Fluxo de armas ilegais está por trás do aumento nos crimes violentos na América Latina


Armas desviadas dos Estados Unidos e de forças militares assolam a região; governos podem fazer mais para combater o fenômeno

Por Carina Solmirano
Atualização:

Os assassinatos estão em alta na América Latina. No Equador, depois de uma grande queda no índice de homicídios até 2016, os números saltaram de 6 para 15 ocorrências a cada 100 mil habitantes em 2021; e para 26 em 2022. Na Jamaica, o número de homicídios se aproximou de 50 a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice em Honduras foi estimado em 36 em 2022. (Como referência, o índice de homicídios nos Estados Unidos é de 6 a cada 100 mil habitantes.)

Um fator determinante por trás dessa epidemia de violência armada é o desvio e o tráfico ilícito de armas pequenas e armas leves (SALW) por toda a região. Essas armas são responsáveis por mais de 60% dos homicídios. Mas de onde elas vêm? E como o tráfico ilegal de armas na região pode ser impedido?

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A região América Latina e Caribe não é um grande mercado para a transferência de armamentos militares convencionais. Ao longo dos últimos cinco anos, transferências internacionais de armas diminuíram na América do Sul, mas o Brasil viu um aumento de 48% nas importações entre 2017 e 2022. Poucos países na região produzem SALWs e munições: Argentina, Brasil, Chile e México.

Crianças caminham em fila única, segurando armas de brinquedo e reais, enquanto demonstram habilidades recém-aprendidas no treinamento com armas de estilo militar Foto: Alexandre Meneghini/ REUTERS

E a região tem regulações mais rígidas para posse civil de armas do que os EUA — o que vale particularmente em relação a armas em estilo militar, como os fuzis AR-15 usados com frequência pelos cartéis mexicanos de drogas. A maioria dos países cria licenças para a compra de armas condicionadas a numerosas exigências, incluindo avaliações psicológicas e checagens de antecedentes criminais — e impõem limites sobre a quantidade e os tipos de armas que civis podem adquirir.

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Mas, apesar dessas regulações, milhões de armas circulam na região — com efeitos devastadores. Em 2018, estimava-se que mais de 60 milhões de armas de fogo estavam nas mãos de civis na região, legalizadas ou não. Na Bolívia, na Colômbia e no México existem mais armas sem registro do que armas registradas. Na Argentina e no Brasil, o número de armas não registradas é similar ao de registradas. Aproximadamente 8 milhões de SALWs também pertencem às forças de segurança pública e militares. É difícil saber o número de armas de propriedade das empresas de segurança privada na região, mas uma estimativa de 2015 o coloca em 600 mil.

Armas ilegais na região vêm de várias fontes. No fim das guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua, milhares de armas acabaram inundando um mercado clandestino na América Central. A maioria dos analistas concorda que uma grande fonte de armas traficadas para a região é os EUA, principalmente para o México. Estimadas 200 mil armas ou mais são compradas dentro dos EUA anualmente e traficadas para o México por meio de “compradores-fachada”, que adquirem as armas em lojas e feiras. No Caribe, um estudo publicado recentemente mostra que a maioria das armas de fogo responsáveis pelo aumento dos níveis de violência e índices de homicídio em países como Jamaica e Haiti é traficada dos EUA por meio de empresas de frete e em voos comerciais.

Um membro da polícia de fronteira do Panamá com sua arma, durante uma visita da mídia a diferentes bases estratégicas da polícia, como parte de uma estratégia para combater a guerra contra as drogas na província de Darien Foto: Carlos Jasso/ REUTERS
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O desvio para o mercado ilegal também ocorre por meio de certificados falsificados de consumidor final e cumplicidade de autoridades corruptas. Foi este o caso em relação a mais de 7 mil AK-47s comprados da Bulgária pelas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), em 1999 — ou os 3 mil AK-47s e munições comprados por uma empresa nicaraguense e posteriormente desviados para grupos paramilitares colombianos. Mais frequentemente, desvios ocorreram a partir dos estoques oficiais de militares e forças de segurança. Casos documentados em Guatemala, El Salvador, Panamá e Venezuela mostram que a corrupção entre militares e forças de segurança desempenhou um grande papel na facilitação do desvio de armas adquiridas legalmente para grupos de crime organizado que operam na região.

Finalmente, o desvio de armas também ocorre a partir das empresas de segurança privada que floresceram nos anos recentes em razão da deterioração da situação de segurança na maioria dos países da região. De acordo com dados da Polícia Federal brasileira, mais de 12 mil armas foram roubadas ou consideradas desaparecidas dos estoques de empresas de segurança privada entre 2017 e 2021.

Sopa para o crime organizado

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As milhões de armas ilegais que circulam na região e o tráfico persistente entre os países e a partir dos EUA permitiram às atividades de organizações criminosas se expandir e tornou suas ações ainda mais violentas. O tráfico de drogas, por exemplo, é inevitavelmente ligado aos índices crescentes de violência armada na região.

Mas a militarização da segurança pública no México e no Brasil, por exemplo, não rendeu resultados positivos, conforme os cartéis de drogas e outros grupos criminosos apenas fortaleceram seu poder de fogo diante do Estado. Conforme organizações de tráfico de drogas se expandem ou transferem suas operações para outros países, é provável um aumento na violência armada em seguida. Este é o caso no Equador e em muitas nações caribenhas nos anos recentes.

O tráfico de armas de fogo não só intensifica o crime e a violência, mas também afeta o desenvolvimento, a estabilidade política e o cotidiano de milhões de pessoas na região. Estimou-se que o custo direto da criminalidade para 17 países na região entre 2010 e 2014 correspondeu em média a 3% do PIB da região — equivalente ao que a região gasta anualmente em infraestrutura. É muito provável que esses custos sejam mais altos hoje caso as mesmas variáveis sejam medidas novamente.

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Respostas dos governos

O que os governos de América Latina e Caribe estão fazendo para controlar o tráfico ilícito de armas? Desde o fim dos anos 90, líderes na região buscaram fortalecer esforços para controlar e combater esse fenômeno, a maioria dos Estados na região se comprometeu com numerosos acordos, incluindo a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos (CIFTA) e, mais recentemente, o Tratado de Comércio de Armas Convencionais (ATT).

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Esses acordos conclamam ações concretas, como o estabelecimento de sistemas nacionais de controle, regulação de vendedores de armas e intermediários, marcação e rastreamento de armas de fogo, implementação medidas de prevenção contra o desvio e cooperação regional e internacional para investigar e processar os envolvidos em tráfico ilícito.

Na maioria dos países, organizações regionais e internacionais apoiaram a destruição de armas excedentes. Na Argentina, 40 mil armas foram destruídas entre 2020 e 2022, totalizando mais de 400 mil desde 2000.

Membros da polícia argentina, que assumiu o controle da segurança em partes da cidade de Rosário no ano passado após um aumento da violência em bairros conhecidos pelo trafico de drogas, patrulham a favela Villa Banana em Rosário, Argentina  Foto: Enrique Marcarian/ REUTERS

A cooperação internacional entre a Interpol e forças de segurança de toda a região resultaram recentemente na detenção de aproximadamente 14 mil indivíduos e na apreensão de 8.263 armas de fogo ilícitas, assim como 305 mil cartuchos de munição. Em 2021, em uma operação similar, 4 mil suspeitos foram presos e mais de 200 mil armas de fogo, componentes e munições foram apreendidos. Entre 2016 e 2020, cerca de 425 mil armas ilícitas foram apreendidas em toda a região.

Mas apesar de esforços para aumentar o número de armas apreendidas anualmente, mais precisa ser feito. E alguns governos estão adotando novas medidas para enfrentar o problema.

Em 2021, o governo mexicano abriu um processo em uma corte federal dos EUA contra vários fabricantes de armas americanos, incluindo Smith & Wesson, Colt, e Glock. O processo busca responsabilizar essas empresas pelo papel que suas armas supostamente desempenharam em alimentar a atual violência relacionada a drogas no México. Apesar de o caso ter sido indeferido em 2022, o México entrou com uma apelação recentemente. Os Estados da Caricom também deram passos para enfrentar o tráfico ilícito de armas propondo um banimento ao uso público de armas de assalto.

Membros da Marinha mexicana verificam pacotes contendo cocaína como parte de uma apreensão de drogas na costa do México Foto: Marinha do México / REUTERS

Há outras medidas que os governos podem — e deveriam — adotar para conter o tráfico de armas. Melhorar a segurança dos estoques, conduzir mais destruições de armas, fazer vigorar marcações e rastreamentos de armas e manter sistemas de registro atualizados são algumas. Intercambiar informações em fóruns regionais e internacionais e melhorar controles de fronteiras para impedir o contrabando de armas também ajudaria. Mas sem uma abordagem abrangente em relação ao problema que reduza a demanda geral por armas, nossa região provavelmente continuará a ser a mais violenta do mundo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Carina Solmirano é especialista em segurança internacional e controle de armas, com mais de duas décadas de experiência na área. Atualmente ela lidera o projeto ATT Monitor, na ONG Control Arms. Suas opiniões não representam necessariamente as posições da AQ

Os assassinatos estão em alta na América Latina. No Equador, depois de uma grande queda no índice de homicídios até 2016, os números saltaram de 6 para 15 ocorrências a cada 100 mil habitantes em 2021; e para 26 em 2022. Na Jamaica, o número de homicídios se aproximou de 50 a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice em Honduras foi estimado em 36 em 2022. (Como referência, o índice de homicídios nos Estados Unidos é de 6 a cada 100 mil habitantes.)

Um fator determinante por trás dessa epidemia de violência armada é o desvio e o tráfico ilícito de armas pequenas e armas leves (SALW) por toda a região. Essas armas são responsáveis por mais de 60% dos homicídios. Mas de onde elas vêm? E como o tráfico ilegal de armas na região pode ser impedido?

A região América Latina e Caribe não é um grande mercado para a transferência de armamentos militares convencionais. Ao longo dos últimos cinco anos, transferências internacionais de armas diminuíram na América do Sul, mas o Brasil viu um aumento de 48% nas importações entre 2017 e 2022. Poucos países na região produzem SALWs e munições: Argentina, Brasil, Chile e México.

Crianças caminham em fila única, segurando armas de brinquedo e reais, enquanto demonstram habilidades recém-aprendidas no treinamento com armas de estilo militar Foto: Alexandre Meneghini/ REUTERS

E a região tem regulações mais rígidas para posse civil de armas do que os EUA — o que vale particularmente em relação a armas em estilo militar, como os fuzis AR-15 usados com frequência pelos cartéis mexicanos de drogas. A maioria dos países cria licenças para a compra de armas condicionadas a numerosas exigências, incluindo avaliações psicológicas e checagens de antecedentes criminais — e impõem limites sobre a quantidade e os tipos de armas que civis podem adquirir.

Mas, apesar dessas regulações, milhões de armas circulam na região — com efeitos devastadores. Em 2018, estimava-se que mais de 60 milhões de armas de fogo estavam nas mãos de civis na região, legalizadas ou não. Na Bolívia, na Colômbia e no México existem mais armas sem registro do que armas registradas. Na Argentina e no Brasil, o número de armas não registradas é similar ao de registradas. Aproximadamente 8 milhões de SALWs também pertencem às forças de segurança pública e militares. É difícil saber o número de armas de propriedade das empresas de segurança privada na região, mas uma estimativa de 2015 o coloca em 600 mil.

Armas ilegais na região vêm de várias fontes. No fim das guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua, milhares de armas acabaram inundando um mercado clandestino na América Central. A maioria dos analistas concorda que uma grande fonte de armas traficadas para a região é os EUA, principalmente para o México. Estimadas 200 mil armas ou mais são compradas dentro dos EUA anualmente e traficadas para o México por meio de “compradores-fachada”, que adquirem as armas em lojas e feiras. No Caribe, um estudo publicado recentemente mostra que a maioria das armas de fogo responsáveis pelo aumento dos níveis de violência e índices de homicídio em países como Jamaica e Haiti é traficada dos EUA por meio de empresas de frete e em voos comerciais.

Um membro da polícia de fronteira do Panamá com sua arma, durante uma visita da mídia a diferentes bases estratégicas da polícia, como parte de uma estratégia para combater a guerra contra as drogas na província de Darien Foto: Carlos Jasso/ REUTERS

O desvio para o mercado ilegal também ocorre por meio de certificados falsificados de consumidor final e cumplicidade de autoridades corruptas. Foi este o caso em relação a mais de 7 mil AK-47s comprados da Bulgária pelas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), em 1999 — ou os 3 mil AK-47s e munições comprados por uma empresa nicaraguense e posteriormente desviados para grupos paramilitares colombianos. Mais frequentemente, desvios ocorreram a partir dos estoques oficiais de militares e forças de segurança. Casos documentados em Guatemala, El Salvador, Panamá e Venezuela mostram que a corrupção entre militares e forças de segurança desempenhou um grande papel na facilitação do desvio de armas adquiridas legalmente para grupos de crime organizado que operam na região.

Finalmente, o desvio de armas também ocorre a partir das empresas de segurança privada que floresceram nos anos recentes em razão da deterioração da situação de segurança na maioria dos países da região. De acordo com dados da Polícia Federal brasileira, mais de 12 mil armas foram roubadas ou consideradas desaparecidas dos estoques de empresas de segurança privada entre 2017 e 2021.

Sopa para o crime organizado

As milhões de armas ilegais que circulam na região e o tráfico persistente entre os países e a partir dos EUA permitiram às atividades de organizações criminosas se expandir e tornou suas ações ainda mais violentas. O tráfico de drogas, por exemplo, é inevitavelmente ligado aos índices crescentes de violência armada na região.

Mas a militarização da segurança pública no México e no Brasil, por exemplo, não rendeu resultados positivos, conforme os cartéis de drogas e outros grupos criminosos apenas fortaleceram seu poder de fogo diante do Estado. Conforme organizações de tráfico de drogas se expandem ou transferem suas operações para outros países, é provável um aumento na violência armada em seguida. Este é o caso no Equador e em muitas nações caribenhas nos anos recentes.

O tráfico de armas de fogo não só intensifica o crime e a violência, mas também afeta o desenvolvimento, a estabilidade política e o cotidiano de milhões de pessoas na região. Estimou-se que o custo direto da criminalidade para 17 países na região entre 2010 e 2014 correspondeu em média a 3% do PIB da região — equivalente ao que a região gasta anualmente em infraestrutura. É muito provável que esses custos sejam mais altos hoje caso as mesmas variáveis sejam medidas novamente.

Respostas dos governos

O que os governos de América Latina e Caribe estão fazendo para controlar o tráfico ilícito de armas? Desde o fim dos anos 90, líderes na região buscaram fortalecer esforços para controlar e combater esse fenômeno, a maioria dos Estados na região se comprometeu com numerosos acordos, incluindo a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos (CIFTA) e, mais recentemente, o Tratado de Comércio de Armas Convencionais (ATT).

Esses acordos conclamam ações concretas, como o estabelecimento de sistemas nacionais de controle, regulação de vendedores de armas e intermediários, marcação e rastreamento de armas de fogo, implementação medidas de prevenção contra o desvio e cooperação regional e internacional para investigar e processar os envolvidos em tráfico ilícito.

Na maioria dos países, organizações regionais e internacionais apoiaram a destruição de armas excedentes. Na Argentina, 40 mil armas foram destruídas entre 2020 e 2022, totalizando mais de 400 mil desde 2000.

Membros da polícia argentina, que assumiu o controle da segurança em partes da cidade de Rosário no ano passado após um aumento da violência em bairros conhecidos pelo trafico de drogas, patrulham a favela Villa Banana em Rosário, Argentina  Foto: Enrique Marcarian/ REUTERS

A cooperação internacional entre a Interpol e forças de segurança de toda a região resultaram recentemente na detenção de aproximadamente 14 mil indivíduos e na apreensão de 8.263 armas de fogo ilícitas, assim como 305 mil cartuchos de munição. Em 2021, em uma operação similar, 4 mil suspeitos foram presos e mais de 200 mil armas de fogo, componentes e munições foram apreendidos. Entre 2016 e 2020, cerca de 425 mil armas ilícitas foram apreendidas em toda a região.

Mas apesar de esforços para aumentar o número de armas apreendidas anualmente, mais precisa ser feito. E alguns governos estão adotando novas medidas para enfrentar o problema.

Em 2021, o governo mexicano abriu um processo em uma corte federal dos EUA contra vários fabricantes de armas americanos, incluindo Smith & Wesson, Colt, e Glock. O processo busca responsabilizar essas empresas pelo papel que suas armas supostamente desempenharam em alimentar a atual violência relacionada a drogas no México. Apesar de o caso ter sido indeferido em 2022, o México entrou com uma apelação recentemente. Os Estados da Caricom também deram passos para enfrentar o tráfico ilícito de armas propondo um banimento ao uso público de armas de assalto.

Membros da Marinha mexicana verificam pacotes contendo cocaína como parte de uma apreensão de drogas na costa do México Foto: Marinha do México / REUTERS

Há outras medidas que os governos podem — e deveriam — adotar para conter o tráfico de armas. Melhorar a segurança dos estoques, conduzir mais destruições de armas, fazer vigorar marcações e rastreamentos de armas e manter sistemas de registro atualizados são algumas. Intercambiar informações em fóruns regionais e internacionais e melhorar controles de fronteiras para impedir o contrabando de armas também ajudaria. Mas sem uma abordagem abrangente em relação ao problema que reduza a demanda geral por armas, nossa região provavelmente continuará a ser a mais violenta do mundo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Carina Solmirano é especialista em segurança internacional e controle de armas, com mais de duas décadas de experiência na área. Atualmente ela lidera o projeto ATT Monitor, na ONG Control Arms. Suas opiniões não representam necessariamente as posições da AQ

Os assassinatos estão em alta na América Latina. No Equador, depois de uma grande queda no índice de homicídios até 2016, os números saltaram de 6 para 15 ocorrências a cada 100 mil habitantes em 2021; e para 26 em 2022. Na Jamaica, o número de homicídios se aproximou de 50 a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice em Honduras foi estimado em 36 em 2022. (Como referência, o índice de homicídios nos Estados Unidos é de 6 a cada 100 mil habitantes.)

Um fator determinante por trás dessa epidemia de violência armada é o desvio e o tráfico ilícito de armas pequenas e armas leves (SALW) por toda a região. Essas armas são responsáveis por mais de 60% dos homicídios. Mas de onde elas vêm? E como o tráfico ilegal de armas na região pode ser impedido?

A região América Latina e Caribe não é um grande mercado para a transferência de armamentos militares convencionais. Ao longo dos últimos cinco anos, transferências internacionais de armas diminuíram na América do Sul, mas o Brasil viu um aumento de 48% nas importações entre 2017 e 2022. Poucos países na região produzem SALWs e munições: Argentina, Brasil, Chile e México.

Crianças caminham em fila única, segurando armas de brinquedo e reais, enquanto demonstram habilidades recém-aprendidas no treinamento com armas de estilo militar Foto: Alexandre Meneghini/ REUTERS

E a região tem regulações mais rígidas para posse civil de armas do que os EUA — o que vale particularmente em relação a armas em estilo militar, como os fuzis AR-15 usados com frequência pelos cartéis mexicanos de drogas. A maioria dos países cria licenças para a compra de armas condicionadas a numerosas exigências, incluindo avaliações psicológicas e checagens de antecedentes criminais — e impõem limites sobre a quantidade e os tipos de armas que civis podem adquirir.

Mas, apesar dessas regulações, milhões de armas circulam na região — com efeitos devastadores. Em 2018, estimava-se que mais de 60 milhões de armas de fogo estavam nas mãos de civis na região, legalizadas ou não. Na Bolívia, na Colômbia e no México existem mais armas sem registro do que armas registradas. Na Argentina e no Brasil, o número de armas não registradas é similar ao de registradas. Aproximadamente 8 milhões de SALWs também pertencem às forças de segurança pública e militares. É difícil saber o número de armas de propriedade das empresas de segurança privada na região, mas uma estimativa de 2015 o coloca em 600 mil.

Armas ilegais na região vêm de várias fontes. No fim das guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua, milhares de armas acabaram inundando um mercado clandestino na América Central. A maioria dos analistas concorda que uma grande fonte de armas traficadas para a região é os EUA, principalmente para o México. Estimadas 200 mil armas ou mais são compradas dentro dos EUA anualmente e traficadas para o México por meio de “compradores-fachada”, que adquirem as armas em lojas e feiras. No Caribe, um estudo publicado recentemente mostra que a maioria das armas de fogo responsáveis pelo aumento dos níveis de violência e índices de homicídio em países como Jamaica e Haiti é traficada dos EUA por meio de empresas de frete e em voos comerciais.

Um membro da polícia de fronteira do Panamá com sua arma, durante uma visita da mídia a diferentes bases estratégicas da polícia, como parte de uma estratégia para combater a guerra contra as drogas na província de Darien Foto: Carlos Jasso/ REUTERS

O desvio para o mercado ilegal também ocorre por meio de certificados falsificados de consumidor final e cumplicidade de autoridades corruptas. Foi este o caso em relação a mais de 7 mil AK-47s comprados da Bulgária pelas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), em 1999 — ou os 3 mil AK-47s e munições comprados por uma empresa nicaraguense e posteriormente desviados para grupos paramilitares colombianos. Mais frequentemente, desvios ocorreram a partir dos estoques oficiais de militares e forças de segurança. Casos documentados em Guatemala, El Salvador, Panamá e Venezuela mostram que a corrupção entre militares e forças de segurança desempenhou um grande papel na facilitação do desvio de armas adquiridas legalmente para grupos de crime organizado que operam na região.

Finalmente, o desvio de armas também ocorre a partir das empresas de segurança privada que floresceram nos anos recentes em razão da deterioração da situação de segurança na maioria dos países da região. De acordo com dados da Polícia Federal brasileira, mais de 12 mil armas foram roubadas ou consideradas desaparecidas dos estoques de empresas de segurança privada entre 2017 e 2021.

Sopa para o crime organizado

As milhões de armas ilegais que circulam na região e o tráfico persistente entre os países e a partir dos EUA permitiram às atividades de organizações criminosas se expandir e tornou suas ações ainda mais violentas. O tráfico de drogas, por exemplo, é inevitavelmente ligado aos índices crescentes de violência armada na região.

Mas a militarização da segurança pública no México e no Brasil, por exemplo, não rendeu resultados positivos, conforme os cartéis de drogas e outros grupos criminosos apenas fortaleceram seu poder de fogo diante do Estado. Conforme organizações de tráfico de drogas se expandem ou transferem suas operações para outros países, é provável um aumento na violência armada em seguida. Este é o caso no Equador e em muitas nações caribenhas nos anos recentes.

O tráfico de armas de fogo não só intensifica o crime e a violência, mas também afeta o desenvolvimento, a estabilidade política e o cotidiano de milhões de pessoas na região. Estimou-se que o custo direto da criminalidade para 17 países na região entre 2010 e 2014 correspondeu em média a 3% do PIB da região — equivalente ao que a região gasta anualmente em infraestrutura. É muito provável que esses custos sejam mais altos hoje caso as mesmas variáveis sejam medidas novamente.

Respostas dos governos

O que os governos de América Latina e Caribe estão fazendo para controlar o tráfico ilícito de armas? Desde o fim dos anos 90, líderes na região buscaram fortalecer esforços para controlar e combater esse fenômeno, a maioria dos Estados na região se comprometeu com numerosos acordos, incluindo a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos (CIFTA) e, mais recentemente, o Tratado de Comércio de Armas Convencionais (ATT).

Esses acordos conclamam ações concretas, como o estabelecimento de sistemas nacionais de controle, regulação de vendedores de armas e intermediários, marcação e rastreamento de armas de fogo, implementação medidas de prevenção contra o desvio e cooperação regional e internacional para investigar e processar os envolvidos em tráfico ilícito.

Na maioria dos países, organizações regionais e internacionais apoiaram a destruição de armas excedentes. Na Argentina, 40 mil armas foram destruídas entre 2020 e 2022, totalizando mais de 400 mil desde 2000.

Membros da polícia argentina, que assumiu o controle da segurança em partes da cidade de Rosário no ano passado após um aumento da violência em bairros conhecidos pelo trafico de drogas, patrulham a favela Villa Banana em Rosário, Argentina  Foto: Enrique Marcarian/ REUTERS

A cooperação internacional entre a Interpol e forças de segurança de toda a região resultaram recentemente na detenção de aproximadamente 14 mil indivíduos e na apreensão de 8.263 armas de fogo ilícitas, assim como 305 mil cartuchos de munição. Em 2021, em uma operação similar, 4 mil suspeitos foram presos e mais de 200 mil armas de fogo, componentes e munições foram apreendidos. Entre 2016 e 2020, cerca de 425 mil armas ilícitas foram apreendidas em toda a região.

Mas apesar de esforços para aumentar o número de armas apreendidas anualmente, mais precisa ser feito. E alguns governos estão adotando novas medidas para enfrentar o problema.

Em 2021, o governo mexicano abriu um processo em uma corte federal dos EUA contra vários fabricantes de armas americanos, incluindo Smith & Wesson, Colt, e Glock. O processo busca responsabilizar essas empresas pelo papel que suas armas supostamente desempenharam em alimentar a atual violência relacionada a drogas no México. Apesar de o caso ter sido indeferido em 2022, o México entrou com uma apelação recentemente. Os Estados da Caricom também deram passos para enfrentar o tráfico ilícito de armas propondo um banimento ao uso público de armas de assalto.

Membros da Marinha mexicana verificam pacotes contendo cocaína como parte de uma apreensão de drogas na costa do México Foto: Marinha do México / REUTERS

Há outras medidas que os governos podem — e deveriam — adotar para conter o tráfico de armas. Melhorar a segurança dos estoques, conduzir mais destruições de armas, fazer vigorar marcações e rastreamentos de armas e manter sistemas de registro atualizados são algumas. Intercambiar informações em fóruns regionais e internacionais e melhorar controles de fronteiras para impedir o contrabando de armas também ajudaria. Mas sem uma abordagem abrangente em relação ao problema que reduza a demanda geral por armas, nossa região provavelmente continuará a ser a mais violenta do mundo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*Carina Solmirano é especialista em segurança internacional e controle de armas, com mais de duas décadas de experiência na área. Atualmente ela lidera o projeto ATT Monitor, na ONG Control Arms. Suas opiniões não representam necessariamente as posições da AQ

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