Brasil e França vivem uma crise de desconfiança pública e mútua, com desde troca de acusações entre políticos e empresários até boicotes. Embora as declarações de um executivo de uma grande rede de supermercados tenham sido o estopim da crise, ela gira em torno da produção agropecuária brasileira e do negociado acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia. E, por trás, dos problemas desse acordo, está uma histórica e irredutível postura francesa perante a sua própria agropecuária.
Autoridades francesas dirão que se opõem ao acordo de livre comércio por questões ambientais, por aspectos sanitários ou até mesmo por preocupações da qualidade da produção importada. Sim, as destruições do cerrado e do Pantanal brasileiros são extremamente preocupantes e precisam ser condenadas. O Brasil, como enorme produtor agropecuário, vai fornecer produtos de todas as matizes de qualidade, desde as superiores até algumas que não necessariamente seriam as mais palatáveis ao consumidor mais abastado.
Desconfianças sanitárias, entretanto, são inaceitáveis, já que o Estado brasileiro mantém uma das melhores redes de vigilância sanitária do mundo, desde a formação de seus cientistas em universidades públicas até a criação e manutenção dos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura e Pecuária. Independentemente de qualquer defesa das instituições brasileiras, nada disso, ambientalismo ou sanitarismo, realmente importa aqui. Trata-se de mero discurso francês.
As verdadeiras razões para as objeções francesas ao acordo de livre comércio e às importações de produtos agropecuários sul-americanos estão numa política de Estado e no bom e velho protecionismo. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a França, com um terço de seu território devastado, passava por profunda insegurança alimentar. Nas décadas seguintes, com a Guerra Fria, existia a ameaça iminente de um novo conflito, agora nuclear. Sob a liderança de De Gaulle, a França instituiu a segurança alimentar como prioridade nacional.
A França não poderia depender da importação de alimentos, que seria interrompida por uma guerra. Incentivar a produção agropecuária francesa era uma questão de segurança nacional. Também contribuiria para a manutenção de parte da população no campo, literalmente ocupando o vasto, para padrões europeus, território francês em um período de declínio populacional, consequência da mortandade da guerra. Finalmente, uma produção local rica manteria parte do orgulho nacional francês, ferido pelas derrotas e pela ocupação nazista.
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De Gaulle foi um dos mentores da Política Agrícola Comum europeia, criada em 1957, que não apenas criou um mercado comum para produtos agropecuários, mas estabeleceu um mercado preferencial e uma enxurrada de tarifas para importações e de subsídios para os produtores europeus. Para o período de 2021 à 2027, o total da PAC será de enormes 387 bilhões de euros. O país beneficiado com a maior fatia, de 17,3% da verba? A França, dona de cerca de um terço das terras férteis europeias e maior produtora agropecuária da UE.
Hoje, de fato a PAC incorpora alguns elementos ambientalistas e de produção responsável. Isso é inegável, assim como o fato de um animal ser criado e abatido a duzentos quilômetros do consumidor final, e não do outro lado do Atlântico, é mais ecológico e responsável. Essas preocupações contemporâneas, entretanto, são usadas como vernizes de imagem. Não mudam o fato de que a essência, a coluna vertebral das políticas agropecuárias europeias, está nos termos “segurança nacional” e “protecionismo”, que ninguém quer admitir publicamente.