A Suprema Corte dos EUA faria os “pais fundadores” do país terem calafrios. A corte decidiu no último dia primeiro de julho que os presidentes dos EUA possuem diferentes tipos de imunidade pelos atos cometidos durante seu mandato, em um caso provocado pela defesa do ex-presidente Donald Trump, ao questionar se seria legal ele ser julgado. Por uma série de motivos, a decisão é um desastre.
A visão ideológica da História dos EUA prega pela visão de que a fundação do país está ligada diretamente à um grupo de intelectuais liberais, os “pais fundadores”, cuja intenção era criar uma nova sociedade baseada na igualdade política, em direitos naturais inalienáveis e na soberania popular. Isso seria feito em contraste à sociedade monárquica e aristocrática britânica, cuja autoridade era imposta de maneira abusiva nos colonos.
Essa é, repete-se, uma visão ideológica desse processo, mas uma ideologia presente em quase todas as camadas sociais dos EUA do século XXI. Um dos “pais fundadores” foi Alexander Hamilton, extremamente popular em nossos dias devido ao musical que leva seu nome. Hamilton foi um dos autores dos Papéis Federalistas, coletânea de ensaios e documento essencial na História dos EUA e que defendia um país com um governo federal atuante.
No sexagésimo nono ensaio, Hamilton lida diretamente com o receio de que um presidente federal se tornaria um “Rei da Grã-Bretanha”. Hamilton é taxativo em dizer que presidentes, além de sujeitos ao impeachment, seriam posteriormente passíveis de processo, julgamento e punição. Mesmo o “pai fundador” adepto de um governo central deixou claro que um presidente precisa ser submetido a julgamentos e que ele não pode estar acima da lei.
Ele ainda critica a imunidade de governadores e foi cuidadoso em distinguir que o presidente dos EUA teria poder Executivo, e não soberania, ao contrário do monarca britânico. Foi a defesa de Trump que trouxe Hamilton ao caso, afirmando que sua proposta de um Executivo central justificaria a imunidade presidencial. Não há nenhum precedente histórico ou legal nos EUA para a decisão da Suprema Corte daquele país.
A ideia de imunidade presidencial surge nos meios conservadores apenas na década de 1970, em meio aos escândalos de Richard Nixon, e baseada numa proposta mambembe de equivalência com a imunidade parlamentar garantida pela constituição aos congressistas. Tal decisão, além de contrariar o cerne da ideologia fundamental dos EUA, não está presente na Constituição ou em algum estatuto federal, e cria outros problemas.
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A corte definiu que um presidente possui imunidade absoluta para atos que cometeu dentro de suas funções constitucionais, presunção de imunidade para atos dentro do “perímetro externo” de sua responsabilidade oficial e nenhuma imunidade para atos não-oficiais. Quais seriam as funções constitucionais ou “perímetro externo”? A Suprema Corte não definiu, deixando em aberto que os limites seriam variáveis em cada caso e “auto impostos”.
Finalmente, a decisão da Suprema Corte é publicada em momento extremamente delicado, dadas as eleições no país. A decisão foi tomada por seis votos a três, com todos os juízes conservadores votando a favor, incluindo os três nomeados por Trump, que já foi beneficiado diretamente pela decisão. A sentença de Trump prevista para onze de julho em Nova York, onde foi condenado por júri popular, teve que ser adiada.
Se isso ocorresse em qualquer país ao sul do Rio Grande, evocaria os estereótipos de “república de bananas”. Nas 119 páginas da decisão legal final, as palavras democracia e democrático aparecem apenas oito vezes. Todas elas em votos contra a decisão. Não é exagero dizer que a decisão da Suprema Corte cria um cidadão acima da lei. Com mais autoridade do que o rei do Reino Unido, contrário ao desejo dos “pais fundadores”.