JERUSALÉM – A multidão foi aumentando e deu uma volta, como as marés de um oceano. Apertados uns contra os outros, centenas de homens estendiam os braços na direção do corpo do rabino, tentando tocar o ataúde em sinal de devoção religiosa.
Era o ápice do terceiro lockdown de Israel, no bairro ultraortodoxo no centro de Jerusalém. As reuniões estavam proibidas. As máscaras eram obrigatórias. As taxas de contágio não paravam de crescer.
No entanto, alí estavam centenas de fiéis enlutados, a maioria deles com a boca descoberta, participando de um funeral ilegal para um rabino muito reverenciado que morrera vítima de coronavírus.
Para estes judeus profundamente devotos, a participação era um dever religioso e pessoal – um sinal de profundo respeito pelo morto. Mas para a sociedade secular israelense, e mesmo para alguns integrantes da comunidade ultraortodoxa, esse tipo de reunião em massa sugere um desrespeito pelos vivos.
“O que é mais importante?”, indagou Esti Shushan, ativista ultraortodoxa do movimento pelos direitos das mulheres, depois de ver imagens do funeral. “Ir ao funeral e estudar a Torá? Ou continuar vivo?”
A pergunta exprime um dos conflitos fundamentais da pandemia em Israel: a tensão crescente entre os israelenses comuns e a minoria não menos crescente ultraortodoxa, grupo insular de judeus extremamente religiosos, também conhecidos como haredim, que evitam muitas coisas representadas pela modernidade em favor de intensos estudos religiosos.
Quando a pandemia começou, um líder haredim prometeu que a obediência à lei judaica salvaria os seus seguidores do vírus. Desde o início da pandemia, partes da sociedade ortodoxa resistem às restrições e protocolos ordenados pelo Estado secular para fazer frente ao vírus, preferindo seguir o conselho dos seus líderes.
Os haredim não são monolíticos, muitos aderiram fielmente às medidas de proteção. Mas algumas seitas ultraortodoxas continuaram realizando casamentos e funerais em massa. E mantiveram escolas e sinagogas abertas, embora o restante de Israel estivesse fechado.
“É uma disputa que ocorre há dezenas de anos”, disse Eli Paley, presidente do Haredi Institute of Public Affairs, um grupo de pesquisa sediado em Jerusalém. “Existe uma tensão entre os haredim e o restante da sociedade no tocante às questões mais profundas da identidade judaica. Então veio o coronavírus”, ele disse, “que fortaleceu ainda mais as tensões mais profundas."
Ao longo de toda a pandemia, o governo relutou em condenar os haredim por violarem o protocolo antivírus; osanalistas afirmam que o primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, teme contrariar os legisladores ultraortodoxos do seu governo de coalizão.
Isael lidera o mundo na rapidez da vacinação dos seus cidadãos, mas o país ainda está a meses de distância da normalidade: o número de infecções continua elevado – e os haredim foram os que mais sofreram.
Ivka Wertheimer, dona de casa haredi de 74 anos, foi uma das pessoas infectadas na mais recente onda. Algumas noite atrás, ela ficou perto da morte. Duas ambulâncias ficaram estacionadas em frente ao seu pequeno apartamentona zona norte de Jerusalém, prontas para levá-la às pressas para o hospital. Uma enfermeira que cuidava dela disse que Ivka tinha apenas algumas horas de vida – a não ser que partisse naquele momento.
Mas a família não tinha certeza.
Há mais de três semanas, os sete filhos e filhas de Ivka cuidavam dela em casa. A Hasdei Amram, uma das poucas organizações assistenciais Haredi que fornecem assistência médica em casa a pacientes de coronavírus, mandara enfermeiras, cilindro de oxigênio e remédios para o seu apartamento no térreo.
Desconfiando dos hospitais e da intervenção externa, a família relutava em mudar de estratégia. Para ajudá-la a decidir, foi chamado o homem no qual confiava mais do que qualquer médico.
“Todo mundo sabe que o intelecto humano tem um limite”, disse Chaim, o filho mais velho de Ivka. “Quando perguntamos ao rabino, perguntamos a ele o que Deus queria."
A ciência tem valor, mas para os haredim ela ocupa uma posição secundária em relação à fé que governa todos os aspectos da vida de sua comunidade.
Os haredim têm muitos líderes e seitas, e estão divididos entre as tradições hassídica, lituana e sefardita, cada uma com diferentes subgrupos. Muitos se sentem frustrados por aqueles que colocam em perigo os outros infringindo as normas do lockdown. “Eles precisam acordar porque as pessoas estão morrendo”, disse Shushan, a ativista haredi. “Quantos funerais haverá depois deste?”
Entretanto, os próprios críticos internos dos haredim, como Shushan, se sentem incapazes de quebrar totalmente as normas. Apesar de suas diferenças com outros haredim, eles ainda sentem que devem defender a sua comunidade, e hesitam em fornecer munições a críticos seculares. Sentem-se intimidados pela intensidade da crítica secular.
“Estou presa entre os dois lados”, disse ela. “Tenho medo da pandemia e quero resguardar a minha família do contágio. Mas também tenho medo do lado secular."
Em todo o mundo haredi, as pessoas têm uma forte sensação de serem mal compreendidas. Muitas se consideram vítimas de um sistema de dois pesos e duas medidas. Também acham que os seus críticos não entendem a importância que o estudo da religião, a liderança rabínica e o luto pelos mortos tem para o seu modo de vida.
“Sem aprender, não podemos viver”, disse Chaim Wertheimer, o filho mais velho. “Esta é a nossa vida."
“A Torá é a vontade de Deus”, afirmou. “Quanto mais a pessoa estuda a Torá, mais ela conhece a vontade de Deus”.
A Hasdei Amram, a organização assistencial, tenta fechar o fosso. Sediado em um depósito subterrâneo no enclave ultraortodoxo de Mea Shearim, o grupo recebe milhares de chamados por semana de haredim que adoeceram por causa do vírus.
A equipe que administra a organização é constituída por voluntários haredi sem qualquer qualificação médica. Eles percorrem a cidade, fornecem oxigênio, exames de sangue e esteróides a pacientes de coronavírus que solicitam a sua assistência.
Quando pacientes como Ivka adoecem e são tratados em casa, a organização os avisa para procurarem um hospital. Mas em geral, a Hasdei Amram acredita que muitos pacientes se recuperam muito mais rapidamente quando cercados pela família no seu ambiente familiar. Alguns especialistas temem que estes voluntários demorem demais para detectar quando um paciente precisa de cuidados hospitalares.
“Basicamente, acho que é uma boa coisa”, disse Ronny Numa, alto funcionário do Ministério da Saúde que supervisiona os assuntos haredi. “Mas depende da cooperação e da transparência. Se algo dá errado, precisamos sabero mais rapidamente possível”.
Em sua casa em Jerusalém, a família de Ivka finalmente concordou em mandá-la para o hospital após consultar o seu rabino. Ela morreu pouco depois de chegar ao hospital, enquanto o seu segundo filho, Moshe, aguardava no escuro do lado de fora. Foi enterrada no dia seguinte.
Os filhos disseram que não estavam arrependidos. O momento da sua morte foi Deus quem estabeleceu, afirmaram. E estavam felizes por tê-la mantido em casa pelo maior tempo possível, acrescentaram. “Na verdade”, disse Moshe, “se nós tivéssemos sido mais firmes a teríamos conservado aqui. Não deveríamos tê-la mandado para o hospital."/ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA