Desconhecida de boa parte dos colombianos antes da eleição de Gustavo Petro, a ativista ambiental Francia Márquez se torna a primeira mulher negra a ocupar a vice-presidência do país, neste domingo, 7. Do início como doméstica à luta pela preservação do meio ambiente, Francia, de 41 anos, é descrita por amigos como uma mulher decidida.
Francia nasceu em Yolombó, região rural de Suárez, no Departamento (Estado) de Cauca. Os moradores da comunidade, formada em sua maioria por afrodescendentes, tinham dois destinos: homens se dedicavam ao trabalho no campo e mulheres, ao trabalho doméstico nas casas em grandes cidades, como Cali.
A nova vice trabalhou em diversas casas de família, de segunda a sábado, e recebia um salário mínimo, que usava no sustento do filho que teve quando tinha 16 anos. Mãe e empregada doméstica, ela arranjou tempo para se dedicar à luta ambiental. Há três anos, ela se formou em direito na Universidade Santiago de Cali.
Em 2015, recebeu o Prêmio Nacional pela Defesa dos Direitos Humanos e, em 2018, o Prêmio Goldman para o meio-ambiente. Em 2019, a rede britânica BBC colocou Francia como uma das 100 mulheres mais influentes do mundo.
Pouco tempo depois, em maio daquele ano, Francia sofreu um atentado em Santander de Quilichao, ao lado de outros líderes sociais e ambientais. Vários homens atiraram bombas de fragmentação contra o grupo, mas ninguém ficou ferido.
Transição na Colômbia
Trajetória política
“O trabalho será difícil e cheio de desafios, mas de uma coisa temos certeza, ela não ficará sentada. Sempre a veremos de pé, de mãos dadas com os setores, defendendo nossos direitos a uma Colômbia mais igual. Continuará lutando por todos os golpeados pelas guerras na Colômbia”, disse ao Estadão a líder social Yolanda Perea Mosquera, que conhece Francia desde a época de reuniões pela defesa dos direitos humanos, trabalhou ao lado dela na Comissão do Conselho Nacional de Paz e comemorou a decisão da colega de concorrer. “Foi uma notícia excelente, tanto que assim que soube fui com nossas equipes apoiá-la.”
Em 1995, em sua primeira aparição na TV regional, Francia, com 14 anos, foi a representante da comunidade para denunciar uma empresa mineradora que pretendia desviar o rio Ovejas, principal fonte hídrica de Cali, e iniciou sua luta ambiental.
Desde então, aqueles que lutam ao lado de Francia dizem que ela não tremulou a voz em nenhum momento. “Ainda na época da Comissão (do Conselho Nacional de Paz), haveria uma eleição para presidente e vice e eu disse ‘irmã, por que você não se candidata à vice?’ E ela respondeu ‘eu vou ser a presidente’”, conta Yolanda.
Chegou ao cenário eleitoral deste ano de forma modesta, com o apoio dos coletivos negros do Norte de Cauca, e foi ganhando apoio. O partido Pólo Democrático abraçou sua candidatura quando ela ainda não aparecia com posição forte nas pesquisas sobre pré-candidatos.
Numa consulta interna do partido, quando ainda tentava ganhar espaço nacional, Francia disputou a candidatura com o atual presidente eleito, Gustavo Petro, com o ex-governador de Nariño Camilo Romero, o líder do movimento cristão Alfredo Saade e a líder indígena Arelis Uriana. Com uma votação histórica de 800 mil votos, Francia fica em segundo lugar e se torna a candidata à vice-presidência ao lado de Petro.
Especial eleição colombiana
Enquanto alguns colombianos questionam a capacidade política de Francia de ocupar a presidência em caso de ausência de Petro e acreditam que ela não esteja preparada politicamente, outros afirmam que ela rompe com tradição política do país e, por isso incomoda o establishment.
Para muitas colombianas, o voto em Francia é o voto de uma geração de mulheres colombianas que cansaram de ouvir o que devem fazer, dizem seus partidários. “Uma característica dela é ser muito firme em suas posturas. E antes de tomar uma decisão, faz uma análise. Ela vai se envolver no trabalho, tem uma postura firme, que muitos dizem que está brava, mas ela sente a dor da desigualdade do país”, afirma Yolanda.
“Francia representa a realidade de muitas de nossas mulheres: mulher, negra e pobre. Sua eleição como vice marca um antes e depois no país. Seu maior desafio será se sobressair nesse papel, mas ela tem todas as características para isso porque tudo que conquistou foi dentro do espaço da luta”, afirma o comandante do maior grupo guerrilheiro atualmente na Colômbia, o Exército de Libertação Nacional (ELN), Pablo Beltrán. Após a vitória de Petro, o ELN emitiu uma nota dizendo que espera retomar os diálogos de paz com o novo governo.
Vitória histórica
No dia 19 de junho, Francia e Petro entraram para a história da Colômbia como primeiro governo de esquerda a vencer a presidência do país, com 11,2 milhões de votos. “Obrigada Colômbia por esse momento histórico. Quero agradecer a todos os colombianos e colombianas que deram a vida por esse momento. Todos nossos irmãos e irmãs, líderes sociais que foram assassinados neste país, à juventude que tem sido assassinada neste país, às mulheres que foram violadas e desapareceram. Obrigada por terem plantado a semente da resistência e esperança”. Essas foram as primeiras palavras da vice-presidente eleita.
Muitos analistas afirmam que parte da vitória de Petro como presidente se deu em razão da presença de Francia, que nas consultas prévias para eleger entre os pré-candidatos recebeu mais de 7 milhões de votos.
Desde a vitória, Francia tem levado adiante a promessa de ser uma vice-presidente atuante. Semanas antes de assumir o cargo, fez um giro por países da América do Sul e se reuniu com lideranças políticas da esquerda para falar do plano de governo que terá início neste domingo. “Queremos estabelecer um diálogo fraterno com líderes políticos e sociais em temas de paz, igualdade, mudança climática e justiça racial na região”, afirmou Francia em sua conta no Twitter antes da viagem.
Em uma semana, Francia se encontrou com o presidente chileno, Gustavo Boric, com o presidente argentino, Alberto Fernández, e a vice Cristina Kirchner, com o presidente da Bolívia, Luis Arce, e seu padrinho político, Evo Morales, No Brasil, a vice colombiana se reuniu com o candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva e a ex-presidente Dilma Rousseff.
Para Yolanda, Francia seguirá atuante. “No campo, fomos educadas a ser pessoas serviçais. Mas essas pessoas podem se tornar os líderes que abrem o caminho para ensinar aos outros como fazer as coisas. Essa é Francia Márquez, uma mulher que se tornou uma líder apesar do racismo e da desigualdade que existe.”
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