Conforme notei anteriormente, uma razão pela qual presto bastante atenção à arena israelo-palestina é que muitas tendências são aperfeiçoadas por lá antes de se tornarem globais - sequestros de aviões comerciais, atentados suicidas, construções de muros, desafios do pluralismo e muito mais. É como as peças de teatro fora do circuito da Broadway que em seguida chegam à Broadway. Então, o que tem acontecido por lá recentemente que possa prenunciar o que poderá ocorrer na política nos EUA?
A resposta: O mais diverso governo de unidade nacional da história de Israel, que abrange desde colonos judeus de direita até o lado oposto do espectro, um partido árabe-israelense islamista e superliberais de esquerda. Mais importante, a coalizão está se mantendo firme, resolvendo as coisas e calando a hiperpolarização que estava tornando Israel ingovernável.
Será que é disso que os EUA precisam em 2024 - uma chapa de Joe Biden e Liz Cheney? Ou Joe Biden e Lisa Murkowski; ou Kamala Harris e Mitt Romney; ou Stacey Abrams e Liz Cheney; ou Amy Klobuchar e Liz Cheney? Ou alguma outra combinação do tipo? Antes de ir para a seção de comentários, escute o que tenho para dizer.
Em junho, após um período absolutamente selvagem, no qual Israel organizou quatro eleições nacionais em dois anos e continuou fracassando em produzir uma maioria de governo estável, os cordeiros de lá realmente se deitaram com os leões.
Políticos cruciais em Israel engoliram seu orgulho, abrandaram suas políticas e se uniram para organizar um governo nacional que dure quatro anos - liderado pelo direitista primeiro-ministro Naftali Bennett e pelo centro-esquerdista primeiro-ministro alternativo Yair Lapid. (Eles se alternarão no cargo depois dos primeiros dois anos do mandato). E pela primeira vez, um partido árabe-israelense, a organização islamista Raam, desempenhou um papel vital na consolidação da coalizão de governo israelense.
O que forçou todos a se unir? A ampla percepção de que a política israelense era mantida refém pelo ex-primeiro-ministro Bibi Netanyahu, que resistia em constituir qualquer governo que não liderasse, aparentemente porque, se ele não liderasse, perderia a chance de ter alguma imunidade em relação às múltiplas acusações de corrupção que poderiam levá-lo à prisão. Soa familiar?
Netanyahu não passa de um Donald Trump mais inteligente, constantemente deslegitimando os principais meios de comunicação e o sistema Judiciário israelense e explorando vigorosamente falhas sísmicas em campos sociais, religiosos e étnicos, dividindo para governar. Netanyahu acabou tensionando tanto o sistema que vários de seus aliados romperam com ele para forjar uma coalizão de unidade, abrangendo o centro, a esquerda e os partidos árabe-israelenses.
Como o filósofo da religião Moshe Halbertal, da Universidade Hebraica de Jerusalém, me disse: “O que acontece aqui é que existiu uma responsabilidade civil suficiente - não em todos os lugares, mas suficiente - para que a classe política sentisse que a continuada ruptura do estado de direito e as consecutivas eleições, que não levavam a lugar nenhum e eram uma indulgência que Israel simplesmente não podia sustentar, dada sua população altamente diversa e a vizinhança perigosa.”
Este novo governo de Israel não vai anexar a Cisjordânia nem firmar o acordo de paz definitivo com os palestinos, notou Halbertal, mas é um governo “que tentará renovar a relação com a Autoridade Palestina em vez de enfraquecê-la. É um governo que evitou que um partido racista antiárabe entrasse no gabinete aliado a Netanyahu.” E é um governo que está contrabalançando o forte acolhimento de Bibi a Estados não democráticos e ultranacionalistas da Europa e, nos EUA, cristãos evangélicos e os republicanos de Trump “ao reconstruir laços com democratas, judeus americanos liberais e partidos liberais na Europa”.
Conforme as lideranças israelenses passam a se relacionar entre si - e as lideranças israelenses e palestinas passam a se relacionar - com um pouco mais de respeito e um pouco menos de indiferença, porque estão longe do Facebook e estabelecem relações frente a frente outra vez, as coisas voltam a acontecer. Unidade não significou paralisia. Em novembro, esta coalizão aprovou o primeiro orçamento em Israel desde 2018! Até agora, todas as tentativas de dissolvê-la fracassaram.
Mansour Abbas, o líder do partido islamista, chocou muitos árabe-israelenses e judeus recentemente ao declarar publicamente, “Israel nasceu um Estado judaico; foi esta a decisão do povo”.E foi além, “O país nasceu desta maneira e continuará desta maneira. A questão é: qual é o status do cidadão árabe no Estado judaico de Israel?”.
Essa peça chegaria à Broadway? Perguntei isso a Steven Levitsky, cientista político e coautor de “Como as democracias morrem” depois de ele expor algumas ideias parecidas, na semana passada, ao meu colega David Leonhardt.
Os EUA estão diante de um momento existencial, disse-me Levitsky, notando que o Partido Republicano mostrou que não está mais comprometido em jogar dentro das regras democráticas, ameaçando o país de maneira única entre as democracias ocidentais.
Isso tudo significa duas coisas, continuou ele. Primeiro, essa versão de Partido Republicano idólatra a Trump jamais deve ser capaz de reassumir a Casa Branca. Desde que Trump fez da confirmação da Grande Mentira - que a eleição de 2020 foi fraudada - um prerrequisito para integrar o Partido Republicano de Trump, o gabinete dele muito provavelmente seria composto de pessoas que negaram - ou trabalharam para reverter - a vitória eleitoral de Biden. Não há nenhuma razão para acreditarmos que eles abririam mão do poder no momento de transição seguinte.
“Numa democracia”, afirmou Levitsky, “partidos perdem popularidade e perdem eleições. Isso é normal. Mas uma democracia não pode permitir que esse Partido Republicano vença novamente, porque seus membros não estão mais comprometidos com as regras do jogo democrático”.
Então perguntei, Biden-Cheney não é uma ideia assim tão doida? “De nenhuma maneira”, afirmou Levitsky. “Devemos estar preparados para considerar Liz Cheney parte de uma inacreditável coalizão em estilo israelense com os democratas. Uma coalizão que diga: ‘Existe apenas um objetivo predominante neste momento - que é salvar nosso sistema democrático’.”
Isso nos leva ao segundo ponto. Salvar um sistema democrático requer grandes sacrifícios políticos, afirmou Levitsky. “Isso significa Alexandria Ocasio-Cortez fazendo campanha por Liz Cheney” e também significa Liz Cheney “guardando na estante” muitas metas políticas que ela e outros republicanos tanto gostam. “Mas é esse o custo, e se você não o assume, olhe para a história e entenda por que a democracia colapsou em países como Alemanha, Espanha e Chile. As forças democráticas desses lugares deveriam ter feito isso, mas não fizeram.”
Para expressar isso de outra maneira, essa versão do Partido Republicano que idolatra Trump está tentando obter poder por meio de uma eleição, mas está tentando melhorar suas chances de vencer manipulando o sistema em Estados sem maiorias claras. Os democratas com d minúsculo dos EUA precisam combater essas jogadas e melhorar suas próprias chances de vencer. A melhor maneira de fazer isso é criando um veículo amplo de unidade nacional possibilitando que mais republicanos abandonem o culto a Trump - sem ter de simplesmente se tornar democratas com D maiúsculo. Temos de ser democratas com d minúsculo agora - de outro modo, não teremos mais um sistema para sermos Democratas, Republicanos ou qualquer outra coisa.
Foi isso que as elites israelenses de mentalidade cívica fizeram ao criar uma ampla coalizão de unidade nacional cuja principal missão foi fazer as funções básicas do governo voltarem a funcionar e garantir a integridade da democracia de Israel.
Um veículo desse tipo nos EUA, afirmou Levitsky, deveria “ser capaz de furtar de Trump uma pequena mas decisiva fração do votos republicanos”. Em uma disputa apertada, seria necessário que apenas 5% ou 10% dos republicanos abandonassem Trump para garantir que ele perca. E é isso o que importa.
Esta é a maneira democrática de derrotar uma ameaça à democracia. Ao não fazer isso, as democracias morrem. Estou bastante ciente de que isso é altamente improvável; os EUA não contam com a flexibilidade de um sistema parlamentar de representação proporcional, como o de Israel, e não há nenhum precedente na história moderna de uma aliança suprapartidária desse tipo. E, mesmo assim, ainda acho que vale a pena tentar. Também não há precedentes para a ameaça à nossa democracia que atualmente testemunhamos.
Como coloca Levitsky: “Se tratarmos essa votação como uma eleição normal, nossa democracia corre o risco de não sobreviver. E esse é um risco que prefiro não correr. Precisamos comunicar ao público e ao establishment que esta eleição não é uma disputa normal entre democratas e republicanos. E a disputa entre a democracia e os autoritários”.
Essa perspectiva não é para o longo prazo, notou Levitsky: “Quero voltar o mais rápido que puder a discordar com Liz Cheney em cada tema político” - e que isso seja o pior com que tenhamos de nos preocupar - “mas não enquanto nossa democracia não estiver a salvo”. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
* Thomas L. Friedman é colunista de assuntos internacionais. Ele entrou no jornal em 1981 e ganhou três Prêmios Pulitzer. É autor de sete livros, incluindo “De Beirute a Jerusalém”, que venceu o National Book Award