conseguiriam desarmar sozinhas o Hezbollah. Segundo, em parte não querem fazer isso, por terem em Israel o “inimigo comum”, daí a falta de cooperação com a Unifil. A soberania libanesa, assim como a da Síria e a do Iraque, hoje, é uma ficção, especialmente a de seus espaços aéreos. Os países já citados, mais EUA, Rússia e Turquia, fazem basicamente o que querem ali. É nesse vácuo de autoridade e nessa colcha de retalhos de relações e interesses que reside o verdadeiro problema, de muito difícil solução.

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Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Culpar “a ONU” e suas missões e agências é o caminho mais fácil. No caso do governo Netanyahu, é também o caminho mais conveniente. O governo israelense, ao questionar a legitimidade da Unifil e destruir sua reputação, com acusações como cumplicidade com o Hezbollah, “viés”, e similares, omite que um dos papeis da Unifil é impedir a presença de tropas estrangeiras ali. Israelenses, inclusive, que ocupavam a região em 2006. Também permite manter a retórica maniqueísta de uma guerra da “luz” contra “as trevas”. Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Colaboram para essa estratégia do governo Netanyahu o fato de partes importantes do contingente terrestre da Unifil serem da Irlanda, Estado que habitualmente apoia pleitos palestinos, e da Espanha, país que lidera a missão e cujo governo de esquerda é crítico do governo Netanyahu. O premiê israelense chegou ao ponto de fazer uma pantomima pedindo para o Secretário-geral da ONU, António Guterres, retirar a Unifil do Líbano e permitir o avanço das tropas israelenses, como se o político português fosse um general com autoridade executiva, quando, na verdade, se trata de tema determinado pelo Conselho de Segurança.

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Essa estratégia do governo Netanyahu contra agências e missões do sistema ONU não é nova e pretende esconder o fato de que, hoje, a maioria da comunidade internacional condena as ações de seu governo. Essa maioria não é mais de apenas monarquias árabes do Golfo ou ditaduras caribenhas, mas inclui países como França e Japão, democracias aliadas dos EUA. A premiê italiana Giorgia Meloni, de direita, inclusive anunicou visita à Unifil. Para negar a existência dessa maioria, vende-se como “viés da ONU”. Netanyahu espera que, com uma vitória de Trump, a extensão da Unifil seja simplesmente vetada pelos EUA, como quase ocorreu em 2020. O fato é que somente um Líbano estável e próspero representará uma verdadeira solução, embora isso não seja a prioridade da maioria de seus vizinhos regionais.

Nas últimas semanas, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, conhecida pela sigla inglesa Unifil, foi colocada no centro de troca de acusações e narrativas entre Israel, a ONU e os países que integram a força de manutenção da paz. Isso se tornou uma crise no último dia nove de outubro, quando dois integrantes da força foram feridos por disparos israelenses, o que foi classificado pelo governo italiano como “intencional”, “inadmissível” e “possível crime de guerra”. Por trás dessa crise estão interesses diversos e também problemas e desinformação sobre o mandato da Unifil.

Antes de mais nada, duas coisas precisam ser desmistificadas. A primeira é: não existe “a ONU”. É muito comum ver reações como “a ONU não faz nada” ou “a ONU precisa fazer algo”. A Organização das Nações Unidas não tem um poder executivo uníssono e supremo. A autoridade de seu secretariado, suas missões e suas agências é reduzida e, principalmente, é concedida pelos Estados, em mandatos. Evidentemente que, em um mundo dividido e em crises delicadas, essa autoridade costuma ser ainda menor, já que os interesses dos Estados irão divergir e dificilmente se chega em um consenso amplo.

A segunda é que as forças de manutenção da paz da ONU não são todas iguais, muito menos possuem autoridade para agir como em filme de ação Hollywood e sair atirando contra os vilões. Existem diferentes tipos de forças, com diferentes mandatos. Em suma, destacam-se três tipos. As de manutenção de paz, ou “peacekeeping” em inglês, estabelecidas após um cessar-fogo ou conflito, e que monitoram e relatam. Existem também as de imposição da paz, “peace enforcement”, que agem contra uma agressão e possuem amplo mandato para uso da força, como as da Guerra do Golfo ou da Guerra Civil da Somália. Esse modelo foi deixado de lado por vários motivos, inclusive pelo fato de que poucos países estão dispostos a pagar esse preço em vidas humanas.

Imagem de 2019 mostra membros da Unifil no sul do Líbano, enquanto observam escavadeira destruir túnel do Hezbollah. Forças foram atacadas por Israel na última semana Foto: Hussein Malla/AP

Finalmente, as de construção de paz, “peace building”, em que uma força militar pode agir sob autoridade de uma missão civil da ONU, como parte de processo mais amplo. Exemplo é a participação brasileira no Haiti, liderando o componente militar da MINUSTAH.

No caso da Unifil, a missão é do primeiro tipo. Seu mandato original, de 1978, é de observar e relatar, baseado no capítulo VI da Carta da ONU, e não no capítulo VII, que autoriza o uso da força.

A Unifil foi criada no contexto da primeira invasão do Líbano por Israel. Sua autoridade foi reformada em 2006, após outra invasão israelense, pela Resolução 1701. Seu mandato prevê, dentre outras obrigações, nos parágrafos 8 e 11, a assistência, sob solicitação de autoridades do Estado libanês, para o estabelecimento de um sul do Líbano sem armamentos que não do exército libanês, sem tropas estrangeiras sem o consentimento libanês e o monitoramento da fronteira. A Unifil também desmantelou dezenas de milhares de minas terrestres.

O texto da resolução pode ser consultado livremente por qualquer leitor. Repete-se, ele coloca a Unifil em um papel de assistência às autoridades libanesas, que possuem a autoridade e soberania da região. A Unifil simplesmente não pode agir fora desses parâmetros jurídicos e, por exemplo, unilateralmente fechar túneis, mesmo que utilizados pelo Hezbollah. Quem disser que a Unifil possui a autoridade ou obrigação de desmantelar o Hezbollah ou qualquer outro grupo, por exemplo, estará mentindo, já que essa obrigação, pelo texto, é das autoridades libanesas, que, para esse fim, podem solicitar a assistência da Unifil. E não o fizeram, não o fazem e não o farão pelos motivos que veremos adiante.

Novamente, a ideia de que “a ONU” pode sair agindo de qualquer maneira é falsa. Líbano e Israel são Estados-membros da ONU, o Hezbollah não. Esses três atores não estão na mesma prateleira, no ditado popular. Os problemas das limitações da Unifil já foram tema de observações dos EUA e da França em diferentes momentos. O caso libanês é mais um em que a cooperação internacional e “a ONU” servem de saco de pancadas quando os problemas estão em outros lugares. A questão é que, hoje, o Líbano é um Estado falido, responsabilidade de seus próprios atores políticos e de sua violência sectária, agravada por um histórico marcado pelo imperialismo francês e por interesses regionais.

Não é possível transformar esta já extensa coluna em uma aula de História, mas, por décadas, o Líbano foi o campo de batalha entre os próprios libaneses, além de israelenses, palestinos e sírios. A economia libanesa, gerida de forma incompetente e corrupta, se afundou ainda mais como efeito colateral das sanções dos EUA contra a ditadura síria de Bashar al-Assad. O exército libanês, comandado por sunitas e cristãos e equipado por franceses e por sauditas, possui uma fração do poderio do xiita Hezbollah, que age quase sem contestação interna, financiado e armado pelo Irã, que determina sua agenda em relação a Israel. Os sunitas e xiitas libaneses, embora tenham travado conflitos entre si, hoje, em linhas gerais, veem em Israel um inimigo em comum e um invasor.

O Hezbollah passou de milícia armada para “Estado paralelo” e, hoje, é quase um “Estado dentro do Estado”, com presença na política institucional. As autoridades libanesas, então, primeiro, não conseguiriam desarmar sozinhas o Hezbollah. Segundo, em parte não querem fazer isso, por terem em Israel o “inimigo comum”, daí a falta de cooperação com a Unifil. A soberania libanesa, assim como a da Síria e a do Iraque, hoje, é uma ficção, especialmente a de seus espaços aéreos. Os países já citados, mais EUA, Rússia e Turquia, fazem basicamente o que querem ali. É nesse vácuo de autoridade e nessa colcha de retalhos de relações e interesses que reside o verdadeiro problema, de muito difícil solução.

Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Culpar “a ONU” e suas missões e agências é o caminho mais fácil. No caso do governo Netanyahu, é também o caminho mais conveniente. O governo israelense, ao questionar a legitimidade da Unifil e destruir sua reputação, com acusações como cumplicidade com o Hezbollah, “viés”, e similares, omite que um dos papeis da Unifil é impedir a presença de tropas estrangeiras ali. Israelenses, inclusive, que ocupavam a região em 2006. Também permite manter a retórica maniqueísta de uma guerra da “luz” contra “as trevas”. Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Colaboram para essa estratégia do governo Netanyahu o fato de partes importantes do contingente terrestre da Unifil serem da Irlanda, Estado que habitualmente apoia pleitos palestinos, e da Espanha, país que lidera a missão e cujo governo de esquerda é crítico do governo Netanyahu. O premiê israelense chegou ao ponto de fazer uma pantomima pedindo para o Secretário-geral da ONU, António Guterres, retirar a Unifil do Líbano e permitir o avanço das tropas israelenses, como se o político português fosse um general com autoridade executiva, quando, na verdade, se trata de tema determinado pelo Conselho de Segurança.

Essa estratégia do governo Netanyahu contra agências e missões do sistema ONU não é nova e pretende esconder o fato de que, hoje, a maioria da comunidade internacional condena as ações de seu governo. Essa maioria não é mais de apenas monarquias árabes do Golfo ou ditaduras caribenhas, mas inclui países como França e Japão, democracias aliadas dos EUA. A premiê italiana Giorgia Meloni, de direita, inclusive anunicou visita à Unifil. Para negar a existência dessa maioria, vende-se como “viés da ONU”. Netanyahu espera que, com uma vitória de Trump, a extensão da Unifil seja simplesmente vetada pelos EUA, como quase ocorreu em 2020. O fato é que somente um Líbano estável e próspero representará uma verdadeira solução, embora isso não seja a prioridade da maioria de seus vizinhos regionais.

Nas últimas semanas, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, conhecida pela sigla inglesa Unifil, foi colocada no centro de troca de acusações e narrativas entre Israel, a ONU e os países que integram a força de manutenção da paz. Isso se tornou uma crise no último dia nove de outubro, quando dois integrantes da força foram feridos por disparos israelenses, o que foi classificado pelo governo italiano como “intencional”, “inadmissível” e “possível crime de guerra”. Por trás dessa crise estão interesses diversos e também problemas e desinformação sobre o mandato da Unifil.

Antes de mais nada, duas coisas precisam ser desmistificadas. A primeira é: não existe “a ONU”. É muito comum ver reações como “a ONU não faz nada” ou “a ONU precisa fazer algo”. A Organização das Nações Unidas não tem um poder executivo uníssono e supremo. A autoridade de seu secretariado, suas missões e suas agências é reduzida e, principalmente, é concedida pelos Estados, em mandatos. Evidentemente que, em um mundo dividido e em crises delicadas, essa autoridade costuma ser ainda menor, já que os interesses dos Estados irão divergir e dificilmente se chega em um consenso amplo.

A segunda é que as forças de manutenção da paz da ONU não são todas iguais, muito menos possuem autoridade para agir como em filme de ação Hollywood e sair atirando contra os vilões. Existem diferentes tipos de forças, com diferentes mandatos. Em suma, destacam-se três tipos. As de manutenção de paz, ou “peacekeeping” em inglês, estabelecidas após um cessar-fogo ou conflito, e que monitoram e relatam. Existem também as de imposição da paz, “peace enforcement”, que agem contra uma agressão e possuem amplo mandato para uso da força, como as da Guerra do Golfo ou da Guerra Civil da Somália. Esse modelo foi deixado de lado por vários motivos, inclusive pelo fato de que poucos países estão dispostos a pagar esse preço em vidas humanas.

Imagem de 2019 mostra membros da Unifil no sul do Líbano, enquanto observam escavadeira destruir túnel do Hezbollah. Forças foram atacadas por Israel na última semana Foto: Hussein Malla/AP

Finalmente, as de construção de paz, “peace building”, em que uma força militar pode agir sob autoridade de uma missão civil da ONU, como parte de processo mais amplo. Exemplo é a participação brasileira no Haiti, liderando o componente militar da MINUSTAH.

No caso da Unifil, a missão é do primeiro tipo. Seu mandato original, de 1978, é de observar e relatar, baseado no capítulo VI da Carta da ONU, e não no capítulo VII, que autoriza o uso da força.

A Unifil foi criada no contexto da primeira invasão do Líbano por Israel. Sua autoridade foi reformada em 2006, após outra invasão israelense, pela Resolução 1701. Seu mandato prevê, dentre outras obrigações, nos parágrafos 8 e 11, a assistência, sob solicitação de autoridades do Estado libanês, para o estabelecimento de um sul do Líbano sem armamentos que não do exército libanês, sem tropas estrangeiras sem o consentimento libanês e o monitoramento da fronteira. A Unifil também desmantelou dezenas de milhares de minas terrestres.

O texto da resolução pode ser consultado livremente por qualquer leitor. Repete-se, ele coloca a Unifil em um papel de assistência às autoridades libanesas, que possuem a autoridade e soberania da região. A Unifil simplesmente não pode agir fora desses parâmetros jurídicos e, por exemplo, unilateralmente fechar túneis, mesmo que utilizados pelo Hezbollah. Quem disser que a Unifil possui a autoridade ou obrigação de desmantelar o Hezbollah ou qualquer outro grupo, por exemplo, estará mentindo, já que essa obrigação, pelo texto, é das autoridades libanesas, que, para esse fim, podem solicitar a assistência da Unifil. E não o fizeram, não o fazem e não o farão pelos motivos que veremos adiante.

Novamente, a ideia de que “a ONU” pode sair agindo de qualquer maneira é falsa. Líbano e Israel são Estados-membros da ONU, o Hezbollah não. Esses três atores não estão na mesma prateleira, no ditado popular. Os problemas das limitações da Unifil já foram tema de observações dos EUA e da França em diferentes momentos. O caso libanês é mais um em que a cooperação internacional e “a ONU” servem de saco de pancadas quando os problemas estão em outros lugares. A questão é que, hoje, o Líbano é um Estado falido, responsabilidade de seus próprios atores políticos e de sua violência sectária, agravada por um histórico marcado pelo imperialismo francês e por interesses regionais.

Não é possível transformar esta já extensa coluna em uma aula de História, mas, por décadas, o Líbano foi o campo de batalha entre os próprios libaneses, além de israelenses, palestinos e sírios. A economia libanesa, gerida de forma incompetente e corrupta, se afundou ainda mais como efeito colateral das sanções dos EUA contra a ditadura síria de Bashar al-Assad. O exército libanês, comandado por sunitas e cristãos e equipado por franceses e por sauditas, possui uma fração do poderio do xiita Hezbollah, que age quase sem contestação interna, financiado e armado pelo Irã, que determina sua agenda em relação a Israel. Os sunitas e xiitas libaneses, embora tenham travado conflitos entre si, hoje, em linhas gerais, veem em Israel um inimigo em comum e um invasor.

O Hezbollah passou de milícia armada para “Estado paralelo” e, hoje, é quase um “Estado dentro do Estado”, com presença na política institucional. As autoridades libanesas, então, primeiro, não conseguiriam desarmar sozinhas o Hezbollah. Segundo, em parte não querem fazer isso, por terem em Israel o “inimigo comum”, daí a falta de cooperação com a Unifil. A soberania libanesa, assim como a da Síria e a do Iraque, hoje, é uma ficção, especialmente a de seus espaços aéreos. Os países já citados, mais EUA, Rússia e Turquia, fazem basicamente o que querem ali. É nesse vácuo de autoridade e nessa colcha de retalhos de relações e interesses que reside o verdadeiro problema, de muito difícil solução.

Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Culpar “a ONU” e suas missões e agências é o caminho mais fácil. No caso do governo Netanyahu, é também o caminho mais conveniente. O governo israelense, ao questionar a legitimidade da Unifil e destruir sua reputação, com acusações como cumplicidade com o Hezbollah, “viés”, e similares, omite que um dos papeis da Unifil é impedir a presença de tropas estrangeiras ali. Israelenses, inclusive, que ocupavam a região em 2006. Também permite manter a retórica maniqueísta de uma guerra da “luz” contra “as trevas”. Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Colaboram para essa estratégia do governo Netanyahu o fato de partes importantes do contingente terrestre da Unifil serem da Irlanda, Estado que habitualmente apoia pleitos palestinos, e da Espanha, país que lidera a missão e cujo governo de esquerda é crítico do governo Netanyahu. O premiê israelense chegou ao ponto de fazer uma pantomima pedindo para o Secretário-geral da ONU, António Guterres, retirar a Unifil do Líbano e permitir o avanço das tropas israelenses, como se o político português fosse um general com autoridade executiva, quando, na verdade, se trata de tema determinado pelo Conselho de Segurança.

Essa estratégia do governo Netanyahu contra agências e missões do sistema ONU não é nova e pretende esconder o fato de que, hoje, a maioria da comunidade internacional condena as ações de seu governo. Essa maioria não é mais de apenas monarquias árabes do Golfo ou ditaduras caribenhas, mas inclui países como França e Japão, democracias aliadas dos EUA. A premiê italiana Giorgia Meloni, de direita, inclusive anunicou visita à Unifil. Para negar a existência dessa maioria, vende-se como “viés da ONU”. Netanyahu espera que, com uma vitória de Trump, a extensão da Unifil seja simplesmente vetada pelos EUA, como quase ocorreu em 2020. O fato é que somente um Líbano estável e próspero representará uma verdadeira solução, embora isso não seja a prioridade da maioria de seus vizinhos regionais.

Nas últimas semanas, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, conhecida pela sigla inglesa Unifil, foi colocada no centro de troca de acusações e narrativas entre Israel, a ONU e os países que integram a força de manutenção da paz. Isso se tornou uma crise no último dia nove de outubro, quando dois integrantes da força foram feridos por disparos israelenses, o que foi classificado pelo governo italiano como “intencional”, “inadmissível” e “possível crime de guerra”. Por trás dessa crise estão interesses diversos e também problemas e desinformação sobre o mandato da Unifil.

Antes de mais nada, duas coisas precisam ser desmistificadas. A primeira é: não existe “a ONU”. É muito comum ver reações como “a ONU não faz nada” ou “a ONU precisa fazer algo”. A Organização das Nações Unidas não tem um poder executivo uníssono e supremo. A autoridade de seu secretariado, suas missões e suas agências é reduzida e, principalmente, é concedida pelos Estados, em mandatos. Evidentemente que, em um mundo dividido e em crises delicadas, essa autoridade costuma ser ainda menor, já que os interesses dos Estados irão divergir e dificilmente se chega em um consenso amplo.

A segunda é que as forças de manutenção da paz da ONU não são todas iguais, muito menos possuem autoridade para agir como em filme de ação Hollywood e sair atirando contra os vilões. Existem diferentes tipos de forças, com diferentes mandatos. Em suma, destacam-se três tipos. As de manutenção de paz, ou “peacekeeping” em inglês, estabelecidas após um cessar-fogo ou conflito, e que monitoram e relatam. Existem também as de imposição da paz, “peace enforcement”, que agem contra uma agressão e possuem amplo mandato para uso da força, como as da Guerra do Golfo ou da Guerra Civil da Somália. Esse modelo foi deixado de lado por vários motivos, inclusive pelo fato de que poucos países estão dispostos a pagar esse preço em vidas humanas.

Imagem de 2019 mostra membros da Unifil no sul do Líbano, enquanto observam escavadeira destruir túnel do Hezbollah. Forças foram atacadas por Israel na última semana Foto: Hussein Malla/AP

Finalmente, as de construção de paz, “peace building”, em que uma força militar pode agir sob autoridade de uma missão civil da ONU, como parte de processo mais amplo. Exemplo é a participação brasileira no Haiti, liderando o componente militar da MINUSTAH.

No caso da Unifil, a missão é do primeiro tipo. Seu mandato original, de 1978, é de observar e relatar, baseado no capítulo VI da Carta da ONU, e não no capítulo VII, que autoriza o uso da força.

A Unifil foi criada no contexto da primeira invasão do Líbano por Israel. Sua autoridade foi reformada em 2006, após outra invasão israelense, pela Resolução 1701. Seu mandato prevê, dentre outras obrigações, nos parágrafos 8 e 11, a assistência, sob solicitação de autoridades do Estado libanês, para o estabelecimento de um sul do Líbano sem armamentos que não do exército libanês, sem tropas estrangeiras sem o consentimento libanês e o monitoramento da fronteira. A Unifil também desmantelou dezenas de milhares de minas terrestres.

O texto da resolução pode ser consultado livremente por qualquer leitor. Repete-se, ele coloca a Unifil em um papel de assistência às autoridades libanesas, que possuem a autoridade e soberania da região. A Unifil simplesmente não pode agir fora desses parâmetros jurídicos e, por exemplo, unilateralmente fechar túneis, mesmo que utilizados pelo Hezbollah. Quem disser que a Unifil possui a autoridade ou obrigação de desmantelar o Hezbollah ou qualquer outro grupo, por exemplo, estará mentindo, já que essa obrigação, pelo texto, é das autoridades libanesas, que, para esse fim, podem solicitar a assistência da Unifil. E não o fizeram, não o fazem e não o farão pelos motivos que veremos adiante.

Novamente, a ideia de que “a ONU” pode sair agindo de qualquer maneira é falsa. Líbano e Israel são Estados-membros da ONU, o Hezbollah não. Esses três atores não estão na mesma prateleira, no ditado popular. Os problemas das limitações da Unifil já foram tema de observações dos EUA e da França em diferentes momentos. O caso libanês é mais um em que a cooperação internacional e “a ONU” servem de saco de pancadas quando os problemas estão em outros lugares. A questão é que, hoje, o Líbano é um Estado falido, responsabilidade de seus próprios atores políticos e de sua violência sectária, agravada por um histórico marcado pelo imperialismo francês e por interesses regionais.

Não é possível transformar esta já extensa coluna em uma aula de História, mas, por décadas, o Líbano foi o campo de batalha entre os próprios libaneses, além de israelenses, palestinos e sírios. A economia libanesa, gerida de forma incompetente e corrupta, se afundou ainda mais como efeito colateral das sanções dos EUA contra a ditadura síria de Bashar al-Assad. O exército libanês, comandado por sunitas e cristãos e equipado por franceses e por sauditas, possui uma fração do poderio do xiita Hezbollah, que age quase sem contestação interna, financiado e armado pelo Irã, que determina sua agenda em relação a Israel. Os sunitas e xiitas libaneses, embora tenham travado conflitos entre si, hoje, em linhas gerais, veem em Israel um inimigo em comum e um invasor.

O Hezbollah passou de milícia armada para “Estado paralelo” e, hoje, é quase um “Estado dentro do Estado”, com presença na política institucional. As autoridades libanesas, então, primeiro, não conseguiriam desarmar sozinhas o Hezbollah. Segundo, em parte não querem fazer isso, por terem em Israel o “inimigo comum”, daí a falta de cooperação com a Unifil. A soberania libanesa, assim como a da Síria e a do Iraque, hoje, é uma ficção, especialmente a de seus espaços aéreos. Os países já citados, mais EUA, Rússia e Turquia, fazem basicamente o que querem ali. É nesse vácuo de autoridade e nessa colcha de retalhos de relações e interesses que reside o verdadeiro problema, de muito difícil solução.

Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Culpar “a ONU” e suas missões e agências é o caminho mais fácil. No caso do governo Netanyahu, é também o caminho mais conveniente. O governo israelense, ao questionar a legitimidade da Unifil e destruir sua reputação, com acusações como cumplicidade com o Hezbollah, “viés”, e similares, omite que um dos papeis da Unifil é impedir a presença de tropas estrangeiras ali. Israelenses, inclusive, que ocupavam a região em 2006. Também permite manter a retórica maniqueísta de uma guerra da “luz” contra “as trevas”. Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Colaboram para essa estratégia do governo Netanyahu o fato de partes importantes do contingente terrestre da Unifil serem da Irlanda, Estado que habitualmente apoia pleitos palestinos, e da Espanha, país que lidera a missão e cujo governo de esquerda é crítico do governo Netanyahu. O premiê israelense chegou ao ponto de fazer uma pantomima pedindo para o Secretário-geral da ONU, António Guterres, retirar a Unifil do Líbano e permitir o avanço das tropas israelenses, como se o político português fosse um general com autoridade executiva, quando, na verdade, se trata de tema determinado pelo Conselho de Segurança.

Essa estratégia do governo Netanyahu contra agências e missões do sistema ONU não é nova e pretende esconder o fato de que, hoje, a maioria da comunidade internacional condena as ações de seu governo. Essa maioria não é mais de apenas monarquias árabes do Golfo ou ditaduras caribenhas, mas inclui países como França e Japão, democracias aliadas dos EUA. A premiê italiana Giorgia Meloni, de direita, inclusive anunicou visita à Unifil. Para negar a existência dessa maioria, vende-se como “viés da ONU”. Netanyahu espera que, com uma vitória de Trump, a extensão da Unifil seja simplesmente vetada pelos EUA, como quase ocorreu em 2020. O fato é que somente um Líbano estável e próspero representará uma verdadeira solução, embora isso não seja a prioridade da maioria de seus vizinhos regionais.

Nas últimas semanas, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, conhecida pela sigla inglesa Unifil, foi colocada no centro de troca de acusações e narrativas entre Israel, a ONU e os países que integram a força de manutenção da paz. Isso se tornou uma crise no último dia nove de outubro, quando dois integrantes da força foram feridos por disparos israelenses, o que foi classificado pelo governo italiano como “intencional”, “inadmissível” e “possível crime de guerra”. Por trás dessa crise estão interesses diversos e também problemas e desinformação sobre o mandato da Unifil.

Antes de mais nada, duas coisas precisam ser desmistificadas. A primeira é: não existe “a ONU”. É muito comum ver reações como “a ONU não faz nada” ou “a ONU precisa fazer algo”. A Organização das Nações Unidas não tem um poder executivo uníssono e supremo. A autoridade de seu secretariado, suas missões e suas agências é reduzida e, principalmente, é concedida pelos Estados, em mandatos. Evidentemente que, em um mundo dividido e em crises delicadas, essa autoridade costuma ser ainda menor, já que os interesses dos Estados irão divergir e dificilmente se chega em um consenso amplo.

A segunda é que as forças de manutenção da paz da ONU não são todas iguais, muito menos possuem autoridade para agir como em filme de ação Hollywood e sair atirando contra os vilões. Existem diferentes tipos de forças, com diferentes mandatos. Em suma, destacam-se três tipos. As de manutenção de paz, ou “peacekeeping” em inglês, estabelecidas após um cessar-fogo ou conflito, e que monitoram e relatam. Existem também as de imposição da paz, “peace enforcement”, que agem contra uma agressão e possuem amplo mandato para uso da força, como as da Guerra do Golfo ou da Guerra Civil da Somália. Esse modelo foi deixado de lado por vários motivos, inclusive pelo fato de que poucos países estão dispostos a pagar esse preço em vidas humanas.

Imagem de 2019 mostra membros da Unifil no sul do Líbano, enquanto observam escavadeira destruir túnel do Hezbollah. Forças foram atacadas por Israel na última semana Foto: Hussein Malla/AP

Finalmente, as de construção de paz, “peace building”, em que uma força militar pode agir sob autoridade de uma missão civil da ONU, como parte de processo mais amplo. Exemplo é a participação brasileira no Haiti, liderando o componente militar da MINUSTAH.

No caso da Unifil, a missão é do primeiro tipo. Seu mandato original, de 1978, é de observar e relatar, baseado no capítulo VI da Carta da ONU, e não no capítulo VII, que autoriza o uso da força.

A Unifil foi criada no contexto da primeira invasão do Líbano por Israel. Sua autoridade foi reformada em 2006, após outra invasão israelense, pela Resolução 1701. Seu mandato prevê, dentre outras obrigações, nos parágrafos 8 e 11, a assistência, sob solicitação de autoridades do Estado libanês, para o estabelecimento de um sul do Líbano sem armamentos que não do exército libanês, sem tropas estrangeiras sem o consentimento libanês e o monitoramento da fronteira. A Unifil também desmantelou dezenas de milhares de minas terrestres.

O texto da resolução pode ser consultado livremente por qualquer leitor. Repete-se, ele coloca a Unifil em um papel de assistência às autoridades libanesas, que possuem a autoridade e soberania da região. A Unifil simplesmente não pode agir fora desses parâmetros jurídicos e, por exemplo, unilateralmente fechar túneis, mesmo que utilizados pelo Hezbollah. Quem disser que a Unifil possui a autoridade ou obrigação de desmantelar o Hezbollah ou qualquer outro grupo, por exemplo, estará mentindo, já que essa obrigação, pelo texto, é das autoridades libanesas, que, para esse fim, podem solicitar a assistência da Unifil. E não o fizeram, não o fazem e não o farão pelos motivos que veremos adiante.

Novamente, a ideia de que “a ONU” pode sair agindo de qualquer maneira é falsa. Líbano e Israel são Estados-membros da ONU, o Hezbollah não. Esses três atores não estão na mesma prateleira, no ditado popular. Os problemas das limitações da Unifil já foram tema de observações dos EUA e da França em diferentes momentos. O caso libanês é mais um em que a cooperação internacional e “a ONU” servem de saco de pancadas quando os problemas estão em outros lugares. A questão é que, hoje, o Líbano é um Estado falido, responsabilidade de seus próprios atores políticos e de sua violência sectária, agravada por um histórico marcado pelo imperialismo francês e por interesses regionais.

Não é possível transformar esta já extensa coluna em uma aula de História, mas, por décadas, o Líbano foi o campo de batalha entre os próprios libaneses, além de israelenses, palestinos e sírios. A economia libanesa, gerida de forma incompetente e corrupta, se afundou ainda mais como efeito colateral das sanções dos EUA contra a ditadura síria de Bashar al-Assad. O exército libanês, comandado por sunitas e cristãos e equipado por franceses e por sauditas, possui uma fração do poderio do xiita Hezbollah, que age quase sem contestação interna, financiado e armado pelo Irã, que determina sua agenda em relação a Israel. Os sunitas e xiitas libaneses, embora tenham travado conflitos entre si, hoje, em linhas gerais, veem em Israel um inimigo em comum e um invasor.

O Hezbollah passou de milícia armada para “Estado paralelo” e, hoje, é quase um “Estado dentro do Estado”, com presença na política institucional. As autoridades libanesas, então, primeiro, não conseguiriam desarmar sozinhas o Hezbollah. Segundo, em parte não querem fazer isso, por terem em Israel o “inimigo comum”, daí a falta de cooperação com a Unifil. A soberania libanesa, assim como a da Síria e a do Iraque, hoje, é uma ficção, especialmente a de seus espaços aéreos. Os países já citados, mais EUA, Rússia e Turquia, fazem basicamente o que querem ali. É nesse vácuo de autoridade e nessa colcha de retalhos de relações e interesses que reside o verdadeiro problema, de muito difícil solução.

Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Culpar “a ONU” e suas missões e agências é o caminho mais fácil. No caso do governo Netanyahu, é também o caminho mais conveniente. O governo israelense, ao questionar a legitimidade da Unifil e destruir sua reputação, com acusações como cumplicidade com o Hezbollah, “viés”, e similares, omite que um dos papeis da Unifil é impedir a presença de tropas estrangeiras ali. Israelenses, inclusive, que ocupavam a região em 2006. Também permite manter a retórica maniqueísta de uma guerra da “luz” contra “as trevas”. Pode-se acusar a Unifil de limitada, de incompetente, dizer que ela e que a resolução 1701 fracassaram, pode-se debater muitas coisas, mas o julgamento moral e o ataque reputacional só atende aos interesses do governo Netanyahu.

Colaboram para essa estratégia do governo Netanyahu o fato de partes importantes do contingente terrestre da Unifil serem da Irlanda, Estado que habitualmente apoia pleitos palestinos, e da Espanha, país que lidera a missão e cujo governo de esquerda é crítico do governo Netanyahu. O premiê israelense chegou ao ponto de fazer uma pantomima pedindo para o Secretário-geral da ONU, António Guterres, retirar a Unifil do Líbano e permitir o avanço das tropas israelenses, como se o político português fosse um general com autoridade executiva, quando, na verdade, se trata de tema determinado pelo Conselho de Segurança.

Essa estratégia do governo Netanyahu contra agências e missões do sistema ONU não é nova e pretende esconder o fato de que, hoje, a maioria da comunidade internacional condena as ações de seu governo. Essa maioria não é mais de apenas monarquias árabes do Golfo ou ditaduras caribenhas, mas inclui países como França e Japão, democracias aliadas dos EUA. A premiê italiana Giorgia Meloni, de direita, inclusive anunicou visita à Unifil. Para negar a existência dessa maioria, vende-se como “viés da ONU”. Netanyahu espera que, com uma vitória de Trump, a extensão da Unifil seja simplesmente vetada pelos EUA, como quase ocorreu em 2020. O fato é que somente um Líbano estável e próspero representará uma verdadeira solução, embora isso não seja a prioridade da maioria de seus vizinhos regionais.

Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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